02 novembro 2004

ESPECIAL: ATRAVÉS DAS ELEIÇÕES AMERICANAS

Em quinze dias nos Estados Unidos podem ouvir-se muitas opiniões, mas o que mais me espantou, entre visitas ao Departamento de Estado, ao Pentágono, ao Congresso, ao Senado e a respeitados think-tanks, é que a Política Externa de Bush e de Kerry poderá não será radicalmente diferente. Este é um resumo muito ligeiro do que disseram algumas pessoas que ouvi, com um grupo que integrava.

Simon Serfaty : Eleições para os próximos 20 anos
Professor universitáro, analista político, foi durante mais de 10 anos director do Programa para Europa do Center for Strategic and International Studies (CSIS) (http://www.csis.org/)

Para Simon Serfaty, estas são “as eleições mais significativas desde 1948, em termos de implicações internacionais”. Nem Kerry nem Bush podem fugir das novas estratégias de segurança traçadas depois do 11 de Setembro, daí o professor considerar que “o que eles puserem em marcha vai definir o que será o mundo nos próximos 20 anos”.
Mas em que sentido é que podem prever-se essas mudanças? Serfaty diz que não está preocupado com “a transição de Bush para Kerry”, mas sim com a transição de “Bush para Bush”. E porquê? Porque “Bush é um homem de convicções, ele sente as coisas, não as explica ou compreende”. É o homem que respondeu a um jornalista que o seu filósofo preferido era Jesus Cristo, mas não se deu ao trabalho de dizer porquê, alegando que o outro não compreenderia. “Ele diz ‘I feel’ e não ‘I think’”. Para o analista do CSIS, a personalidade do indivíduo que se senta na Sala Oval pode fazer toda a diferença. “Kerry vai querer ir ao encontro dos europeus e reabrir o diálogo”. Mas a sua política dependerá das respostas que obtiver.

The Atlantic Council: Política externa europeia está à espera do resultado das eleições
Neste think-tank que se diz independente, mas onde estava um cartaz de apoio a Kerry, uma das altas responsáveis resumiu muito bem qual a sensação que se tem em Washington em relação aos governos europeus: “Aqui sente-se que os europeus estão à espera do resultado das eleições para avançarem na sua política externa. Isso é muito mau se Bush ganhar”. E ainda foi mais concreta: “Tenho avisado os nossos amigos a não esperarem grandes mudanças na nossa política externa. Não esperem mudanças fundamentais com uma alteração de administração. Esperar isso seria esperar em vão”. A diferença seria a seguinte: “Kerry pode ser mais activo a abordar o conflito israelo-palestiniano. Mas na questão multilateral isso depende de como os parceiros europeus reagirem. As administrações querem é eficácia”.

John Huslman, Heritage Foundation : Simpatia não é tudo
Para este republicano da fundação conservadora da escola realista (e não neoconservadora), o caso do Irão pode vir a ser o paradigma de uma alteração na Política Externa norte-americana. “Todos achamos que é útil encontrar uma solução diplomática. Todos temos medo que os israelitas tomem a situação nas suas mãos”. Os americanos estão muito preocupados com isto e Kerry não se cansou de o dizer na campanha.
Huslman diz que “Kerry começará por ir à Europa dizer que tudo se trata de uma questão de estilo”, mas o analista também entende que “não é esse o problema”. E concretiza: “Há pessoas da entourage de Kerry que acham que os países europeus não vão dar mais tropas [para o Iraque e o Afeganistão] só porque ele irá à Europa falar com os líderes de uma forma mais simpática”. No caso de haver um segundo mandato de Bush, “o tempo definidor será entre Janeiro e Fevereiro [com as eleições no Iraque]. No Partido Republicano haverá uma guerra civil entre realistas – que é a visão tradicional – e neoconservadores. Se Bush perder as eleições, os neocon serão os culpados”, considera.
As diferenças entre os dois candidatos serão mais de estilo, segundo Huslman. No caso do Irão, por exemplo, “Kerry terá maior capacidade para se coordenar com os três da União Europeia [Alemanha, França e Reino Unido] nos primeiros quatro meses. Se Bush disser que vai atacar, todos sabem que será assim”.

Congresista Robert Wexler, democrata, da Flórida: "A fresh new start"
Pertence ao sub-comité para a Europa
Claro que agora é contra a intervenção no Iraque, destacando a ida para a guerra com base em falsas premissas, mas tal como Kerry votou a favor. “A pessoas como eu, que não alinham com Bush, colocou-se a questão: vamos votar por Bush ou por Chirac?” Embora seja um democrata do tal Estado, a Flórida, concorda que as maiores diferenças entre Kerry e Bush “são uma questão de grau”. É o que se deduz também destas palavras: “Talvez o melhor fosse mudar de administração e ter mais credibilidade. A União Europeia tem um papel a desempenhar. Mas se a Europa não for séria, apenas os EUA podem actuar”. No caso concreto do Irão, Wexler concretizou melhor a sua opinião: “A Europa ainda parece incapaz em termos de vontade política, para dar os próximos passos, o que me leva a pensar que se a União Europeia não actuar, serão os EUA a ter de agir”. Ora que diferenças temos aqui para os maiores falcões da administração Bush? “Com Kerry seria diferente porque toda a abordagem da sua administração seria muito mais multilateral. Bush não tem credibilidade e com Kerry teríamos um ‘fresh new start’”.
No entanto, quando se fala da reconstrução do Iraque, ele responde aquilo que os seus eleitores gostariam de ouvir: “Estou é preocupado com a reconstrução da Flórida, não com o Iraque”. (A conversa tinha-se passado poucos dias depois dos furacões terem devastado o seu estado).

Senador Richard Lugar, presidente do Foreign Relations Committee
Richard Lugar falou ao grupo na sala da comissão de Senado que durante anos partilhou com o senador John Kerry. Portanto, apesar de ser republicano, diz conhecer bem o candidato democrata: “Kerry é muito como Bush. Ainda são as mesmas pessoas que o aconselham e eu conheço-as muito bem”.
É preciso retribuir tanto o bem como o mal: mas porque há-de ser precisamente à pessoa que nos fez bem ou mal? (Nietzsche, Para Além de Bem e Mal)

Um estudo divulgado há alguns dias estima que poderão ter morrido cerca de cem mil civis iraquianos desde o início da ocupação americana. Os números, sobre ou subavaliados, recordaram-me mais este aforismo moralmente errado (na vertente de retribuição do mal, obviamente).

31 outubro 2004

A propósito de roedores

Num tempo de metáforas os escritores têm de ter muito cuidado com as palavras. Na montra de uma loja de Campo de Ourique está exposto o livro infantil «A Ratinha Vaidosa» (Rua Tomás da Anunciação, perto do Jardim da Parada). O esforço de suavização do diminutivo é logo frustrado pela escolha do adjectivo. Não o comprei, por isso não sei se será uma tentativa de actualização de um conto clássico de uma perspectiva mais feminina (estilo «A Ratinha do Campo e a Ratinha da Cidade»). Ficou-me apenas a sugestão de uma história com piercings e shavings totais.

30 outubro 2004

O pára-ratos

O velhote da loja de sementes hortícolas do Cais do Sodré pôs a ratoeira metálica em cima da mesa. "Isto tem uma força parva, quer ver?", explicou-me, enquanto armava a armadilha. Depois tocou-lhe com uma caneta e, numa fracção se segundo, a Bic azul ficou desfeita em mil pedaços espalhados pelo estabelecimento. "Até corta ratazanas ao meio", disse, e fez um gesto com a mão. Pensei no rato decepado em duas partes, a sangrar no meu quarto de vestir, e não gostei. "Mas tem aqui este produto, talvez seja melhor". E trouxe uma caixinha amarela com este dizer: "Pára-ratos". Um pântano movível, uma cola que se espalha numa folhiha de papel em volta de um isco de queijo, onde eles ficam presos: eh-eh, apanhá-lo vivo...

(Ladies and gentlemen, we got him! Ainda não tinha acabado de postar este post, e aparece a Carla aos gritos: "O bicho está ali preso a mexer-se!" Sim, o nosso prisioneiro, vivinho da Silva, imediatamente sepultado no lixo em lenta agonia, prensado entre duas folhas de papel cheias de cola e cinco pedaços de queijo. Paz à sua alma.)

Guerra doméstica assimétrica

Caganitas no ombro esquerdo do meu fato claro de linho, o meu preferido, e que me dá assim um ar de gangster cubano dos anos 30. Agora sim, estou irritado. E ainda teve o desplante, o despudor, de assustar a empregada ao passear-se pendurado nas minhas camisas dentro do armário. Ainda por cima, este rato é acrobata. Volta e meia entro no quarto de vestir empunhando a minha esfregona mortal, mas não tenho tido sorte. O gajo é esperto. Já me fareja à distância. Deve ter percebido que lhe matei o amigo esmagado à esfregonada.

Ontem fomos às grandes superfícies à procura de armamento letal, mas sem sucesso. Só havia armas químicas, de destruição maciça, ou seja, todo o tipo de venenos imagináveis, mas nós queremos armas de alta precisão. Por isso agora vou sair para comprar nem que seja uma daquelas velhas ratoeiras. Tinha mais esperança na tecnologia: um amigo falou-nos nuns aparelhos que emitem ultra-sons, que afugentam os ratos, mas os nossos não têm para onde fugir; era vê-los às cabeçadas contra as paredes. Não, prefiro uma coisa artesanal, antiga e eficaz. Uma velha ratoeira com queijo da serra, ou irresistíveis queijos "cholé" de Niza ou Castelo Branco. Isso é que vai ser. Se não resultar, duvido que a Carla aceite o emprego da arma biológica anti-rato mais letal do mundo: o gato. Estou a desesperar nesta guerra assimétrica.

29 outubro 2004

"Tons alaranjados invaem o céu...

... num eclipse lunar"
É este o título de uma foto-legenda do Diário de Notícias de hoje. Segue o texto:

"A lua desapareceu por completo na madrugada de quinta-feira. A noite tornou-se escura e envolveu a Europa, a África e a América, num eclipse total. O círculo lunar criou um verdadeiro espectáculo cor-de-laranja. Os portugueses que perderam este fenómeno, devido à nebulosidade só terão oportunidade de o voltar a observar em 2007".

Ora, em Portugal, podemos assistir todos os dias a um espectáculo laranja, da laranja ou do circo montado no laranjal. Devido à nebulosidade, porque as nuvens que pairam são negras e a opacidade é muita, os portugueses vão perdendo a oportunidade de ver alguns fenómenos destes, mas muitos laranjas fazem questão de furar o nevoeiro para se eclipsarem a si mesmos em público. Depois isso dá-nos sempre para a galhofa, naquela fase que antecede a outra, em que começamos a chorar. E quanto ao fenómeno de 2007, talvez o espectáculo aí seja cor-de-rosa sem que a neblina se tenha dissipado.

Mas há muito séculos, neste País, enquanto há nevoeiro há esperança...

28 outubro 2004

Sem comentários

It was dark now, and as we dipper under a little bridge I put my arm around Jordan's golden shoulder and drew her toward me and asked her to dinner. Suddenly I wasn´t thinking of Daisy and Gatsby any more, but of this clean, hard, limited person, who dealt in universal scepticism, and who leaned back jauntily just within the circle of my arm. A phrase began to beat in my ears with a sort of heady excitement: 'There are only the pursued, the pursuing, the busy, and the tired.' (F. Scott Fitzgerald, The Great Gatsby)
Já temos mentiras e vídeo. Falta o resto, falta o resto...

27 outubro 2004

As desvantagens do contraditório

A sua gestão do silêncio foi exímia. Agora Marcelo falou. E fez uso do contraditório na AACS. Chamou mentiroso a Pais do Amaral. Acusou-o de o ter pressionado. Disse que o presidente da TVI lhe confessara estar disposto a abdicar da liberdade informativa da televisão, porque uma TV não pode andar sempre a dizer mal do Governo. A democracia está doente. Mas também nunca teve grande saúde. A coisa está feia, mas agora é que vai ser bonito.

O Espelho do ano vai para...

Champanhe, recarrecas e confettis! A Rua da Judiaria faz hoje um ano. É um dos melhores blogues escritos em português, embora seja produzido na Califórnia. Parabéns, Nuno, pelo teu trabalho (porque o que produzes dá trabalho), e por teres criado mais do que um simples blogue, uma publicação digital de referência.

Aliás, é obrigatório ler um dos últimos posts do Nuno Guerreiro, que é judeu, sobre a tão propalada cabala, as origens da palavra e os significados que ganhou ao longo dos tempos. "A palavra cabala é um dos vocábulos da língua portuguesa onde a linguística e a filologia se intersectam com o fanatismo histórico e a intolerância. E com o antisemitismo institucional que durante séculos vigorou em Portugal graças à Inquisição".

26 outubro 2004

A prova que faltava...

A Alta Autoridade para a Comunicação Social que se prepare para agir de novo antes de ser definitivamente extinta. Este título de um texto da Agência Lusa prova como o Governo controla com rédea curta os media do Estado: "Astronomia: Eclipse da Lua na quinta-feira, um espectáculo cor-de-laranja".
Convoque-se a lua, o sol, o astrónomo e Luís Delgado para depôr.
No espaço político o que interessa são as ideias e não a origem das ideias. É irrelevante se se fundam na religião, na ideologia ou na razão pura. O problema com a nomeação de Rocco Buttiglione para comissário da Justiça, Liberdade e Segurança não é a base católica das suas ideias acerca da homossexualidade e do papel da mulher na sociedade, mas as ideias em si mesmas. Se fosse proposto para comissário da agricultura, nenhum eurodeputado se lembraria de lhe perguntar as suas opiniões sobre esses assuntos. Mas, nessa pasta, espera-se que promova medidas relacionadas, por exemplo, com a igualdade de oportunidades entre os sexos no acesso ao emprego e a não discriminação com base na orientação sexual. Buttiglione está provavelmente a ser sincero quando afirma aceitar a distinção entre as leis da religião e as leis dos estados, que não é favorável à criminalização do pecado. Mas não será provavelmente também o promotor mais enérgico daquelas medidas. Não é obrigatório que os grupos políticos do Parlamento Europeu rejeitem o nome do comissário; não me parece que haja motivo para indignação e acusações de perseguição que coloquem a hipótese de o fazer. As ideias não podem ser rejeitadas por terem uma base religiosa; não podem ser aceites simplesmente por a terem.

Qual esquerda, que direita?

Voltemos de novo aos usos da dicotomia esquerda/direita. O uso que identifiquei como filosófico é mais propriamente assente num modo antropológico diferente de distinguir duas visões do homem: uma, a da bondade original, pervertida pela sociedade, ou seja, um optimismo antropológico; outra, a ideia de que a natureza selvagem do homem implica instituições assentes na ordem e na autoridade que o moderem nos seus instintos primários como condição para haver sociedade, ou seja, um pessimismo antropológico.
Pacheco Pereira, Público, 21/10/2004

Apesar de esta ser uma das distinções mais básicas entre esquerda e direita, a dicotomia tendo como ponto de partida o pessimismo/optimismo antropológico faz-me sempre sentir uma contradição. Sou assumidamente um pessimista antropológico, não penso que o homem seja naturalmente bom, antes pelo contrário, acho que transporta naturalmente os males que vemos todos os dias, e considero-me, ao mesmo tempo, de esquerda. Devo consultar um psicólogo? Talvez um politólogo? Não. O mundo é cada vez mais complexo, e as escolhas menos baseadas neste radicalismo (no sentido de raiz). Se a História ainda não acabou, pelo menos as fronteiras estão muito esbatidas para o Último Homem.

25 outubro 2004

E já não só parece: é mesmo!

"Recusei o convite, até por não acreditar que a Lusomundo Media e a Global Notícias estivessem dispostas a reunir as condições necessárias para voltar a fazer do Diário de Notícias um diário de referência, isenção e aceitação pública", disse hoje Clara Ferreira Alves em comunicado. Está tudo dito. E depois disto, senhoras e senhores, quem será o molusco que nestas circunstâncias aceitará o lugar?

O que parece é

Foi uma "fonte governamental", e não uma fonte da empresa, que confirmou ao Expresso o nome de Clara Ferreira Alves na direcção do Diário de Notícias. Sendo que se trata de uma empresa de capitais maioritariamente privados (a Global Notícias, do Grupo PT, apesar do Estado ter uma golden share), está tudo dito quanto ao controlo governamental da comunicação social. Nem há pudor em fazer parecer o que não é. Ao menos assim sabemos com o que contar.

23 outubro 2004

Se a vida nos vive, ou "Antes do Anoitecer"

Sim, Antes do Anoitecer é um belo filme no sentido da palavra que significa beleza. Acabámos de chegar do cinema e isto ainda está quente. Não falo da natural perfeição dos diálogos porque o Tiago a descreveu da melhor maneira uns posts atrás. Mas dos caminhos da vida: um desencontro pode mudar-nos as vidas para sempre, ou um encontro pode fazê-las diferentes o resto do tempo. O que o filme trata de forma fina é isso mesmo, os elos que se não ligaram e os que se fecharam dadas as contingências da vida. Tudo o que é acidental é demasiado importante para ser considerado um acaso. Não acredito no destino. Creio no aproveitamento das oportunidades. É sobre isso que este filme nos faz pensar: se passamos ao lado das nossas vidas, ou se as vivemos por dentro delas, pelos destinos que segurámos. Há dois tipos de atitudes, em que as pessoas vão oscilando: quando deixamos que a vida nos viva, ou quando vivemos o que impomos aos próprios acasos. Eu cá prefiro a segunda forma de estar, embora nem sempre isso seja fácil ou exequível. O filme foca-se demasiado na primeira.
E este final diz bem mais sobre cínicos e românticos do que o primeiro final em Viena.
- Já pensaste na vida pateta que levas? - disse-me o rato tranquilamente, quando me viu com a esfregona na mão, prestes a esmagá-lo. E atingiu-me no coração, aquela insignificância.
- Matas-me, pois, porque tenho este tamanho. Fosse eu da talha de um gato tu é que fugias, ó cobarde, pobre espécie de homem - e atingiu-me outra vez.
Pousei a esfregona e disse-lhe "cheiras mal", e "sim, levo uma vida de pateta", quase toda a gente leva. "Mas tu também não és do tamanho de um gato. As coisas são como são". Só então o esmaguei com a esfregona. E decidi mudar de vida.

A evolução das espécies

Acabei de me cruzar com o outro rato [há dois posts atrás, descrevi um raticídio]. Seria o par do outro, ou isto já é uma colónia? Desta vez, depois de fugir para debaixo do frigorífico, ao ver que eu tinha pegado na esfregona assassina, meteu-se num lugar impossível por detrás da máquina de secar. Este aprendeu com os erros do outro. Primeira lição: nunca se mata um rato sem a certeza de que nenhum outro está a olhar. Alguém, por aí, me empresta um gato? O lexotan tinha deixado uma mensagem no outro post a dizer que tinha um...

22 outubro 2004

Exercícios de abstracção

O novo sistema de acesso do metropolitano de Lisboa presta-se a diferentes metáforas. Ontem lembrou-me as corridas de galgos que só vi em filmes. As portas abrem-se e os cães lançam-se em perseguição da lebre mecânica. Fiquei desorientado. Quando passo já o animal se distanciou e não sei por onde ir; corro apesar de não ter pressa de chegar a lado nenhum.
E já experimentaram, nas escadas rolantes que descem até à estação do Rato, colocar os pés lado a lado, dobrar ligeiramente os joelhos e movendo os braços fingir que estão a esquiar? A Joana já. A reacção dos que, em direcção contrária, perseguiam a sua lebre mecânica até à luz do dia foi bastante favorável.

Kerry igual a Bush: a lavagem cerebral que me fizeram

Durante uma semana em Washington, think-tankers, um senador republicano e um congressista democrata, assim como membros da administração (estes é que não é de estranhar), tentaram convencer-nos (a mim e a outros camaradas de profissão) de que, apesar de toda a retórica, a política externa de Kerry não será muito diferente da de Bush, caso vença as eleições no dia 2 de Novembro.
No fim de contas saí de lá quase convencido, porque estes argumentos não são irrealistas:

a) No início do mandato, Kerry fará uma viagem aos países da velha Europa para recompor as antigas amizades;
b) Mas esperará que os aliados, em troca pela simpatia, disponibilizem umas tropas para o Afeganistão e para o Iraque (sobretudo para o Iraque), de modo a aliviar o contingente norte-americano;
c) Os europeus hão-de sorrir ao lado de Kerry, mas tropas é que não. A maioria dos políticos não gosta de pôr a cabeça no cepo por causa de meras simpatias (e Kerry é bem mais simpático do que Bush); depois há um défice para cumprir porque Bruxelas está vigilante e militares no estrangeiros são caros. Mais: cada soldado europeu morto tem mais custos políticos do que um americano. E se a Europa mandar tropas não serão as suficientes.
d) Se ao fim de três ou quatro meses Kerry não tiver respostas satisfatórias de países como Alemanha, França e Espanha, regressará ao orgulhosamente sós;
e) O sr. Chirac deve estar a torcer para o sr. Dabliú continuar onde está, que é para não ter de mover uma palha;
f) John Kerry nunca afastou a possibilidade de poder fazer ataques preventivos;
g) O democrata farta-se de falar no Irão e das armas nucleares. Se se concluir que o Irão as possui e os europeus não se chegarem à frente, então corremos o risco de ter uma nova situação como o Iraque (dizem eles que é preferível serem os EUA a intervir, para prevenir qualquer acção de Israel que incendiaria a região);
h) É preciso não esquecer que o trauma do 11 de Setembro ainda está fresco na cabeça dos americanos;
i) Todas as acções de Kerry seriam embrulhadas num papel mais multilateral do que as de Bush, mas os resultados não seriam diferentes, caso as organizações internacionais não dessem o aval às intenções norte-americanas.

Apesar de este ser um cenário possível, era preferível que não fosse assim.

21 outubro 2004

Raticídio pela manhã

A primeira coisa que fiz hoje, quando me levantei, foi matar um rato. Não é que não goste de ratos, ou que tenha, pelo contrário, ficado com um peso na consciência, mas é uma acção desagradável de se fazer logo pela manhã. Ver um bicho escuro a fugir, a meter-se debaixo do frigorífico, pegar na vassoura, procurá-lo, causar-lhe o pânico e depois esmagá-lo não é a melhor maneira de começar um dia de folga. À primeira, ficou mal esmagado, continuou a tentar fugir, já meio coxo (ou estaria a fingir que estava coxo, para eu o deixar escapar?) e aí peguei na esfregona. É um utensílio mais eficaz.
As barbas da vassoura devem picar suficientemente a carne de qualquer pequeno mamífero, mas uma esfregona molhada é mais compacta, deve ser como chumbo, e o facto de estar ensopada ajuda a uma sufocação mais conveniente. Seria uma morte piedosa. Mas não. Calquei-o bem calcado, mas a cauda nunca deixou de abanar, não de felicidade, talvez como que dizendo - "Ainda estou vivo, despacha-te, não sabes matar depressa, vá!..." Pelo menos não chiava como a osga que matei, ainda vivia na outra casa.

Quando levantei a esfregona, o pequeno, muito pequeno, peludo cinzento, contorcia-se um pouco, manchando o chão com uma ligeira nódoa sanguínea. Não levei a minha tarefa até ao fim. Tirei dois papéis de rolo branco de cozinha e preparei-lhe uma mortalha alva na qual o embrulhei antes de o deitar para o lixo e fechar o saco. Nojo.

Durante o processo de extermínio, a Carla estava na casa-de-banho. Estava e continuará na ignorância, pelo menos até ler este post. Até lá não se preocupa com isto. Dizem que basta matar-se o primeiro. Alguém precisa de uma desratização aí em casa?

20 outubro 2004

Antes do Anoitecer, Richard Linklater
Não sei se é o melhor filme do ano, pode ser apenas o filme que mais gostei de ver este ano (desde Lost in Translation). Parece impossível que eles saibam que estão a ser transportados por uma câmara de filmar pelas ruas de Paris, por uma escadas velhas até um quarto. Sei que a arte não é apenas a imitação da natureza, mas o longo diálogo entre Ethan Hawke e Julie Delpi também é mais do que apenas uma imitação de naturalidade. Ou parece ser, o que, em cinema, é quase a mesma coisa. No final sei claramente onde me encontro na divisão entre românticos e cínicos.

O cabaleiro importa-se de repetir?

No mesmo dia em que Gomes da Silva aproveitou para se enterrar mais um bocadinho, Morais Sarmento disse que há "limites à independência" dos operadores públicos de televisão. Ora isto cheira a mais uma cabala. Mas uma cabala dependente ou independente da vontade dos cabaleiros? Resposta: ou está tudo doido, ou uma pessoa normal, neste contexto, tudo faria para não dizer o que Sarmento disse. A não ser que ele quisesse dizer mesmo aquilo, e isso não se pode levar a mal, porque afinal os doidos somos nós por nos deixamos governar por sujeitos como ele. Isto cheira a fim de regime. Está por aí alguém disponível para organizar uma cabala para ver se "isto" acaba de vez?

O triângulo cabalista

O Expresso, o Público e Marcelo Rebelo de Sousa fazem parte de um estranho conluio anti-santanista, sugeriu o ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, ao prestar declarações à Alta Autoridade para a Comunicação Social. E disse que "as cabalas existem, independentemente da vontade subjectiva de as constituir".

São estranhas, porém, as forças invocadas pelo minstro, já que é difícil provar a existência de conspirações que se desenvolvem independentemente da vontade dos conspiradores. Se é um triângulo cabalista, de forças que congeminam uma cabala independente da vontade dos cabaleiros, isso cheira a maçonaria. Mas, nesse caso, o sr.ministro não devia ter mais qualquer coisinha para nos contar?
O post "O Empate" foi corrigido. Tinha um erro factual sobre a eleição de Ferro Rodrigues no PS.

18 outubro 2004

Entrada no diário: Nasceu a Luísa. Sexta-Feira, quinze de Outubro de dois mil e quatro. Fomos vê-la hoje pela primeira vez. Mama com frequência, dorme muito. A primeira impressão é muito importante; espero que tenha gostado de nós. Depois de nove meses de escuridão, vultos coloridos com vozes de professora do Charlie Brown podem ser muito traumáticos para um recém-nascido. Vamos ter de a indemnizar com presentes e chocolates pelos possíveis danos psicológicos. A Sónia e o Gonçalo estão cansados e felizes. Parabéns aos dois.
Como a Luísa não precisa de histórias para adormecer, termino a entrada antes de inventar uma.
Será que se comermos uma madalena e nos arrependermos logo de seguida lhe podemos chamar uma madalena arrependida? A transferência da culpa para o que é inimputável (a madalena) é um problema não suficientemente estudado pela psicologia contemporânea. Colocou-se-me pela primeira e única vez ao ler Proust; culpar uma madalena embebida em chá de tília pelas oito ou nove páginas de descrição do campanário da igreja de Combray e a recordação que as emoções do campanário da igreja de Combray provocaram num pobre miúdo a quem a mãe não beijava suficientemente ao deitar. No primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, o narrador descreve-nos como esse sabor esquecido (madalena/chá de tília) lhe despertou as recordações da infância, da adolescência e da vida adulta, que passa esse e os outros seis volumes a narrar pormenorizadamente. Tudo isto para dizer que, quando viajava no Domingo no Alfa-Pendular de regresso a Lisboa, um Compal de Tutti-Frutti, sabor que já não devia beber há muitos anos, me transportou imediatamente para uma viagem de estudo que fiz na primária. Deve ter sido a isso que Tocqueville se referia quando alertava para o perigo do declínio dos padrões de excelência nas sociedades democráticas. A madalena e o chá de tília aristocráticos foram substituídos pelo Compal de Tutti-Frutti suburbano. Mas, ao contrário de Proust, não me apetece escrever um romance a partir disto, o que apenas revela outro índicio do declínio.

15 outubro 2004

O empate.

Ontem fui ao Parlamento como quem vai ver um jogo de futebol, ver a reedição de um "derby". Este saiu empatado. José Sócrates não esteve mal para estreante no debate mensal, mas, na sessão sobre o programa do Governo António José Seguro fizera melhor do que o novo líder. Depois de dizer com arrogância que o primeiro-ministro não pensava antes de falar - porque Santana disse que Ferro Rodrigues também não tinha sido eleito secretário-geral do PS -, Sócrates afirmou que o seu antecessor tinha sido eleito por voto directo. Mas também ele falou antes de pensar porque depois atrapalhou-se. Ferro foi eleito por voto directo antes das legislativas e depois foi confirmado numa convenção o PS. O engenheiro estava nervoso? Veremos como se sairá daqui a dois ou três meses.
Santana, que esteve muito melhor ontem do que no debate do programa do Governo, não pode ser atacado com base em questões pessoais, porque o homem nisso é bom a responder. Até Francisco Louçã teve de mudar o tom, porque já viu que não o consegue irritar como irritava Durão Barroso. Esperemos pelas coisas sérias, o Orçamento do Estado, para ver como se dispõem as novas peças do xadrez político nacional.

O debate na churrasqueira: Kerry vs Bush

Nos três plasmas enormes daquele restaurante em Georgetown, Washington, o jogo de futebol americano entre a equipa da Marinha e a do Exército, concentrava as atenções de toda a gente. Éramos oito jornalistas, cada um do seu país europeu, e o negócio foi o seguinte: OK, jantamos aqui, mas dentro de uma hora vocês mudam de canal para vermos o debate das presidenciais. E assim foi. Ainda estávamos a comer os bifes enormes, suculentos, as batatas fritas e os molhos, e o jogo mudou, mesmo em cima da hora. O Kerry atirou-se ao Bush e o Bush placou o Kerry, o embate durou 90 minutos, mas antes de chegar a meio foi-se levantando um burburinho, depois um barulho enorme, até que olhámos em volta e éramos os únicos a ouvir os dois homens. Bem, a ouvir não, porque não ouvíamos nada. E nós a pensar que estas eleições eram importantes. Só metade dos americanos vota. Eu também queria votar, como cidadão do mundo. Só para usar aquele "pin" no meu casaco: "When Clinton lied nobody died. Vote 4 Kerry!"

14 outubro 2004

Se uma desconhecida lhe oferecer livros... está na América

Na América acontecem as coisas mais estranhas. Quando aterrei no aeroporto de Norfolk, Virgínia, ainda fiquei sentado uns minutos. Tinha ao meu lado um americano aflito, com dimensões XXL, a quem deviam ter reservado dois lugares no avião em vez de um. O homem era tão grande que fazia aflição. Por isso decidi levantar-me, libertá-o o mais depressa possível daquele aperto de seis horas e meia. Mal fiquei de pé (como metade dos passageiros), um homem, no banco da frente berrou: "Está assim com tanta pressa? Não sabe as regras? Porque é que não espera a sua vez e não deixa as outras pessoas sair primeiro!" Estarreci. Parecia que me queria bater. Ainda argumentei que não lhe tinha feito mal nenhum, blá-blá-blá, mas esperei que ele saísse primeiro.

Uns dias depois, em Washington, fui a uma livraria perto de Dupont Circle que está aberta toda a noite, e tem um belíssimo restaurante, um bar e música ao vivo. Escolhi dois livros que talvez não tivessem desconto na Barnes & Noble e dirigi-me ao balcão para pagar ao mesmo tempo de uma rapariga. Ela hesitou. E eu disse qualquer coisa como "faça favor". E ela fez. A empregada passou a pilha de livros dela no leitor óptico e os que estavam ao lado. Eu ainda disse, "esses livros são meus", a funcionária disse "eu sei", e fiquei a pensar que estava a fazer as contas separadas. Mas não. A moça tinha pago os meus livros. Saí porta fora e pedi explicações: "Por que carga de água é que pagou os meus livros?" Ela disse que tinha sido muito mal educada por ter passado à minha frente e que por isso tinha decidido pagar a conta. "Deixe lá, ela é assim", acrescentou a amiga que estava com ela. Ainda argumentei, blá-blá-blá, eu é que lhe tinha cedido a minha vez e tal, mas não funcionou. Voltei à livraria, perguntei quanto custavam os livros: 50 dólares, quase dez contos de réis. Corri para a rua. Tinha desaparecido.

Este é um episódio que jamais teria lugar em Portugal, fosse com livros ou rebuçados. E olha, fiquei a pensar nisso.

A propósito, os livros são: "The Irak War", do jornalista e historiador inglês John Keegan; e "The War for Muslim Minds", do académico francês Gilles Kepel.

13 outubro 2004

Estou ansioso por ver a cara de pau do ministro das Finanças, Bagão Félix, no debate do Orçamento do Estado.

12 outubro 2004

Santana, o curandeiro da sado-maso-obsessão de Durão

O IRS vai baixar, as pensões vão subir, os funcionários públicos vão ter um aumento acima da inflação, e o défice não passará dos 3%: o primeiro-ministro, sem direito ao contraditório domingueiro do professor Marcelo, em cada uma das três televisões, e a horas diferentes, contradisse o que andámos a ouvir dois anos e meio, e até as palavras do seu próprio ministro das Finanças. Ou Durão e Manuela tinham mesmo um problema sado-maso-obsessivo com as contas do Estado, ou somos todos uns totós (e o Bagão também), e andámos a ser enganados por gente doida até ontem.
Temos de agradecer ao Senhor Presidente da República, que nos deu esta bela prenda, porque se não fosse ele ainda podia haver quem votasse enganado no Conde da Figueira e lhe desse um mandato para quatro anos. Mas na pior das hipóteses isto não dura mais do que dois anos (o que é muito pouco tempo no tempo cósmico). E como o povo não é parvo e não estamos na Venezuela, o populismo desbragado chegará ao fim.

Olá. Estou de volta às postas.

05 outubro 2004

Fomos para sul. Na Ilha de Tavira há uma praia com âncoras cravadas na areia, como se uma tribo de gigantes se tivesse arrastado para fora do mar com o auxílio delas. Passámos lá os três melhores dias de praia deste ano, sem a visão de quaisquer seres mitológicos, que há muito se devem ter embrenhado na Ria Formosa e desaparecido. Já regressámos: a Joana prepara a mala para partir novamente, para Frankfurt; eu escrevo o diário mínimo das nossas mini-férias de comemoração.

27 setembro 2004

146 - Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.

90 - Os homens graves e melancólicos ficam mais leves graças ao que torna os outros pesados, o ódio e o amor, e assim surgem de vez em quando à sua superfície.

74 - Um homem de génio é insuportável se, além disso, não possuir pelo menos duas outras qualidades: gratidão e asseio.

98 - Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde. (Nietzsche, Para Além de Bem e Mal)

São frases como estas que justificam o meu interesse por Nietzsche. Um interesse mais estético do que intelectual. As frases perfeitas são tão verdadeiras ou falsas como as outras. Não luto com monstros nem olho para abismos, por precaução, só venho à superfície respirar, tomo banho todos os dias. Já só me falta o génio e cicatrizante para os lábios.

22 setembro 2004

Battlestar Galactica na Rua de São Pedro

Somos a geração mais melancólica ou estamos com a idade mais melancólica. Recomeçou ontem à noite a Galactica (SIC Radical). Quando acabou a reposição do primeiro episódio tive vontade de ir tocar às campainhas do Armando, do Pedro, do Paulinho, do Eduardo, do Paulo Sérgio,... para descerem à rua e começarmos a decidir quem é o Apollo e quem é o Starbuck. Mas o Eduardo mudou-se para o Porto, o Paulo Sérgio para o Algarve, o Paulinho regressou há pouco do Brasil e não sei onde está, muitos dos outros vivem em Alfa de Centauro, Aldebarã ou outros lugares longínquos com nomes suburbanos e a nossa rua é a de uma cidade-fantasma, por onde rolam aquelas plantas redondas dos westerns. Só o Armando e o Pedro é que continuam mais perto, mas somos poucos para formarmos uma esquadrilha de caças inter-galácticos.
O grau de sofisticação da tecnologia e dos efeitos especiais não é tão elevado e a ingenuidade da história e dos diálogos é maior do que me lembrava, mas não deixa de ser a melhor série de ficção científica de sempre.

(Armando, está bem, como és louro podes ser o Starbuck. Eu fico com qualquer outro, desde de acabe com a irmã do Apollo.)

16 setembro 2004

(Blood), Sweat and Tears

Foi com surpresa que acordei hoje de manhã, pois julgava ter assistido ao fim do mundo ontem à noite, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém. Cerca de vinte actores-bailarinos apresentaram o resultado final de um estágio orientado por Jan Fabre, com uma coreografia intitulada (Blood), Sweat and Tears. E houve de facto muitas lágrimas, muito suor e, provavelmente, muito sangue nas múltiplas hemorragias internas que os espectadores iam adivinhando nos corpos contorcidos e maltratados dos actores. (Talvez essa a razão para o Blood estar entre (), por o sangue ser interno.)
Há um fenómeno psicológico qualquer em que as vítimas começam a sentir simpatia pelos seus raptores. Só consigo encontrar essa justificação para o facto de ter gostado muito do espectáculo, apesar da prova psicológica a que fui submetido nos primeiros vinte minutos de corpos contorcidos, de choros e de gritos. Depois, corpos vestidos de negro, semi-vestidos de negro e nús; com muito suor e lágrimas e a utilização inteligente de um texto escasso. Sentia-se que a coreografia conseguia despertar emoções extremas não só nos bailarinos mas também nos espectadores que, a julgar por mim, começaram a sentir-se fisicamente extenuados. No final, não houve standing ouvation, mas apenas porque uns, como eu, estavam demasiado cansados para se levantarem, e outros queriam esconder possíveis erecções.

(Obrigado Nuno Moura, vai-nos mantendo informados.)

15 setembro 2004

Quando se começa a instalar um silêncio constrangedor, é habitual falar-se do tempo. Segundo o Instituto de Meteorologia, a previsão do estado do tempo no continente para amanhã é de céu geralmente limpo, com vento fraco (inferior a 15 Km/h) soprando moderado (15 a 25 km/h) de noroeste no litoral oeste durante a tarde. Pequena subida da temperatura, em especial nas regiões do interior. Neblina ou nevoeiro matinal. Para os dias seguintes, espero que o Vítor suba à superfície ou que caia uma boa trovoada, para manter o interesse.

12 setembro 2004

Daqui a umas horas vou para o mar, cinco dias debaixo de água. Já quase me falta o ar. E o submarino não é amarelo. Atravesso o espelho para outra dimensão, um mundo diferente, mas apesar de tudo real. Tiago, este lado do espelho é todo teu.

A nova biografia de Eichmann faz de nós genocidas

O historiador David Cesarini acabou de publicar uma nova biografia de Eichmann, onde contraria alguns argumentos de Hannah Arendt no famoso livro "Eichmann em Jerusalém", escrito nos anos 60 (traduzido em Portugal pela Tenacitas o ano passado). Em "Eichmann: His Life and Crimes", Cesarini diz que o nazi burocrata que concretizou a Solução Final à secretária, não só distinguia o bem do mal, como, apesar de não ser um psicopata, "aprendeu a odiar os judeus". Com isto ele conclui que uma pessoa à partida normal pode transformar-se num genocida, uma teoria que, aliás, não choca com a de Arendt, pelo contrário.

Numa entrevista ao Público, por Cláudia Monteiro (28 Agosto 04), Cesarini diz:

"A maioria das pessoas pensa que nunca poderia estar neste papel, que indivíduos perfeitamente normais nunca cometeriam este tipo de crime. O que Eichmann nos ensina é precisamente o contrário, que um ser humano normal pode tornar-se naquilo que os franceses chamam 'genocidaire', fora do quadro das explicações psicológicas e das explicações políticas sobre os regimes totalitários" - vejamos a Bósnia, Ruanda, Sudão: todos os assassinos são psicopatas ou robôts às ordens de um governo ou ideologia? Onde é que está a linha que separa a guerra do genocídio?

"Existem pessoas em Portugal que lutaram em guerras coloniais brutais e que não são psicopatas" - quem conhece antigos combatentes sabe o que fizeram esses jovens na guerra e o que eles não teriam feito se para lá não os tivessem levado. Mas aí, mais uma vez sobrepõe-se o colectivo ao individual, que é uma ordem do governo que condiciona a experiência dessas pessoas. Nunca tivessem ido à guerra, e nunca teriam matado um ser humano.

"A terrível verdade é que os seres humanos em situações de conflito são capazes de cometer genocídio" - será que a nossa espécie está assim tão condenada como diz Cesarini?

Ver artigo no Guardian sobre o livro.

Há vezes em que triunfa o bem: uma lição do 11 de Setembro

As torres caíram há três anos. E o mundo mudou mesmo, como previram os comentadores, poucas horas depois dos atentados. A propósito do último post, sobre Hitler e por que o bem não triunfa no mundo, uma correcção: os passageiros do voo que se dirigia para Washington e que fizeram despenhar o avião numa zona sem perigo para terceiros, deviam ser os ícones do triunfo do bem moderno. Morreram. Morreriam de qualquer forma. Mas não morreram em vão. Há gente que está viva e nem sabe estar em dívida para com eles. O mal absoluto também foi derrotado pelo bem nesse dia.

10 setembro 2004

O lado humano de Adolf Hitler

O filme sobre os últimos 12 dias de Hitler, "Der Untergang" (O Crepúsculo), do realizador Oliver Hirchbiegel, só estreia no dia 16 na Alemanha, mas já está a criar polémica. Porque a figura do líder nazi aparece humanizada, e por depois de Auschwitz não ser aceitável mostrar o lado humano de um ser assim.

Mas é bom que se mostre o lado humano de Hitler.
Para que vejamos como um ser humano, de carne e osso, como outro qualquer, consegue tornar o mal ao mesmo tempo mais absoluto do que uma catástrofe natural, e tão banal que toda uma sociedade o aceitou e seguiu ao longo de anos. O pior que o monstro pode encerrar é essa humanidade, essa semelhança com cada um de nós, no beijo a uma amante, na festa a um animal doméstico, na fragilidade quando se aproxima do fim. É muito fácil defendermo-nos da impossibilidade de erradicar o mal do mundo concentrando toda a culpa numa aberração da natureza como pensamos que Hitler foi. Realçar o lado humano dele é espalhar por todos nós a culpa de o bem não triunfar em definitivo, que é o retrato do mundo em que vivemos...

Helena Ferro Gouveia, correspondente do Público em Berlim escreve (na quinta-feira, dia 09 de Setembro) que o "'Die Welt' recorda que cada vez que a Alemanha se confronta com o III Reich isso é ocasião para debater sobre o trauma alemão e a 'normalidade'". Jornais britânicos acusaram os alemães de estarem a fazer o papel de vítimas. É uma polémica a seguir com atenção.
"Eu sou a luz do mundo!", disse o homenzinho. E abriu a mão, ofuscando a pequena multidão que aguardava, ansiosa, naquela cidadezinha americana, a exibição do pedacinho de sol que ele tinha roubado nos destroços da sonda despenhada.

08 setembro 2004

A Sonda Caída

Tentámos capturar raios de sol para investigação mas, como tem acontecido nos últimos milhões de anos, eles despenharam-se sobre a Terra. Mais intacto do que a sonda, também eu estou de regresso à Terra depois de umas férias sem diário.

06 setembro 2004

Viver com a loucura da realidade

Passaram quatro dias. Os mortos quadriplicaram naquela escola. Porquê a loucura? Ou o horror... o horror, como repetia Marlon Brando em Apocalypse Now. Sempre que perguntamos porquê e não há respostas (porque a razão não encontra razões para certos tipos de mal), damos com algo em que não conseguimos pensar. Como é que, como seres humanos, nos podemos reconciliar com esta realidade, com todas as realidades do que não devia ser mas é? Hannah Arendt dá uma das respostas possíveis em Essays in Understanding 1930-1954. Para sobrevivermos a tudo isto, e ao resto, é preciso encontrarmos o nosso lugar na realidade sem nos resignarmos a ela:
(...) to find my way around in reality without selling my soul to it the way people in earlier times sold their souls to the devil. (citado em Evil in Modern Thought, de Susan Neiman, Princeton University Press)

Menos loucos do que os sãos são os loucos. A loucura está ali na esquina à nossa espera, basta ligar a TV, tão palpável como esta mão. A loucura alienada de quem vê o que não existe é uma benção divina que protege uns eleitos daquilo que é real. Não vender a alma à realidade pode ser tão alienante como viver do outro lado do espelho.

03 setembro 2004

A loucura...

...mais recente vai em 150 mortos e 550 feridos. Na Ossétia. O mundo existe para nos enlouquecer.

O espelho da loucura

Mês e meio depois do terramoto de 1755, Voltaire escreveu esta carta a um pastor protestante:

"Tenho pena dos portugueses, como vós, mas os homens continuam a fazer mais mal uns aos outros no seu pequeno montículo de terra do que a natureza lhes faz. As nossas guerras massacram mais homens do que a terra engole em terramotos. Se neste mundo apenas tivéssemos de temer o inesperado acontecimento de Lisboa, ainda devíamos estar numa situação tolerável".

Avançamos 250 anos. O mundo está o mesmo. Pensamos naquilo de que vivamente melhor nos lembramos dos noticiários mais recentes, e a conclusão não é diferente do que o mesmo Voltaire pôs na boca de um dos seus personagens em Cândido: Martin concluiu que o mundo existe para nos enlouquecer. Vivemos do lado real do espelho, onde habitam os corpos, mas tudo o que é verdadeiro é cada vez menos tolerável.

01 setembro 2004

A sobrevivência ao mal segundo Mefistófeles

Diz Mefistófeles a Fausto:

Deste mundo tosco que estás a ver
Por mais que faça, e pouco não é
Não vejo jeito de nele tomar pé;
Ondas, borrascas, fogos, terramotos -
E terra e mar continuam intactos!
E os homens e os bichos, essa raça maldita?
A esses nem consigo chegar:
Quantos não levei já a enterrar!
E sempre sangue fresco gera nova vida.

Fausto, de Goethe, trad. João Barrento, Relógio d'Água

Pois por pior que tudo esteja, tudo vai seguindo.
Como escreveu Cesariny no poema Pastelaria: Afinal o que importa não é haver gente com fome/porque assim como assim ainda há muita gente que come

31 agosto 2004

Zero e infinito no Olimpo

Penso nos Jogos Olímpicos, em dois tipos de modalidades: nas que tendem para o zero e nas que tendem para o infinito, e na possibilidade de podermos ser cada vez melhores.

Nas que tendem para o zero (como em todas as corridas de atletismo), quando mais próximo do zero chega um atleta, melhor. Um dia que chegue a zero, o mundo acaba, porque essa é uma façanha impossível. Mas se o desporto não é finito, e se as melhores marcas caem todos os anos, porque razão não há ninguém que se ultrapasse tanto a si mesmo de uma só vez, que nenhum outro humano consiga vencer aquele espaço em tão pouco tempo?

O mesmo se passa nas modalidades que tendem para o infinito (como nos saltos em altura, à vara, em comprimento, no lançamento do peso ou do dardo, etc): não há ninguém que consiga uma marca tão impossível de alcançar, por estar tão perto do infinito, que mate qualquer futura tentativa de superação?

Penso que só há uma resposta possível, embora bifurcada: os humanos são tão imperfeitos que é sempre possível aparecer alguém com um maior grau de perfeição; e é verdade que podemos ser sempre melhores do que no nosso momento anterior, de modo a nos superarmos a nós mesmos nas circuntâncias mais difíceis.

30 agosto 2004

Missão aborto, missão abortada

O facto da Marinha de Guerra controlar o barco do aborto que navega em águas internacionais até seria uma boa medida se o ministro da Defesa também fizesse o Exército avançar com tropas para a fronteira com Espanha, de modo a impedir as portuguesas grávidas de irem a Badajoz fazer abortos nas clínicas da cidade.

Mais eficaz seria até, se, no regresso delas a território nacional, a tropa examinasse as referidas portuguesas, de molde ao Estado aplicar a lei tal como ela está redigida, entregando as mulheres que tivessem de facto abortado em Espanha às autoridades judiciais, pois o que temos diante de nós é uma violenta e deliberada violação da lei que rege esta abençoada Nação.

(Sejamos corajosos. Vamos até ao fim, contra essa gente estrangeira que nos conspurca os costumes. Qualquer dia até aparece por aí outro barco holandês chamado "Grass on the Waves" a levar os nossos jovens a fumar charros no mar alto, ou, pior do que isso, até me arrepia de pensar nisto, um barco com uma lanterna vermelha chamado "Red Light Boat", com profissionais sexuais que satisfazem legalmente qualquer passageiro desde que seja no mar alto e balanceante.)

Ora, como as clínicas de Badajoz não navegam em águas internacionais para se deslocarem de motu próprio até Elvas ou à Figueira da Foz - porque estão presas ao chão -, para aí praticarem a abortiva ilegalidade, e como a inexistência de fronteiras não impede as portuguesas praticarem esse crime em Espanha, então o ministro da Defesa devia mandar a Força Aérea bombardear as referidas clínicas espanholas por incitarem ao ilícito (legal e moral) deste lado do Tratado de Tordesilhas. (Como seríamos virtuosos se não fossem esses desavergonhados estrangeiros).

Nas Forças Armadas, comandadas por um líder iluminado, reside a salvação nacional. O POVO ESTÁ COM O MFA! Até já estamos a ver os raides das Forças Especiais às clínicas clandestinas onde se pratica o aborto ilegal nas más condições sanitárias que tanto preocupam o ministro. Esta preocupação com as condições sanitárias ainda vai desgraçar o dr. Portas, pois, como todos sabemos, é um dos argumentos a favor da legalização.

A vinda do barco é, de facto, uma operação propagandística, e isto é inegável, mas, como defende Pacheco Pereira no Abrupto, a posição do ministro da Defesa (aliás, do Governo) é simetricamente um espelho da outra: "Agora que o governo português resolva actuar como um espelho do Bloco, como um grupo radical de sentido contrário, com todos os tiques do radicalismo ideológico, com a agravante de abusar dos meios do Estado, é que coloca uma questão muito mais grave do que o folclore do barco. Se o barco foi uma provocação, este governo respondeu-lhe ao mesmo nível".

28 agosto 2004

O jornalista vai à fonte e parte o cantarinho...

Todos aqueles que foram a favor da revelação das gravações (imprudentes ou ilegais, conforme a opinião) do jornalista do Correio da Manhã, Octávio Lopes, deviam ler com atenção dois artigos na revista The Economist do dia 21 de Agosto (artigo em editorial e peça jornalística).

Enquanto em Portugal são os próprios jornalistas que honram os leitores com a revelação das fontes dos outros jornalistas, nos Estados Unidos, um jornalista da Time, de seu nome Matthew Cooper, foi condenado a prisão efectiva de 18 meses (ou multa de mil dólares por dia) por não revelar uma fonte sensível da Casa Branca que lhe passou uma história: Copper escreveu, no Verão passado, que Valerie Plame, mulher do ex-embaixador que passou a informação aos media de que o famoso urânio nigeriano nunca tinha sido vendido ao Iraque, era uma agente encoberta da CIA.

Ora, toda esta história é muito complicada do que isto, mas o que importa é reter o seguinte: o jornalista (e outros três repórteres acusados) não revela a fonte porque, embora sendo do interesse público saber quem, na administração Bush, quis "lixar" o embaixador pondo em perigo a agente secreta e as pessoas a ela ligadas, há um valor superior que é o da liberdade de imprensa. O editorialista da Economist, escreve: "If reporters were routinely forced to identify confidential sources, those sources would dry up and the public would lose potentially valuable information. The public should not want the media to be servants of the legal system any more than it wants them servants of government".

No caso português, o mais triste é que não foi um tribunal a forçar um jornalista a revelar as suas fontes - o que, de resto, o transformaria num mártir da classe -, mas terem sido camaradas de profissão a fazê-lo. As consequências de quaisquer erros que tenham sido cometidos deveriam recair directamente sobre o jornalista e seus superiores, por cometerem ou permitirem que se tenham cometidos falhas grosseiras durante o exercício da profissão. Quando as consequências recaem apenas sobre as fontes, como aconteceu - que, caso não mintam, se arriscam pessoal e profissionalmente a passar informações de interesse público -, é a própria democracia a ficar em perigo.

Se o jornalista vai à fonte, tem de trazer o cantarinho inteiro, ou então acaba um dia morto à sede.

24 agosto 2004

A Pepsi e a Coca-Cola

As marcas dominam a nossa mente sem nós o sabermos e se compramos marcas é porque confiamos no rótulo: podemos comer e beber isto ou aquilo e sabemos que não vamos morrer envenenados, ou podemos comprar este ou aquele detergente porque não nos vai dar cabo da roupa. Na política as coisas passam-se mais ou menos assim, sendo que a marca com maior notoriedade não é forçosamente a mais confiável, se é que ainda há marcas absolutamente confiáveis na política.

Ora temos assim duas marcas que vão degladiar-se no futuro próximo: a PSL, dos produtos Pedro Santana Lopes, e a JS, das produções José Sócrates.
A primeira, é uma marca popular com notoriedade firmada, líder de mercado, apesar de todos os que também a detestam. PSL é como a Coca-Cola, que se acha a maior e age como sendo a maior.
A segunda é uma marca que tem uma quota de mercado mais baixa, mas que quer chegar à liderança, e por isso procura posicionar-se de maneira diferente, apesar do seu sabor ser praticamente igual à anterior. JS é como a Pepsi, que não se apresenta como uma igual à Coca-Cola, mas como algo de novo, mesmo sem o ser: "The choice of a New Generation" (a escolha de uma nova geração). A escolha é da nova geração, mas nada sabemos sobre o produto, sobre o que é que o torna diferente da concorrência. José Sócrates já deve ter interiorizado isto de tal maneira que, na entrevista a Maria Henrique Espada, no Diário de Notícias de sexta-feira, dia 20, afirmou: "Sou um candidato de uma nova geração (...)". É o candidato Pepsi...


16 agosto 2004

O jardim dos cactos abandonados

Sábado à tarde, um calor seco no ar, e onde ir evitando os lugares de sempre... Uma ideia: o jardim botânico de Belém, euro e meio a cada um à entrada (a Carla é que pagou), passeio sossegado, jornais de fim-de-semana enfiados no saco do Expresso, lagos, água, gansos, sombra, turistas raros, portugueses ausentes, um abandono. O lugar, partes do lugar, ao desleixo, e um casal de noivos aviado nos Jerónimos em preparos diante do fotógrafo.
Num portão semi-aberto, alguém se esqueceu de pôr a placa "proibido entrar". Lá dentro, um delicioso jardim de cactos continua a ser um jardim de cactos porque os cactos podem ser deixados ao abandono e mantêm-se a cactotuar vida fora. As estufas destruídas, em ruínas, lixo e dejectos de jardinagem pelos cantos do caminho, e os cactos, com os picos ainda mais de fora, assanhados como fazem os cactos zangados, enrodilhados em árvores antigas, ora estrangulando-as ora confortando-as, erguendo-se com braços ameaçadores contra quem ousa profanar o santuário. Há um certo encanto na decadência, como se num lugar antigo e abandonado sedimentassem as memórias esquecidas. Mas o sinal da nossa decadência é deixar que lugares assim não sejam mais do que memórias forçadas ao caminho do esquecimento, a vitória da incúria. Uma vergonha. Alguém se acusa?

08 agosto 2004

Sabonetes ao poder

É injusto dizer que Santana e Sócrates são iguais. Quem olhar com atenção percebe que os dois são diferentes: o primeiro-ministro tem uma personalidade quente, emocional, é um improvisador, um espontâneo movido pelo combustível da reacção às acções dos outros; o candidato a secretário-geral do PS é frio, absolutamente cerebral, e contido ao ponto de avaliar cada gesto e cada palavra.

A zona de intersecção entre ambos é o instrumento para chegar ao mesmo fim: a comunicação social, a fábrica das imagens, e as intervenções cheias de nada.

Há umas semanas li dezenas de entrevistas e artigos de Santana Lopes publicados na imprensa desde os anos 90. A sua capacidade impressiona: é capaz de escrever lençóis de textos sem dizer absolutamente nada, sem deixar trair-se por uma ideia. É preciso peneirar milhares de linhas sobre a vida partidária para encontrar um conceito, um rumo de pensamento sobre o país, ou a defesa de uma medida. Sócrates também provou, nas últimas semanas, que é igual. A entrevista das citações ao Expresso foi um desastre, o artigo sobre o plano tecnológico no Público é um conjunto de generalidades que toda a gente defende, e a página do Diário de Notícias, dirigida à ala esquerda do PS, serviu mais para esconder do que para mostrar o que pensa.

Bem-vindos ao país moderno! Já houve quem quisesse vender Presidentes da República como se fossem sabonetes. Agora temos sabonetes que são ou querem ser primeiros-minstros.

07 agosto 2004

Postal atrasado: gelataria acrobática

Este é um daqueles postais que mandamos aos amigos e chegam à caixa do correio muito depois de termos regressado de viagem, e encerra os posts das minhas férias:

Trojir. Croácia.
O Adriático é o mar veneziano. Enquanto percorremos a costa, damos com cidades que são pequenas venezas, embora sem os canais: os palácios, os arcos nas janelas, as ruas labirínticas, as piazzetas, os turistas. E os gelados. Muitos gelados, quase tão bons quanto os italianos. Mas naquela gelataria - não mais do que uma arca congeladora ao ar livre -, na marginal de Trojir, em frente a um dos grandes iates ali atracados, descobri uma daquelas pessoas que faz de um emprego banal um ofício e uma arte.
A arca dos gelados estava cerca por turistas e crianças, de notas na mão, a pedirem uma, duas, três bolas. O rapaz pegava num cone, tirava um sabor bem redondo com a colher e depois atirava o gelado ao ar, uns três ou quatro metros, e apanhava a bola de natas atrás das costas, a de chocolate caía directamente em cima da de natas e, na de morango, dava três voltas sobre si mesmo, para o gelado acabar composto e na mão de quem pagou para ver. Puséssemos nós, assim, em tudo o que fazemos, aquele pedaço de alma que dá encanto às coisas...

30 julho 2004

Miguel Torga, Diário I
Coimbra, 18 de Dezembro de 1937 – Cá estou eu. Sei que estas notas não têm pés nem cabeça, que o dia registado como eu o registo é uma coisa semelhante àquelas pílulas alimentícias, onde o estômago, na sua orgânica necessidade de se sentir cheio e farto, não consegue valorizar os mistérios da concentração.
Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário.
Dito isto, embarco amanhã para a Europa.


Eu também, para Roma. Não sei se vou conseguir ir alimentando um diário nestes próximos doze dias, que são bichos de comem muito. Especialmente os de viagem, de bordo, onde sentimos necessidade de descrever tudo em todo o pormenor para não percebermos que andamos perdidos.

25 julho 2004

Viagens modernas III: as pessoas

Já falei de Guido, o académico dálmata, descendente de portugueses, que pediu ao presidente da Croácia para deitar ao Tejo as cinzas do seu velho barco português, quando aquele visitou a Expo'98. As pessoas são o conteúdo das viagens, que enchem o espaço que nos é aberto pelos lugares. Lugares com gente lá dentro: assim deviam ser todas as viagens modernas.

Da minha última viagem trago apenas mais duas experiências relevantes com os locais, porque era difícil falar com os croatas, que dominam poucas línguas, porque não saí à noite, o que é excelente para meter conversa, e porque as pessoas com quem falei não queriam responder às minhas perguntas.

E o que quer saber um português numa terra como aquela? Como se vive com a memória de uma guerra tão recente. Perante isto, até o passado comunista da ex-Jugoslávia perde o interesse (uma senhora muito animada e simpática, que falava um alemão macarrónico tinha uma bela biografia de Tito à cabeceira de um dos seus quartos para alugar, e uma prateleira cheia de volumes sobre o ditador, Estaline e o socialismo. Mas a comunicação era impossível).

Um homem, na galeria de arte de Dubrovnic, parecia o interlocutor ideal: afável, talvez culto, jovem e fluente em inglês. Peguntei-lhe de quem eram os quadros e as esculturas. Ele respondeu que eram de artistas croatas, bósnios e macedónios. Tinha ali a minha deixa. Confessei que tinha tido dificuldade em fazer esta pergunta ao longo de quase duas semanas e atirei: "Como é que vocês olham hoje uns para os outros, 10 anos depois da guerra? Como é que convivem com essa memória?". Ele ficou calado. E eu senti-me a devassá-lo. Depois, levantou os olhos e disse, que "agora as coisas estão melhores, mas há sempre quem queira continuar a causar problemas". Fez uma pausa. Tinha os olhos marejados, e não estou a exagerar. E disse: "Falar sobre isso é muito difícil. Procuramos esquecer-nos todos os dias para tentarmos levar uma vida normal". A seguir, pensei no que sentiria se alguém tivesse bombardeado sete meses seguidos a minha cidade natal, destruindo a maior parte dos monumentos e matando os meus amigos. Há feridas abertas que nunca saram.

Guardei outra história, mais pitoresca, mas reveladora. O Afonso ia a conduzir o carro ao lado da Blandina, eu e a Carla íamos atrás, entre Sarajevo e Mostar, na Bósnia. Um polícia mandou-nos parar. Falou um inglês arranhado e disse que íamos a 104 km/h numa zona onde só podíamos ir a 90. Era caso para multa. Pediu os documentos. Mal olhou. Disse que eram 30 unidades da moeda bósnia. Respondemos que não tínhamos, porque só estávamos um dia no país. Quisemos saber se aceitava euros ou kunas croatas. Quis euros: quinze euros. Demos-lhe duas notas de 10, ele pegou numa, deu-se por satisfeito, "assim está bem", e mandou-nos seguir.


Viagens modernas II - riscar coisas da lista

"Uma das coisas que mais me irrita no facto de ser turista é a minha própria cumplicidade no hábito de riscar coisas numa lista. Os Giottos - feito, Igreja dos Eremitas - feito, Piazza dei Signori - feito, e assim por diante. Quem quer saber? como um qualquer peregrino medieval, ali estava eu a acumular pontos junto de... junto de quem, exactamente? A quem iria apresentar a minha caderneta? Há algo de estranhamente religioso, no sentido mais conservador, no turismo moderno."
in Cartas de Veneza, Robert Dessaix
Gótica, pag. 191

Ir de férias é um momento único nestas vidas que levamos. A fuga é tanto mais saborosa quanto para mais longe formos, como catarse de todo um ano a aturar aquela gente no emprego. Ir aos lugares e vê-los é pouco (ver post abaixo). Não saio de uma cidade sem ver aquilo que é obrigatório, mas saio frustrado se me for embora sem perceber o que vi. Percorrer a lista não chega, olhar para pedras antigas é pouco, conhecer as histórias por detrás do que vemos é que é importante. E nem sempre consegui esse equilíbrio nestes 15 dias em Veneza, na Croácia e na Bósnia: Veneza merece uma visita de Inverno para nos embrenharmos nas histórias; Dubrovnic, no sul da Croácia, merece tempo (também em época baixa para fugir do terror do turismo de massas) porque é uma das cidades mais encantadoras que já vi; o mesmo serve para Mostar, na Bósnia, onde ver as diferenças entre os habitantes de uma e outra margem é essencial.

Riscar os lugares que já vimos na nossa lista de sítios obrigatórios, como numa romaria, é fundamental, mas pobre. O que faz os lugares são as pessoas, as falas, os hábitos, as comidas, os cheiros.

Por isso, a pior maneira de se viajar é em pacotes organizados, apesar de um amigo que tem uma agência passar a vida a tentar impingir-mos. Já fiz duas viagens dessas: uma à Turquia, porque era barato, e outra ao Egipto, porque era a melhor maneira de o fazer. Neste estilo de viagem empacotada é tudo automático e pouco mais fazemos do que riscar da lista os lugares que já vimos. Ao fim de uns dias estamos como aqueles turistas americanos que vieram fazer um tour pela Europa. Depois de uma semana e de quatro países, Bill perguntava a Tom: "Onde é que estamos hoje?" E o amigo respondia: "I do not know. But it's friday, it must be Belgium..."


Viagens modernas I: ver, ver, e nada acontece

Cheguei! A Joana está mais velha (parabéns mais uma vez!), acompanhando o envelhecimento da fotografia lá de casa, e eu sem poder assisitir ao vivo à transmutação etária anual da minha amiga, e sem ter comido a parte que me cabia no bolo que foi chocolate... Para o ano cá estaremos.

Primeira impressão à chegada: o país está igual, o aeroporto também, só nos jornais se nota que o Santana já é primeiro-ministro. Está muito calor em Lisboa, quase tanto como ontem à noite junto ao Grande Canal em Veneza, pelo que daqui se infere que é verdade a berlusconização da vida portuguesa: quando a temperatura política sobe demais, mau sinal para todos nós. É divertido mas não é bom.

Última impressão à saída: por que viajamos nós? Entro no avião, sento-me, fasten my seat belt, alimento-me de sandes que a TAP agora faz o favor de proporcionar aos que viajam em turística, e recordo as parte do livro Cartas de Veneza, do australiano Robert Dessaix (Ed. Gótica, 2002), em que os personagem se interrogavam sobre o que os levava a viajar. A propósito, é um belo livro para se ler numa viagem, sobretudo se tiver uma paragem em Veneza. É uma sensação de proximidade com o autor olhar para as mesmas coisas que os personagens.

Mas sobre as viagens, dizia o Professor Eschebaum, de Dessaix: "Na verdade, um em cada dois livros que lemos é sobre um qualquer tipo de viagem, não é? E estamos constantemente a falar de caminhos da vida... trilhos, estradas, progresso, etapas e por aí fora... tudo metáforas relacionadas com o viajar, se pensarmos bem nisso".

O narrador, que escrevia as cartas em Veneza, tocava num ponto ainda mais essencial, que mais tarde ou mais cedo todos sentimos, quando o cansaço nos abate: "A verdade é que não há muito que fazer em Veneza, excepto ver. não se vem aqui para fazer o que quer que seja, mas simplesmente para ver coisas. Assim são as viagens modernas. Cheias de movimento, mas nada acontece verdadeiramente. Começo a ansiar por outro tipo de viagem".

Se gastamos todo o dinheiro que poupamos em viagens, não será apenas para ver, mas também para aprender, para viver, para nos sentirmos mais vivos, para encontrarmos "sabedoria e êxtase", também escreveu Dessaix, citando Paul Bowles. E pela procura de um certo encantamento.

Pela minha parte, esta viagem aos Balcãs ajudou-me a encontrar mais uma justificação: viajar ajuda-nos sobretudo a encontrar  e a perceber o nosso lugar no mundo. Essa evidência tornou-se quase palpável enquanto passava por bairros residenciais na Bósnia ou na Croácia e via as marcas das balas nas casas onde estava roupa estendida na janela.

22 julho 2004

A Joana faz anos, mas não muitos. Já andei pela casa à procura do retrato que envelhece por ela. Fez um bolo de chocolate, que irá atormentar-me toda a manhã, com o seu ar caseiro, apetitoso e intocável em exposição na banca da cozinha.
Deixem-lhe mensagens simpáticas nos comentários.

21 julho 2004

Aviso de recepção

Obrigado pelo postal. Não é comum recebermos postais de férias com imagens de cidades em ruínas e reconstrução. Vai já mentalmente para a porta do frigorífico, suspenso por um íman. Bom regresso.

Um postal da Bósnia (versão acentuada e cedilhada)

Dubrovnic. Croácia.
Ontem passámos o dia na Bósnia-Herzegovina. Dez anos depois, e a guerra continua demasiado visível. Ao longo da estrada, de Split para Sarajevo, percorremos uma paisagem deslumbrante, de planaltos e planícies pontuados por casa metralhadas e montes de feno, depois com montanhas rochosas e mais tarde floresta densa, quase alpina. Cruzámo-nos com militares portugueses, perto da capital. Soube depois que um tropa nosso tinha morrido na semana anterior num acidente estúpido, perto de Tuzla. Há portugueses que vêm morrer a esta terra em nome de uma paz que talvez seja para sempre hesitante. 

À entrada de Sarajevo começamos a ver os buracos da balas nas casas, os prédios destruídos, as placas nas paredes com o nome dos mortos civis que tombaram naqueles lugares, e as pessoas na sua vida normal. O estranho nestas cidades são as marcas nas paredes e os habitantes, tal como nós em Lisboa, aparentemente no seu quotidiano banal. As marcas nas paredes são evidentes, as marcas no íntimo de cada bósnio não são visíveis. Também não perguntei, não procurei saber mais, estivemos pouco tempo na cidade. Num lugar onde a seguir a uma mesquita aparece uma igreja católica, onde logo depois de vermos e ouvirmos o canto do "muezzin" numa mesquita, damos com uma igreja ortodoxa e, num recanto, a um quarteirão de distância, se ergue uma sinagoga, num lugar assim, ou encontraríamos o paraíso da tolerância, ou as coisas haviam mesmo de dar para o torto.

Na velha biblioteca de Sarajevo uma inscrição dizia que esta tinha sido incendiada pelos "criminosos sérvios". Está a ser reconstruída com a ajuda internacional e exibia uma instalação de um artista plástico, que enchia os velhos nichos onde um dia tinham estado os antigos volumes com sacas de sarapilheira (como as que servem para as barricadas), livros, sacos-sarcófagos, pedras. Tocante.

Seguimos para Mostar, onde só chegámos à noite, para vermos a ponte secular que tinha sido destruída pelos próprios bósnios-croatas, em combates contra as milícias muçulmanas. Entrámos pelo lado muçulmano, onde os jardins públicos e a frontaria de casas estão cheios de lápides de vítimas dos bombardeamentos, enterradas a pressa. Passámos para o outro lado do rio, onde um em cada quatro predios está completamente esventrado. Na zona velha encontramos, porém, uma cidade em festa: Mostar 2004. A ponte que simboliza a ligação entre as culturas está pronta. Foi reconstruída com a ajuda da Unesco. Vai ser inaugurada amanhã, sexta-feira dia 23 de Julho, com a presenca de personalidades de todo o mundo. À noite, iluminada assim, com uma luz amarelada, vista dos restaurantes à beira rio, temos uma bela imagem: a de uma vida nova. Talvez o futuro venha a ser melhor.

Seguimos para Sul. Hoje chegámos a Dubrovic, um enclave croata que esteve cercado sete meses pelos sérvios e montenegrinos. A maior parte da cidade foi bombardeada. A maior parte ja foi reconstruída. É património mundial. Um lugar invejável. Que devia fazer-nos pensar. Esta guerra foi demasiado perto de nós. E nunca tivemos essa percepção de proximidade, quando olhavámos para aqui a partir de Portugal.

Um abraço. Nos próximos dois dias regressamos a Portugal via Veneza. Ainda temos muitos quilómetros à nossa frente.

19 julho 2004

Guido, o dálmata português

Split. Croácia. Guido apareceu-nos estávamos a descansar no pátio da casa-museu do famoso escultor croata, Ivan Mestrovitć, na zona alta e antiga de Zagreb. Estão a falar português, percebi, disse-nos antes de mais. E dirigiu-se-nos em espanhol. Alto, magro, de olhos azuis, e cabelos grisalhos, um misto de marinheiro, estudioso e viajante mediterrânico, garantiu que há quinhentos anos a sua família tinha vindo de Portugal, embora sem ter explicado porquê. Depois, este professor de história de arte que fora director daquele museu durante alguns anos, contou-nos esta curiosa história: Na sua terra Natal, Split (onde escrevo num pequeno ciber-café, apesar de a Carla questionar que necessidade tenho eu de vir escrever em férias), mantém-se a tradição de queimar os barcos que são abatidos: depois, parte das cinzas são atiradas ao mar, enquanto outra parte vai num porte, para o barco novo do mesmo proprietário. E a família de Guido tinha um barco. E não só a família tem antepassados portugueses, como parece que o próprio barco era de origem lusa, provavelmente de Lisboa. Quando resolveram comprar uma embarcação nova, queimaram a antiga, cumprindo a tradição na Dalmácia. E dividiram as cinzas. Uma parte foi para um pote, colocada como se num altar no barco novo; e a outra parte viajou, por vontade de Guido, até Lisboa, na bagagem do Presidente da Croácia, em 1998. O Presidente (decerto amigo de Guido, mas não entramos nesses pormenores), de oficial visita a Lisboa durante a Expo'98, transportou as cinzas com a missão de as devolver ao Rio Tejo. Tarefa que terá desempenhado com solenidade, quem sabe, porque Guido também não explicou muito mais, durante a nossa breve conversa. Guido, o académico dálmata, nunca foi a Portugal a procura das suas raízes, mas uma tia esteve em Lisboa e disse-lhe que era a cidade mais bela que já tinha visto.
 
Tiago, corrige-me por favor este texto, que o teclado croata obrigou-me a assassinar o português. 

 (Da cidade mais bela de todas as visitadas pela tia do Guido, já corrigi as faltas. Achava melhor ter deixado o texto como estava: mais exótico, com as dificuldades das férias em viagem por lugares afastados do quotidiano; mas cumpri o pedido. Boa viagem. Tiago Araújo)

Postal de um exilado na Croácia

Split. Croácia. Como um golpe de Estado é uma coisa que dá muito trabalho e comporta os seus riscos, resolvi não emigrar, mas exilar-me durante algum tempo. Quinze dias, de Veneza a Dubrovnic, ao longo de toda a Croácia, passando por Sarajevo e Mostar, na Bosnia-Herzebžgovina, tornou-se num suave e breve exílio para quem vê a pátria nesta estranha situação. A escolha do itinerário foi inocente, mas agora deixou de o ser, porque, ao tomar consciência do que sofreram recentemente estes povos mediterrânicos como nós, ganha-se alento para voltar a um país que está como está. Se eles recuperaram assim, pelo menos aparentemente, de uma guerra como foi a guerra na Jugoslávia espartilhada, também Portugal sobreviverá aos santanistas e às santanettes.
 
Split, na zona antiga, é um misto de cidade romana, com o palácio de Diocleciano a dominar tudo o resto, de cidade medieval, e de centro renascentista dominado por Veneza. Como devem calcular é um lugar belo, apesar do excesso de esplanadas (eles têm-nas a mais, enquanto nós as temos a menos), e do excesso de turistas, como eu, aliás.
 
Nunca tinha ido a Veneza. Trago de lá a maior vontade de regressar, de preferência no Inverno, com poucos turistas, para explorar a história e os significados de um lugar singular.
 
Zabreb é uma capital estranhamente calma, pelo que percebemos, com gente profundamente religiosa. Numa das portas da cidade antiga, um fresco da virgem com o menino, que sobreviveu a um incêndio no sec. XVIII, e adorada por quase toda a gente que passa: jovens, velhos, homens, mulheres, quase todos se benzem; uma boa parte faz uma pequena oração antes de prosseguir; e alguns ficam ali alguns minutos a rezar. Não deixa de ser impressionante num pais católico, até porque os católicos não são de mostrar assim tão em público a sua religião. Fez-me lembrar os muçulmanos nos países muçulmanos. Mas a religião define a Croácia, assim como a Sérvia ou a Bósnia, é preciso não esquecer estas estranhas fronteiras (estranhas quando observadas por um português). Disseram-nos várias vezes: "como é que foram perder com os gregos? Toda a Croácia estava a torcer por vocês". Claro, nós somos os irmãos católicos, e os gregos os inimigos ortodoxos. E claro que estas coisas são sempre muito mais complicadas do que parecem.
 
Está um sol fabuloso e hoje vamos voltar a gozar (eu, a Carla, o Afonso e a Blandina), um belo dia de praia sobre as rochas dálmatas suavemente banhadas pelas calmas e cálidas águas adriáticas.
 
Tiago, por favor, põe-me os acentos e as cedilhas nisto.

15 julho 2004

A imaginação segue dentro de momentos. Enquanto isso...

(a mão negra)

O extremo poder dos símbolos reside em que eles, além de concentrarem maior energia que o espectáculo difuso do acontecimento real, possuem a força expansiva suficiente para captar tão vasto espaço da realidade que a significação a extrair deles ganha a riqueza múltipla e multiplicadora da ambiguidade. Mover-se nos terrenos dos símbolos, com a devida atenção à subtileza e a certo rigor que pertence à imaginação de qualidade alta, é o que distingue o grande intérprete do pequeno movimentador de correntes de ar.
[...]


Herberto Helder, Photomaton & Vox

12 julho 2004

Comentário atrasado e bastante breve

O Presidente da República tomou uma decisão para o futuro, mas não para o presente. Quis reforçar a componente parlamentarista do sistema semipresidencial, mas o poder que reforçou foi o dos partidos, não o do parlamento. Privilegiou excessivamente o elemento representativo da democracia, em detrimento do participativo.

08 julho 2004

A Adília Lopes está (diz ela) com alguns problemas psíquicos e emocionais desde o último Natal. Escreve as cartas à mão. Deixou crescer o cabelo, que apanhou em rabo de cavalo apenas para um poema. Com a cabelo apanhado, talvez para ver melhor o papel de carta, escreveu um texto fantástico para o último número da revista Relâmpago, sobre como se faz um poema com um pouco disto tudo.

Citação para a depressão

Vira tudo nitidamente assim que passou o cume dos trinta, o mais alto e escarpado de toda a travessia. A surpresa e o doloroso desconcerto que então viveu foram os de alguém que desperta bruscamente de um plácido sonho. Pois, assim como um actor enganado pode actuar numa première convencido de que se trata apenas de um ensaio geral, também ele actuara na sua juventude convencido que mais tarde, só mais tarde, chegaria a hora do début. E ao descobrir que ela já passara, mergulhou imediatamente num desconcerto tão profundo e obscuro como o fundo de um poço.
Ricardo Cano Gaviria, O Passageiro Walter Benjamin

05 julho 2004

VI

Irmão do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
P'ra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impões
Leis que não são as minhas.
Teus pés batem a dança
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidias cintilas
Longas mãos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face de toira
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.

Sophia de Mello Breyner Andersen, «Homenagem a Ricardo Reis», Dual

02 julho 2004

Jorge Sampaio está a auscultar as mais altas individualidades do país. Não consigo deixar de imaginá-lo a mandá-las entrar para o seu gabinete, a pedir para se despirem da cintura para cima e a pegar no estetoscópio. «Inspire fundo,... outra vez. Pois, o seu pulmão esquerdo quer dissolução da Assembleia e o direito Santana Lopes.» Também estou a imaginar alguns a susterem a respiração, amuados, até lhes fazerem a vontade.

Morreu Marlon Brando. Como vi os filmes mais importantes em que entrou pela ordem inversa (Apocalipse Now, O Padrinho, Último Tango em Paris, Há Lodo no Cais, Um Eléctrico Chamado Desejo), foi para mim tornando-se cada vez mais novo: Stanley a gritar por Stella na base das escadas de uma casa do Bairro Francês de New Orleans. Saber que morreu hoje, num hospital da Califórnia, foi por isso uma surpresa, notícias de alguém de quem não me lembrava há muito tempo.

Um por todos, todos por nenhum

Um homem. Bastou a vontade de um homem para o país ficar num alvoroço e agora parece que ninguém serve. Isto assusta. Numa democracia não devia ser assim. A pluralidade devia ser sinónmo de existência de muitas escolhas possíveis. E de gente boa para escolher à direita e à esquerda.

Durão Barroso escolheu a Europa, e seria difícil a um português rejeitar essa oferta. Mas devia haver algum sucessor no Governo, membro do Governo e do partido, que as pessoas pudessem ver com naturalidade no cargo de primeiro-ministro, mesmo que não concordassem com ele. O mesmo se passa no PS. Se houver eleições, quem é que está a ver Ferro Rodrigues como primeiro-ministro, depois de ter provado que não tem esse estofo, pela maneira como reagiu ao processo da Casa Pia?

O rectângulo está em risco. Alguém nos acode? Retiro a proposta do golpe de Estado. Talvez não houvesse ninguém a quem valesse a pena entregar o poder. A dona Constança não quer entrar nesta festança?

Primeiro-ministro sob caução, não!

O FC Porto é Campeão Europeu, Portugal está na final do Euro 2004, Durão é presidente da Comissão Europeia. Fizémos o pleno. Mas no campeonato nacional ainda está tudo por decidir. Santana já lidera o PSD, mas as coisas em Belém não estão claras. Ninguém é capaz de afirmar hoje, com a mesma convicção de há uns dias, que Jorge Sampaio não vai convocar eleições antecipadas.

Há um cenário que tem sido lançado, mas é indesejável: o do Presidente aceitar Santana se ele levar nomes fortes para as pastas económicas. Se Santana Lopes for aceite por Sampaio levando como caução nomes tão fortes como António Borges (nas Finanças) ou António Mexia (na Economia), para garantir a credibilidade do Governo, esta seria uma má solução. Por quê? Ou bem que se confia em Santana, ou bem que não se confia. Nomeá-lo primeiro-ministro por causa dos seus ministros faria dele um débil chefe de Executivo, que teria de se demitir um dos seus ministros um dia se fosse embora.

Santana deve ser primeiro-minstro, se os portugueses votarem nas listas do PSD, em eleições antecipadas. Instabilidade por instabilidade, a instabilidade já foi lançada.

26 junho 2004

Santana ganha na secretaria

Afinal Durão Barroso sempre se vai embora. Santana Lopes deve ser o sucessor, com Paulo Portas a vice-primeiro ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Ao que este País triste chegou. Santana ganhou na secretaria aquilo que nem o seu próprio partido alguma vez lhe deu. Será que o próprio PSD aceita uma coisa assim?

Se Jorge Sampaio agir à Sampaio, ficará tudo na mesma. Sem eleições antecipadas. Com Santana e Portas à frente da nação. Os próximos meses vão ser muito animados. É a única certeza.

Do outro lado temos a pobreza que é a oposição do PS e a liderança de Ferro Rodrigues. Portugal está em situação de emergência. Ou fazemos um golpe de Estado ou emigramos.

24 junho 2004

Demoliram uma fábrica e o rio já nos corre frente à janela. É apenas uma faixa estreita de rio, a trezentos metros de distância, mas já dá para mergulhar, molhar imaginariamente os pés ao fim da tarde. É um salto para a água mais horizontal do que vertical, com elementos técnicos que contrariam as leis da gravidade. Dentro dela, a trezentos metros de distância, é mais fácil suportar o calor das águas-furtadas e a tarde de trabalho. Por vezes, um navio acosta e tapa-nos a vista com uma parede de metal; prolongamos ainda mais o exercício de transmigração e partimos com ele, clandestinos.
As eleições europeias, perdoe-se o atraso do post, trouxeram ao país uma estranha discussão: quem ganhou as eleições foi Ferro ou o Partido Socialista? O PS ganhou por causa de Ferro ou apesar de Ferro? O homem resistiu e sobreviveu. E agora arrisca-se a que um dia o poder lhe caia no colo. Mas os seus amigos no partido querem livrá-lo desse fardo. É uma original consequência do melhor resultado eleitoral de sempre para o PS.

Na coligação a coisa também é excêntrica. O PSD foi um partido canguru que levou na bolsa um pequeno partido vampiro que, não só se deixou transportar através da campanha sem mostrar o que na verdade diria se estivesse a concorrer sozinho, como sugou dois deputados laranjas e não reduziu a sua representação em Estrasburgo. O PSD foi, de facto, o único partido que perdeu as eleições.

Não admira que o PSD ande a pensar se é melhor ir sozinho ou acompanhado às legislativas. Que podem ser bem depressa, se Durão Barroso aceitar ser presidente da Comissão Europeia. Depois de Guterres ter fugido pela porta baixa depois da derrota eleitoral nas autárquicas de 2001, Durão quererá sair entronizado pela grande porta depois da derrota eleitoral nas europeias de 2004? Ao alimentar o suspense sobre o seu nome, Barroso passa o sinal de que o país é uma realidade secundária. Ou quererá dizer depois que é querido lá fora para ganhar credibilidade cá dentro?

Um regresso

Regresso ao blogue, como se o blogue fosse meu, como alguém que regressa a casa anos depois de ter desaparecido pelo mundo, e já não sente bem aquele lugar como seu. Este é o blogue do Tiago, cada vez mais, e sobretudo por minha ausência, mas também melhor por isso mesmo.

21 junho 2004

É um dos momentos mais reconfortantes do quotidiano, quando acabamos de ler um livro e vamos à estante escolher o seguinte. Não sabemos muito bem o que nos apetece, lemos a contracapa, avaliamos o peso e o volume, o índice de legibilidade em transportes públicos, o tamanho da letra, etc. De todos os critérios, o que mais utilizo é o da leitura do primeiro parágrafo. É tão falível como todos os outros, mas é por causa dele que vou andar a arrastar por Lisboa, nos próximos dias, O Passageiro Walter Benjamin de Ricardo Cano Gaviria:

Por momentos, precisamente ao sair do túnel que desembocava na longa escadaria, conduzindo às primeiras ruas da aldeia, a ilusão de uma placidez reconfortante foi quase perfeita. O forte banho de luz arrancou-o por um instante do espaço opressivo delimitado pelo quadrado betuminoso dos cais de embarque, onde tudo, desde as paredes raiadas da estação, até aos sombrios e distantes vagões colocados na via desactivada, passando pelo próprio olhar da criança que transportava as bagagens e oferecia os seus préstimos à comitiva, parecia albergar uma secreta correspondência com o boné cinzento dos polícias, com a voz inflexível do homem uniformizado que se recusara a carimbar-lhes a entrada no país, e essa espécie de nó na garganta desapareceu por completo. Ali estava de novo a luz mediterrânica que os acompanhara, rude e estimulante, durante toda a travessia a pé pela estrada Líster, e que agora os abandonava à sua sorte ao entrarem propriamente na aldeia, após o opressivo parêntesis da estação.

(Dedicado à Isabel, para que não cancele a sua assinatura anual)

16 junho 2004

«O rapazinho está fora de si. Abre caminho através da multidão, gritando, até à égua, abraça-lhe o focinho morto e ensanguentado, e beija-a, beija-a nos olhos, nos beiços...» (Crime e Castigo) Raskólnikov sonha com a infância, com um domingo em que passeia com o pai e vê um camponês bêbado bater no seu cavalo até à morte. No acto que despertou a loucura que o acompanharia o resto da vida, Nietzsche, em Turim, em 1889, corre para um cavalo que está a ser açoitado pelo cocheiro e abraça-lhe o pescoço. A influência de Dostoiévski em Nietzsche ultrapassa nesse momento a ficção. Ou transforma-se em ficção, o que é quase a mesma coisa.

A ventoinha

O calor nas águas-furtadas já só pode ser atenuado com uma combinação de nudez e de ventoinha. O Carlos de Oliveira tem um poema sobre as vantagens de viver numa mansarda («Vidro», Micropaisagem), de que já não me lembro muito bem. Temos mais chuva, quando chove, e mais calor, quando faz sol, do que os andares mais baixos. Amanhece mais cedo, qualquer coisa assim. Vivemos em condições meteorológicas extremas. Abraçamo-nos mas está demasiado frio para nos despirmos. Despimo-nos mas está demasiado calor para nos conseguirmos abraçar. Etc.

14 junho 2004

Um dos conceitos mais interessantes da área dos estudos eleitorais é o do votante sofisticado ou inteligente. Simplificando, o eleitor não vota na que seria naturalmente a sua primeira escolha, mas tendo em conta outros factores, aritméticos ou simbólicos. Os eleitores têm motivações diversas e insondáveis e a agregação dos seus votos em percentagens torna-se na proclamação de um oráculo que «não revela nem esconde, dá sinais.» O facto de, esta noite, os sinais serem múltiplos e contraditórios revela apenas que precisamos de intérpretes mais sofisticados e inteligentes e de mais sociologia eleitoral.

08 junho 2004

Terça-feira, oito de junho de dois mil e quatro - Vénus em trânsito pelo sol, numa coreografia de sombras. Se tivesse um diário, esta seria a entrada mais importante do dia, mesmo de toda a semana. Vénus em trânsito pelo sol, num teatro de sombras.

02 junho 2004

Morar num terceiro andar obriga-nos a conviver com a atracção pelo abismo. Hoje suicidou-se-nos mais um pano do pó. Não deixou sequer uma nota a explicar uma decisão tão drástica. Mas já estamos habituados. Os nossos objectos têm tendência a lançar-se em queda livre. Quanto a isso, as molas da roupa são os escandinavos dos objectos. À mínima distracção uma lança-se no vazio. E os nossos vizinhos também parecem ter o mesmo problema. Há um telheiro no rés-do-chão onde repousam os restos mortais de cada vez mais objectos improváveis: um vaso inteiro, muitas molas de roupa, um pano do pó, um soutien, dois pares de cuecas. São apenas dados sem teoria, para o caso de alguém querer actualizar o trabalho de Durkheim.

01 junho 2004

Eternal Sunshine of the Spotless Mind

Talvez seja mesmo possível entrar na cabeça de John Malkovich, cair dela para um terreno ao lado de uma auto-estrada. Mas mais interessante seria entrar na de Charlie Kaufman. As ideias labirínticas saem de cérebros labirínticos e todos temos cérebros assim, com os nossos próprios animais míticos. Charlie Kaufman parece ter simplesmente perdido a ponta do fio que indica o caminho mais rápido entre o cinzento mais profundo e a luz do dia. E leva-nos de memória em memória, numa organização improvável das imagens. Charlie Kaufman é o argumentista de Being John Malkovich, Adaptation (Inadaptado) e, agora, de Eternal Sunshine of the Spotless Mind (O Despertar da Mente). O título original do filme é retirado de um poema de Alexander Pope («How happy is the blameless vestal's lot!/ The world forgetting, by the world forgot./ Eternal sunshine of the spotless mind!/ Each pray'r accepted, and each wish resign'd.») e não se podia pedir mais do que a recusa de uma tradução literal. Três e muito.

28 maio 2004

O Embaixador de Jesus, Paula Rego

Amaro tem as mãos sobre o manto azul. A mão esquerda sobre a cabeça de Amélia, a direita na perna. Amélia retrai-se, perturbando por momentos o equilíbrio entre a razão e o desejo. A batina negra dele parece ganhar o mesmo valor simbólico do chapéu preto dos vilões nos westerns. Ela está vestida de branco. No fundo, em volta, anjos ou mulheres-cão, outras testemunhas de um crime, uma boneca, um bébe, o reflexo de Amaro.

Foi este o quadro – ou um dos quadros – de Paula Rego que ardeu, esta semana, em Londres, no incêndio de um armazém de obras de arte contemporânea.

Podemos, pelo menos, ficar com o momento seguinte da cena, pelo Eça:

Amaro então chegou-se por detrás dela, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda - e estendendo os lábios por sobre os dela, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos de Amélia cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para trás, pesada de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam, ávidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração dela apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre, descorada e morta de gozo.
Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro

(Apesar de Eça ter quebrado uma das regras fundamentais de construção de cenas eróticas, a utilização do termo «beiços», não deixa de ser uma descrição sugestiva.)

Remover

Acabei de receber uma carta de José Luís Arnaut a motivar-me para o Euro, quando a única coisa que me poderia desmotivar era receber uma carta do Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro a tentar motivar-me. Apeteceu-me logo cancelar a encomenda da grade de «minis» e enrolar a bandeira, mas fiz o mais razoável - o mesmo que julgo que fará o resto dos «caros portugueses» - voltei-lhe as costas e colei-a no frigorífico (na parte de trás tem um calendário dos jogos).

26 maio 2004

O oásis de Amesterdão

A Gisela leu sobre o suicídio botânico e escreveu-me a dizer que lhe acontece exactamente o contrário. No escritório acham estranho que apenas as plantas que estão à volta dela sobrevivam. Imagino-a no seu oásis, a colher tâmaras com um braço e a agrafar com o outro, com um deserto de secretárias a estender-se centrifugamente. Depois de ver a mãe dela a cuidar do quintal de Moledo, acredito simplesmente que deve haver algo de genético na relação com os vegetais.
E a Eva, a irmã da Gisela, está grávida. Parabéns a ela e ao César, a ele o que é dele.

(Gisela, como não sei se conseguiste encontrar alguma coisa da Adília Lopes aí por Amesterdão, toma lá dois poemas.)


Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações

A Pão e Água de Colónia, Frenesi, 1987




Maria Andrade vai
à casa de banho
do aeroporto de Kinshasa
para rezar
precisa de agradecer
o encontro fortuito
com Túlio
como nas igrejas
em que entra
pela primeira vez
(é a primeira vez
que entra na casa de banho
do aeroporto de Kinshasa)
pede três graças
que mantém secretas
o Pai bate na testa
o Filho entre as maminhas
o Espírito na maminha esquerda
e o Santo na direita
às vezes o Espírito Santo
fica todo
na maminha esquerda
outras vezes o santo
fica no ar entre as maminhas
Maria Andrade
de joelhos
de mãos postas
reza
mas as maminhas interferem
com os antebraços
Maria Andrade
nunca viu nada escrito
sobre este assunto

A Continuação do Fim do Mundo, & etc, 1995

24 maio 2004

Uma Primavera de mulheres

A Carla está grávida. O Pedro (Santos) mostrou-nos a ecografia. Como ainda é demasiado cedo para se distinguirem feições, convencionámos que o lado esquerdo se parece mais com a Carla e o direito como o Pedro. A Irene também está grávida e o Ireneu já começou a trocar os guias de viagem para os próximos anos: os do Perú, do Bangladesh, da Albânia, pelos da Eurodisney. A minha prima Sílvia também está. E a Celita, e a Sónia. Encontrei o Hélder da minha turma, que vai ter um filho em Setembro, e o Rui vai ter gémeos (contou-me o Fernando), e acho que ouvi falar que a Eunice também estava grávida, mas não tenho a certeza. Ainda é cedo para falar de uma explosão demográfica, mas a este ritmo os meus amigos vão obrigar o Professor Barata a actualizar a sua sebenta de 1961.

21 maio 2004

OS COMEDORES DE ESPAÇO
O terror instalara-se na região com a chegada dos comedores de espaço. Os habitantes olhavam atónitos o espaço a desaparecer a toda a sua volta, incluindo casas, ruas, rios, árvores. Nada indicava que atrás deles não surgissem criadores de espaço capazes de repor as coisas nos devidos lugares ou que os próprios comedores não pudessem vomitar tudo o que haviam devorado. Mas mesmo nesta circunstância o mais provável era que o espaço, transformado entretanto nas entranhas de quem o deglutira, pouco tivesse já a ver com o que os habitantes haviam conhecido, nele se misturando coisas que os comedores trouxessem na memória e que decerto lhe viriam agarradas quando violentamente o expelissem.
Luís Miguel Nava, Vulcão

(O itálico é meu.)

19 maio 2004

XXII
O crepúsculo excita os loucos. – Lembro-me que tive dois amigos a quem o crepúsculo punha muito doentes. Um deles, nessas alturas, desconhecia todos os deveres da amizade e da educação, e maltratava, como um selvagem, o primeiro que aparecesse. Vi-o atirar à cabeça dum mordomo um excelente frango, em que ele pretendia ver não sei que insultante hieróglifo. A tarde, precursora das volúpias profundas, estragava-lhe as coisas mais suculentas.
Outro, um ambicioso falhado, tornava-se, à medida que o dia tombava, mais acre, mais sombrio, mais travesso. Ainda sociável e indulgente durante o dia, era implacável à tarde; e não era apenas contra os outros mas também contra si mesmo, que raivosamente se aplicava a sua mania crepusculosa
O primeiro morreu doido, incapaz de reconhecer a mulher e o seu filho; o segundo traz em si a inquietação duma doença perpétua, e se fosse decorado com todas as honras que podem conferir as repúblicas e os príncipes, creio que o crepúsculo acenderia ainda nele um ardente desejo pelas distinções imaginárias. A noite, que lhes punha no espírito as suas trevas, ilumina o meu; e, ainda que não seja raro ver a mesma causa engendrar dois efeitos contrários, fico sempre como que intrigado e alarmado com ela.

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris

Nunca atirei – nem tenho amigos que tenham atirado – frangos excelentes à cabeça de ninguém. A minha sanidade e a dos meus amigos vai ao ponto de não atirarmos a ninguém mesmo frangos menos bons. É um limiar de loucura muito débil, mas suficiente para tempos tão estranhos e agitados. Não tenho qualquer «mania crepusculosa», apenas o crepúsculo à minha frente e uma citação que não deve ser desperdiçada. Também não tenho nenhuma teoria geral sobre as personalidades crepusculares, capaz de explicar a diferença entre as matinais e as nocturnas. A passagem das trevas para a luz ou da luz para as trevas (qualquer que seja o sentido, real ou metafórico) não pode deixar de provocar distúrbios de personalidade. Talvez a loucura crepuscular seja uma doença mais comum do que os compêndios de psicologia admitam, e o seu primeiro sintoma seja o de se escrever textos sobre ela.
XXXIII
Devemos andar sempre bêbados. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: «São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com virtude, a teu gosto.»

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris

Sai um traçadinho, um hexâmetro e um pires da virtude do dia para a mesa do fundo.

Inventário de existências

Já só falta demolirem um ou dois pavilhões das fábricas para ter vista de rio, as sardinheiras estão a recuperar bem depois do coma, mais uma vez não consegui combinar qualquer coisa com o Zé Pedro e já não vejo o Armando há quase duas semanas, a médica olhou para a ecografia do meu ombro e está indecisa entre tendinite e micro-rotura, nenhuma das quais desculpa a minha má forma no vólei, a tradução vai lenta, ainda no capítulo sobre Rousseau, continuo, não desempregado, mas mal-empregado, a Joana já tirou para fora a roupa de Verão e fica muito bem com ela, já instalámos a ventoinha frente ao sofá para sobrevivermos aos meses quentes. Isto é um resumo de tudo sobre o que poderia ter escrito nestes últimos dias, para vos poupar tempo e dioptrias. Sobre a situação do mundo, comprem um jornal.

12 maio 2004

Não sendo pitagórico, dou comigo frequentemente a encontrar teoremas matemáticos no quotidiano. Hoje, com a greve da Carris, percebi claramente que o número de trabalhadores em greve cresce em igual proporção ao do de utentes reaccionários nas paragens de transportes públicos.

O suicídio botânico

Alguns dias depois de escrever o texto sobre a minha sardinheira suicida, chegou-me às mãos o livro do Seinfeld. Ao que parece, o meu problema é mais comum do que pensava:

Não tenho plantas em minha casa. Elas comigo não sobrevivem. Algumas nem esperam até morrer; suicidam-se. Um dia cheguei a casa e dei com uma enforcada num frio de macramé, com o vaso atirado fora do suporte. O recado dizia: «Odeio-te a ti e aos teus discos.

(Jerry Seinfeld, Linguagem Seinfeld, Gradiva.)

Nem enforcamento nem queda do terceiro andar. Com métodos suicidas tão espectaculares e interessantes, a minha sardinheira optou pela greve de fome. Definha lentamente, caem-lhe as pétalas. Se alguém conhecer um bom psicólogo de plantas, deixe por favor o contacto nos comentários. Ou o nome de uma boa marca de adubos.

Catálogo de monstros

Não me tem apetecido escrever no blogue, por isso fiz a coisa óbvia: ler o Livro do Desassossego para inspiração. Se existisse a tecnologia, tenho a certeza que Pessoa o teria publicado em primeiro lugar em forma de posts, em insónias sucessivas. A consequência também é óbvia, depois de ler algumas páginas, nada que escreva suporta a comparação. A inspiração transforma-se em citação, como a sonolência em monstros:

243.

Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais do que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a coerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.
São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.


(Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, p. 239.)

05 maio 2004

O eclipse nublado

Os fenómenos cósmicos não são tão espectaculares quando não os podemos observar. Com o céu nublado não consegui ver ontem o eclipse da Lua. Sendo assim, não passou de uma anotação num anuário ou de um ponto num cálculo de trajectórias. O mecanismo dos eclipses da Lua é igual ao do cinema. Temos, em uma ou duas horas, a sequência de planos que habitualmente se sucedem ao longo de um mês, do quarto crescente ao minguante. Para conseguir o mesmo efeito, vou ter de olhar para o céu nocturno todas as noites durante um mês e abstrair-me de tudo o que aconteceu durante os dias. Abstrair-me do que acontece durante os dias não é muito difícil mas, ainda assim, vou consultar os anuários e esperar pelo próximo eclipse.

(Os eclipses costumam ser presságios de acontecimentos. Ontem não era muito difícil de adivinhar. Com o céu nublado, bastava olhar para a televisão. Na mesma altura, o Porto passava à Final da Liga dos Campeões. Parabéns.)
- Por que não falas tu comigo?, perguntei eu à Júlia, a minha cadela, que sempre esboçou essa vontade contida nos latidos. Não comunicamos por telepatia, uma coisa bonita, como o Tiago e a Teresa, mas prosaicamente ela ladra e eu falo, e entendemo-nos assim apesar de termos os dois nomes de gente.

04 maio 2004

- É ridículo dar nome de pessoa a um animal doméstico, e a plantas ainda é mais, por o antropomorfismo ser mais difícil de compreender. – disse eu para a Teresa, a minha sardinheira, que não me contradisse. A pobre tem tendências suicidas, sempre no beiral a ponderar o voo e a queda. As flores vermelhas, que interpretamos como um despontar de beleza, talvez sejam apenas um pedido de ajuda, para chamar a nossa atenção. Não se preocupem comigo, estou só a brincar, não estou louco, não falo com as plantas. Na verdade, eu e elas comunicamos por telepatia.