04 julho 2009

Tudo começou com o comentário de um amigo: «Então não sabem que os malucos devem ser postos em salas redondas?» Lembrei-me do João César Monteiro a correr no pátio circular de um manicómio, nas Recordações da Casa Amarela. A câmera de filmar no centro a acompanhá-lo, primeiro lento e depois com cada vez maior velocidade. Mais tarde, já em casa, lembrei-me também das ruínas circulares do conto de Borges, onde um homem acaba por perceber, no meio de um incêndio que o consome, que a sua vida não passa de um sonho sonhado por um outro homem. Os círculos tornam-nos autoconscientes, não nos deixam fugir de nós próprios. Provavelmente não é esta a justificação teórica. Em todo o caso, a frase soou-me como uma vaga ameaça: os malucos devem ser postos em salas redondas.

27 junho 2009

Rito de passagem

Lançámos as chuchas da L. em balões de hélio cor-de-laranja. Ela acenou-lhes, sob os incentivos dos amigos que se juntaram a nós no parque para a ocasião. Tenho a certeza de que foi um daqueles momentos que lhe serão recordados por nós de forma cíclica e repetitiva. Ela não se lembrará de os ter lançado e terá de reconstruir essa memória através da nossa. Não se lembrará sequer de ter comido um Cornetto de morango no final, oferecido para apaziguar o nosso sentimento de culpa. Eram três e foram levadas pelo vento em direcções diferentes. Aconselho prudência a quem sair de casa esta noite. Se alguma vos atingir, pedimos desculpa e aconselhamos a que não a experimentem. É um hábito difícil de largar.

Fragmento de um discurso amoroso

Ao longo da infância tive, como todas as crianças, uma grande quantidade de paixões violentas e impossíveis. Lembro-me do nome de quase todas, desde os meus quatro ou cinco anos. Em retrospectiva, o mais estranho dessas paixões infantis era a impossibilidade de concretização. Aos seis ou sete anos não se namora e, mesmo que existam beijos, não têm o significado que vêm a adquirir mais tarde. Mas o platonismo não tornava menos importante a busca. Mesmo quando a paixão era correspondida, o que é raro acontecer quando somos tão novos, a relação era ritualizada numa série de jogos, de insultos pouco sinceros, de demonstrações de desinteresse mal encenadas. Era um jogo de ténis infinito, jogado entre a vantagem nula e a vantagem temporária de um dos dois, por nenhum deles saber o que fazer em caso de vitória.