Todos aqueles que foram a favor da revelação das gravações (imprudentes ou ilegais, conforme a opinião) do jornalista do Correio da Manhã, Octávio Lopes, deviam ler com atenção dois artigos na revista The Economist do dia 21 de Agosto (artigo em editorial e peça jornalística).
Enquanto em Portugal são os próprios jornalistas que honram os leitores com a revelação das fontes dos outros jornalistas, nos Estados Unidos, um jornalista da Time, de seu nome Matthew Cooper, foi condenado a prisão efectiva de 18 meses (ou multa de mil dólares por dia) por não revelar uma fonte sensível da Casa Branca que lhe passou uma história: Copper escreveu, no Verão passado, que Valerie Plame, mulher do ex-embaixador que passou a informação aos media de que o famoso urânio nigeriano nunca tinha sido vendido ao Iraque, era uma agente encoberta da CIA.
Ora, toda esta história é muito complicada do que isto, mas o que importa é reter o seguinte: o jornalista (e outros três repórteres acusados) não revela a fonte porque, embora sendo do interesse público saber quem, na administração Bush, quis "lixar" o embaixador pondo em perigo a agente secreta e as pessoas a ela ligadas, há um valor superior que é o da liberdade de imprensa. O editorialista da Economist, escreve: "If reporters were routinely forced to identify confidential sources, those sources would dry up and the public would lose potentially valuable information. The public should not want the media to be servants of the legal system any more than it wants them servants of government".
No caso português, o mais triste é que não foi um tribunal a forçar um jornalista a revelar as suas fontes - o que, de resto, o transformaria num mártir da classe -, mas terem sido camaradas de profissão a fazê-lo. As consequências de quaisquer erros que tenham sido cometidos deveriam recair directamente sobre o jornalista e seus superiores, por cometerem ou permitirem que se tenham cometidos falhas grosseiras durante o exercício da profissão. Quando as consequências recaem apenas sobre as fontes, como aconteceu - que, caso não mintam, se arriscam pessoal e profissionalmente a passar informações de interesse público -, é a própria democracia a ficar em perigo.
Se o jornalista vai à fonte, tem de trazer o cantarinho inteiro, ou então acaba um dia morto à sede.
Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
28 agosto 2004
24 agosto 2004
A Pepsi e a Coca-Cola
As marcas dominam a nossa mente sem nós o sabermos e se compramos marcas é porque confiamos no rótulo: podemos comer e beber isto ou aquilo e sabemos que não vamos morrer envenenados, ou podemos comprar este ou aquele detergente porque não nos vai dar cabo da roupa. Na política as coisas passam-se mais ou menos assim, sendo que a marca com maior notoriedade não é forçosamente a mais confiável, se é que ainda há marcas absolutamente confiáveis na política.
Ora temos assim duas marcas que vão degladiar-se no futuro próximo: a PSL, dos produtos Pedro Santana Lopes, e a JS, das produções José Sócrates.
A primeira, é uma marca popular com notoriedade firmada, líder de mercado, apesar de todos os que também a detestam. PSL é como a Coca-Cola, que se acha a maior e age como sendo a maior.
A segunda é uma marca que tem uma quota de mercado mais baixa, mas que quer chegar à liderança, e por isso procura posicionar-se de maneira diferente, apesar do seu sabor ser praticamente igual à anterior. JS é como a Pepsi, que não se apresenta como uma igual à Coca-Cola, mas como algo de novo, mesmo sem o ser: "The choice of a New Generation" (a escolha de uma nova geração). A escolha é da nova geração, mas nada sabemos sobre o produto, sobre o que é que o torna diferente da concorrência. José Sócrates já deve ter interiorizado isto de tal maneira que, na entrevista a Maria Henrique Espada, no Diário de Notícias de sexta-feira, dia 20, afirmou: "Sou um candidato de uma nova geração (...)". É o candidato Pepsi...
Ora temos assim duas marcas que vão degladiar-se no futuro próximo: a PSL, dos produtos Pedro Santana Lopes, e a JS, das produções José Sócrates.
A primeira, é uma marca popular com notoriedade firmada, líder de mercado, apesar de todos os que também a detestam. PSL é como a Coca-Cola, que se acha a maior e age como sendo a maior.
A segunda é uma marca que tem uma quota de mercado mais baixa, mas que quer chegar à liderança, e por isso procura posicionar-se de maneira diferente, apesar do seu sabor ser praticamente igual à anterior. JS é como a Pepsi, que não se apresenta como uma igual à Coca-Cola, mas como algo de novo, mesmo sem o ser: "The choice of a New Generation" (a escolha de uma nova geração). A escolha é da nova geração, mas nada sabemos sobre o produto, sobre o que é que o torna diferente da concorrência. José Sócrates já deve ter interiorizado isto de tal maneira que, na entrevista a Maria Henrique Espada, no Diário de Notícias de sexta-feira, dia 20, afirmou: "Sou um candidato de uma nova geração (...)". É o candidato Pepsi...
16 agosto 2004
O jardim dos cactos abandonados
Sábado à tarde, um calor seco no ar, e onde ir evitando os lugares de sempre... Uma ideia: o jardim botânico de Belém, euro e meio a cada um à entrada (a Carla é que pagou), passeio sossegado, jornais de fim-de-semana enfiados no saco do Expresso, lagos, água, gansos, sombra, turistas raros, portugueses ausentes, um abandono. O lugar, partes do lugar, ao desleixo, e um casal de noivos aviado nos Jerónimos em preparos diante do fotógrafo.
Num portão semi-aberto, alguém se esqueceu de pôr a placa "proibido entrar". Lá dentro, um delicioso jardim de cactos continua a ser um jardim de cactos porque os cactos podem ser deixados ao abandono e mantêm-se a cactotuar vida fora. As estufas destruídas, em ruínas, lixo e dejectos de jardinagem pelos cantos do caminho, e os cactos, com os picos ainda mais de fora, assanhados como fazem os cactos zangados, enrodilhados em árvores antigas, ora estrangulando-as ora confortando-as, erguendo-se com braços ameaçadores contra quem ousa profanar o santuário. Há um certo encanto na decadência, como se num lugar antigo e abandonado sedimentassem as memórias esquecidas. Mas o sinal da nossa decadência é deixar que lugares assim não sejam mais do que memórias forçadas ao caminho do esquecimento, a vitória da incúria. Uma vergonha. Alguém se acusa?
Num portão semi-aberto, alguém se esqueceu de pôr a placa "proibido entrar". Lá dentro, um delicioso jardim de cactos continua a ser um jardim de cactos porque os cactos podem ser deixados ao abandono e mantêm-se a cactotuar vida fora. As estufas destruídas, em ruínas, lixo e dejectos de jardinagem pelos cantos do caminho, e os cactos, com os picos ainda mais de fora, assanhados como fazem os cactos zangados, enrodilhados em árvores antigas, ora estrangulando-as ora confortando-as, erguendo-se com braços ameaçadores contra quem ousa profanar o santuário. Há um certo encanto na decadência, como se num lugar antigo e abandonado sedimentassem as memórias esquecidas. Mas o sinal da nossa decadência é deixar que lugares assim não sejam mais do que memórias forçadas ao caminho do esquecimento, a vitória da incúria. Uma vergonha. Alguém se acusa?
08 agosto 2004
Sabonetes ao poder
É injusto dizer que Santana e Sócrates são iguais. Quem olhar com atenção percebe que os dois são diferentes: o primeiro-ministro tem uma personalidade quente, emocional, é um improvisador, um espontâneo movido pelo combustível da reacção às acções dos outros; o candidato a secretário-geral do PS é frio, absolutamente cerebral, e contido ao ponto de avaliar cada gesto e cada palavra.
A zona de intersecção entre ambos é o instrumento para chegar ao mesmo fim: a comunicação social, a fábrica das imagens, e as intervenções cheias de nada.
Há umas semanas li dezenas de entrevistas e artigos de Santana Lopes publicados na imprensa desde os anos 90. A sua capacidade impressiona: é capaz de escrever lençóis de textos sem dizer absolutamente nada, sem deixar trair-se por uma ideia. É preciso peneirar milhares de linhas sobre a vida partidária para encontrar um conceito, um rumo de pensamento sobre o país, ou a defesa de uma medida. Sócrates também provou, nas últimas semanas, que é igual. A entrevista das citações ao Expresso foi um desastre, o artigo sobre o plano tecnológico no Público é um conjunto de generalidades que toda a gente defende, e a página do Diário de Notícias, dirigida à ala esquerda do PS, serviu mais para esconder do que para mostrar o que pensa.
Bem-vindos ao país moderno! Já houve quem quisesse vender Presidentes da República como se fossem sabonetes. Agora temos sabonetes que são ou querem ser primeiros-minstros.
A zona de intersecção entre ambos é o instrumento para chegar ao mesmo fim: a comunicação social, a fábrica das imagens, e as intervenções cheias de nada.
Há umas semanas li dezenas de entrevistas e artigos de Santana Lopes publicados na imprensa desde os anos 90. A sua capacidade impressiona: é capaz de escrever lençóis de textos sem dizer absolutamente nada, sem deixar trair-se por uma ideia. É preciso peneirar milhares de linhas sobre a vida partidária para encontrar um conceito, um rumo de pensamento sobre o país, ou a defesa de uma medida. Sócrates também provou, nas últimas semanas, que é igual. A entrevista das citações ao Expresso foi um desastre, o artigo sobre o plano tecnológico no Público é um conjunto de generalidades que toda a gente defende, e a página do Diário de Notícias, dirigida à ala esquerda do PS, serviu mais para esconder do que para mostrar o que pensa.
Bem-vindos ao país moderno! Já houve quem quisesse vender Presidentes da República como se fossem sabonetes. Agora temos sabonetes que são ou querem ser primeiros-minstros.
07 agosto 2004
Postal atrasado: gelataria acrobática
Este é um daqueles postais que mandamos aos amigos e chegam à caixa do correio muito depois de termos regressado de viagem, e encerra os posts das minhas férias:
Trojir. Croácia.
O Adriático é o mar veneziano. Enquanto percorremos a costa, damos com cidades que são pequenas venezas, embora sem os canais: os palácios, os arcos nas janelas, as ruas labirínticas, as piazzetas, os turistas. E os gelados. Muitos gelados, quase tão bons quanto os italianos. Mas naquela gelataria - não mais do que uma arca congeladora ao ar livre -, na marginal de Trojir, em frente a um dos grandes iates ali atracados, descobri uma daquelas pessoas que faz de um emprego banal um ofício e uma arte.
A arca dos gelados estava cerca por turistas e crianças, de notas na mão, a pedirem uma, duas, três bolas. O rapaz pegava num cone, tirava um sabor bem redondo com a colher e depois atirava o gelado ao ar, uns três ou quatro metros, e apanhava a bola de natas atrás das costas, a de chocolate caía directamente em cima da de natas e, na de morango, dava três voltas sobre si mesmo, para o gelado acabar composto e na mão de quem pagou para ver. Puséssemos nós, assim, em tudo o que fazemos, aquele pedaço de alma que dá encanto às coisas...
Trojir. Croácia.
O Adriático é o mar veneziano. Enquanto percorremos a costa, damos com cidades que são pequenas venezas, embora sem os canais: os palácios, os arcos nas janelas, as ruas labirínticas, as piazzetas, os turistas. E os gelados. Muitos gelados, quase tão bons quanto os italianos. Mas naquela gelataria - não mais do que uma arca congeladora ao ar livre -, na marginal de Trojir, em frente a um dos grandes iates ali atracados, descobri uma daquelas pessoas que faz de um emprego banal um ofício e uma arte.
A arca dos gelados estava cerca por turistas e crianças, de notas na mão, a pedirem uma, duas, três bolas. O rapaz pegava num cone, tirava um sabor bem redondo com a colher e depois atirava o gelado ao ar, uns três ou quatro metros, e apanhava a bola de natas atrás das costas, a de chocolate caía directamente em cima da de natas e, na de morango, dava três voltas sobre si mesmo, para o gelado acabar composto e na mão de quem pagou para ver. Puséssemos nós, assim, em tudo o que fazemos, aquele pedaço de alma que dá encanto às coisas...
30 julho 2004
Miguel Torga, Diário I
Coimbra, 18 de Dezembro de 1937 – Cá estou eu. Sei que estas notas não têm pés nem cabeça, que o dia registado como eu o registo é uma coisa semelhante àquelas pílulas alimentícias, onde o estômago, na sua orgânica necessidade de se sentir cheio e farto, não consegue valorizar os mistérios da concentração.
Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário.
Dito isto, embarco amanhã para a Europa.
Eu também, para Roma. Não sei se vou conseguir ir alimentando um diário nestes próximos doze dias, que são bichos de comem muito. Especialmente os de viagem, de bordo, onde sentimos necessidade de descrever tudo em todo o pormenor para não percebermos que andamos perdidos.
Coimbra, 18 de Dezembro de 1937 – Cá estou eu. Sei que estas notas não têm pés nem cabeça, que o dia registado como eu o registo é uma coisa semelhante àquelas pílulas alimentícias, onde o estômago, na sua orgânica necessidade de se sentir cheio e farto, não consegue valorizar os mistérios da concentração.
Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário.
Dito isto, embarco amanhã para a Europa.
Eu também, para Roma. Não sei se vou conseguir ir alimentando um diário nestes próximos doze dias, que são bichos de comem muito. Especialmente os de viagem, de bordo, onde sentimos necessidade de descrever tudo em todo o pormenor para não percebermos que andamos perdidos.
25 julho 2004
Viagens modernas III: as pessoas
Já falei de Guido, o académico dálmata, descendente de portugueses, que pediu ao presidente da Croácia para deitar ao Tejo as cinzas do seu velho barco português, quando aquele visitou a Expo'98. As pessoas são o conteúdo das viagens, que enchem o espaço que nos é aberto pelos lugares. Lugares com gente lá dentro: assim deviam ser todas as viagens modernas.
Da minha última viagem trago apenas mais duas experiências relevantes com os locais, porque era difícil falar com os croatas, que dominam poucas línguas, porque não saí à noite, o que é excelente para meter conversa, e porque as pessoas com quem falei não queriam responder às minhas perguntas.
E o que quer saber um português numa terra como aquela? Como se vive com a memória de uma guerra tão recente. Perante isto, até o passado comunista da ex-Jugoslávia perde o interesse (uma senhora muito animada e simpática, que falava um alemão macarrónico tinha uma bela biografia de Tito à cabeceira de um dos seus quartos para alugar, e uma prateleira cheia de volumes sobre o ditador, Estaline e o socialismo. Mas a comunicação era impossível).
Um homem, na galeria de arte de Dubrovnic, parecia o interlocutor ideal: afável, talvez culto, jovem e fluente em inglês. Peguntei-lhe de quem eram os quadros e as esculturas. Ele respondeu que eram de artistas croatas, bósnios e macedónios. Tinha ali a minha deixa. Confessei que tinha tido dificuldade em fazer esta pergunta ao longo de quase duas semanas e atirei: "Como é que vocês olham hoje uns para os outros, 10 anos depois da guerra? Como é que convivem com essa memória?". Ele ficou calado. E eu senti-me a devassá-lo. Depois, levantou os olhos e disse, que "agora as coisas estão melhores, mas há sempre quem queira continuar a causar problemas". Fez uma pausa. Tinha os olhos marejados, e não estou a exagerar. E disse: "Falar sobre isso é muito difícil. Procuramos esquecer-nos todos os dias para tentarmos levar uma vida normal". A seguir, pensei no que sentiria se alguém tivesse bombardeado sete meses seguidos a minha cidade natal, destruindo a maior parte dos monumentos e matando os meus amigos. Há feridas abertas que nunca saram.
Guardei outra história, mais pitoresca, mas reveladora. O Afonso ia a conduzir o carro ao lado da Blandina, eu e a Carla íamos atrás, entre Sarajevo e Mostar, na Bósnia. Um polícia mandou-nos parar. Falou um inglês arranhado e disse que íamos a 104 km/h numa zona onde só podíamos ir a 90. Era caso para multa. Pediu os documentos. Mal olhou. Disse que eram 30 unidades da moeda bósnia. Respondemos que não tínhamos, porque só estávamos um dia no país. Quisemos saber se aceitava euros ou kunas croatas. Quis euros: quinze euros. Demos-lhe duas notas de 10, ele pegou numa, deu-se por satisfeito, "assim está bem", e mandou-nos seguir.
Da minha última viagem trago apenas mais duas experiências relevantes com os locais, porque era difícil falar com os croatas, que dominam poucas línguas, porque não saí à noite, o que é excelente para meter conversa, e porque as pessoas com quem falei não queriam responder às minhas perguntas.
E o que quer saber um português numa terra como aquela? Como se vive com a memória de uma guerra tão recente. Perante isto, até o passado comunista da ex-Jugoslávia perde o interesse (uma senhora muito animada e simpática, que falava um alemão macarrónico tinha uma bela biografia de Tito à cabeceira de um dos seus quartos para alugar, e uma prateleira cheia de volumes sobre o ditador, Estaline e o socialismo. Mas a comunicação era impossível).
Um homem, na galeria de arte de Dubrovnic, parecia o interlocutor ideal: afável, talvez culto, jovem e fluente em inglês. Peguntei-lhe de quem eram os quadros e as esculturas. Ele respondeu que eram de artistas croatas, bósnios e macedónios. Tinha ali a minha deixa. Confessei que tinha tido dificuldade em fazer esta pergunta ao longo de quase duas semanas e atirei: "Como é que vocês olham hoje uns para os outros, 10 anos depois da guerra? Como é que convivem com essa memória?". Ele ficou calado. E eu senti-me a devassá-lo. Depois, levantou os olhos e disse, que "agora as coisas estão melhores, mas há sempre quem queira continuar a causar problemas". Fez uma pausa. Tinha os olhos marejados, e não estou a exagerar. E disse: "Falar sobre isso é muito difícil. Procuramos esquecer-nos todos os dias para tentarmos levar uma vida normal". A seguir, pensei no que sentiria se alguém tivesse bombardeado sete meses seguidos a minha cidade natal, destruindo a maior parte dos monumentos e matando os meus amigos. Há feridas abertas que nunca saram.
Guardei outra história, mais pitoresca, mas reveladora. O Afonso ia a conduzir o carro ao lado da Blandina, eu e a Carla íamos atrás, entre Sarajevo e Mostar, na Bósnia. Um polícia mandou-nos parar. Falou um inglês arranhado e disse que íamos a 104 km/h numa zona onde só podíamos ir a 90. Era caso para multa. Pediu os documentos. Mal olhou. Disse que eram 30 unidades da moeda bósnia. Respondemos que não tínhamos, porque só estávamos um dia no país. Quisemos saber se aceitava euros ou kunas croatas. Quis euros: quinze euros. Demos-lhe duas notas de 10, ele pegou numa, deu-se por satisfeito, "assim está bem", e mandou-nos seguir.
Viagens modernas II - riscar coisas da lista
"Uma das coisas que mais me irrita no facto de ser turista é a minha própria cumplicidade no hábito de riscar coisas numa lista. Os Giottos - feito, Igreja dos Eremitas - feito, Piazza dei Signori - feito, e assim por diante. Quem quer saber? como um qualquer peregrino medieval, ali estava eu a acumular pontos junto de... junto de quem, exactamente? A quem iria apresentar a minha caderneta? Há algo de estranhamente religioso, no sentido mais conservador, no turismo moderno."
in Cartas de Veneza, Robert Dessaix
Gótica, pag. 191
Ir de férias é um momento único nestas vidas que levamos. A fuga é tanto mais saborosa quanto para mais longe formos, como catarse de todo um ano a aturar aquela gente no emprego. Ir aos lugares e vê-los é pouco (ver post abaixo). Não saio de uma cidade sem ver aquilo que é obrigatório, mas saio frustrado se me for embora sem perceber o que vi. Percorrer a lista não chega, olhar para pedras antigas é pouco, conhecer as histórias por detrás do que vemos é que é importante. E nem sempre consegui esse equilíbrio nestes 15 dias em Veneza, na Croácia e na Bósnia: Veneza merece uma visita de Inverno para nos embrenharmos nas histórias; Dubrovnic, no sul da Croácia, merece tempo (também em época baixa para fugir do terror do turismo de massas) porque é uma das cidades mais encantadoras que já vi; o mesmo serve para Mostar, na Bósnia, onde ver as diferenças entre os habitantes de uma e outra margem é essencial.
Riscar os lugares que já vimos na nossa lista de sítios obrigatórios, como numa romaria, é fundamental, mas pobre. O que faz os lugares são as pessoas, as falas, os hábitos, as comidas, os cheiros.
Por isso, a pior maneira de se viajar é em pacotes organizados, apesar de um amigo que tem uma agência passar a vida a tentar impingir-mos. Já fiz duas viagens dessas: uma à Turquia, porque era barato, e outra ao Egipto, porque era a melhor maneira de o fazer. Neste estilo de viagem empacotada é tudo automático e pouco mais fazemos do que riscar da lista os lugares que já vimos. Ao fim de uns dias estamos como aqueles turistas americanos que vieram fazer um tour pela Europa. Depois de uma semana e de quatro países, Bill perguntava a Tom: "Onde é que estamos hoje?" E o amigo respondia: "I do not know. But it's friday, it must be Belgium..."
in Cartas de Veneza, Robert Dessaix
Gótica, pag. 191
Ir de férias é um momento único nestas vidas que levamos. A fuga é tanto mais saborosa quanto para mais longe formos, como catarse de todo um ano a aturar aquela gente no emprego. Ir aos lugares e vê-los é pouco (ver post abaixo). Não saio de uma cidade sem ver aquilo que é obrigatório, mas saio frustrado se me for embora sem perceber o que vi. Percorrer a lista não chega, olhar para pedras antigas é pouco, conhecer as histórias por detrás do que vemos é que é importante. E nem sempre consegui esse equilíbrio nestes 15 dias em Veneza, na Croácia e na Bósnia: Veneza merece uma visita de Inverno para nos embrenharmos nas histórias; Dubrovnic, no sul da Croácia, merece tempo (também em época baixa para fugir do terror do turismo de massas) porque é uma das cidades mais encantadoras que já vi; o mesmo serve para Mostar, na Bósnia, onde ver as diferenças entre os habitantes de uma e outra margem é essencial.
Riscar os lugares que já vimos na nossa lista de sítios obrigatórios, como numa romaria, é fundamental, mas pobre. O que faz os lugares são as pessoas, as falas, os hábitos, as comidas, os cheiros.
Por isso, a pior maneira de se viajar é em pacotes organizados, apesar de um amigo que tem uma agência passar a vida a tentar impingir-mos. Já fiz duas viagens dessas: uma à Turquia, porque era barato, e outra ao Egipto, porque era a melhor maneira de o fazer. Neste estilo de viagem empacotada é tudo automático e pouco mais fazemos do que riscar da lista os lugares que já vimos. Ao fim de uns dias estamos como aqueles turistas americanos que vieram fazer um tour pela Europa. Depois de uma semana e de quatro países, Bill perguntava a Tom: "Onde é que estamos hoje?" E o amigo respondia: "I do not know. But it's friday, it must be Belgium..."
Viagens modernas I: ver, ver, e nada acontece
Cheguei! A Joana está mais velha (parabéns mais uma vez!), acompanhando o envelhecimento da fotografia lá de casa, e eu sem poder assisitir ao vivo à transmutação etária anual da minha amiga, e sem ter comido a parte que me cabia no bolo que foi chocolate... Para o ano cá estaremos.
Primeira impressão à chegada: o país está igual, o aeroporto também, só nos jornais se nota que o Santana já é primeiro-ministro. Está muito calor em Lisboa, quase tanto como ontem à noite junto ao Grande Canal em Veneza, pelo que daqui se infere que é verdade a berlusconização da vida portuguesa: quando a temperatura política sobe demais, mau sinal para todos nós. É divertido mas não é bom.
Última impressão à saída: por que viajamos nós? Entro no avião, sento-me, fasten my seat belt, alimento-me de sandes que a TAP agora faz o favor de proporcionar aos que viajam em turística, e recordo as parte do livro Cartas de Veneza, do australiano Robert Dessaix (Ed. Gótica, 2002), em que os personagem se interrogavam sobre o que os levava a viajar. A propósito, é um belo livro para se ler numa viagem, sobretudo se tiver uma paragem em Veneza. É uma sensação de proximidade com o autor olhar para as mesmas coisas que os personagens.
Mas sobre as viagens, dizia o Professor Eschebaum, de Dessaix: "Na verdade, um em cada dois livros que lemos é sobre um qualquer tipo de viagem, não é? E estamos constantemente a falar de caminhos da vida... trilhos, estradas, progresso, etapas e por aí fora... tudo metáforas relacionadas com o viajar, se pensarmos bem nisso".
O narrador, que escrevia as cartas em Veneza, tocava num ponto ainda mais essencial, que mais tarde ou mais cedo todos sentimos, quando o cansaço nos abate: "A verdade é que não há muito que fazer em Veneza, excepto ver. não se vem aqui para fazer o que quer que seja, mas simplesmente para ver coisas. Assim são as viagens modernas. Cheias de movimento, mas nada acontece verdadeiramente. Começo a ansiar por outro tipo de viagem".
Se gastamos todo o dinheiro que poupamos em viagens, não será apenas para ver, mas também para aprender, para viver, para nos sentirmos mais vivos, para encontrarmos "sabedoria e êxtase", também escreveu Dessaix, citando Paul Bowles. E pela procura de um certo encantamento.
Pela minha parte, esta viagem aos Balcãs ajudou-me a encontrar mais uma justificação: viajar ajuda-nos sobretudo a encontrar e a perceber o nosso lugar no mundo. Essa evidência tornou-se quase palpável enquanto passava por bairros residenciais na Bósnia ou na Croácia e via as marcas das balas nas casas onde estava roupa estendida na janela.
Primeira impressão à chegada: o país está igual, o aeroporto também, só nos jornais se nota que o Santana já é primeiro-ministro. Está muito calor em Lisboa, quase tanto como ontem à noite junto ao Grande Canal em Veneza, pelo que daqui se infere que é verdade a berlusconização da vida portuguesa: quando a temperatura política sobe demais, mau sinal para todos nós. É divertido mas não é bom.
Última impressão à saída: por que viajamos nós? Entro no avião, sento-me, fasten my seat belt, alimento-me de sandes que a TAP agora faz o favor de proporcionar aos que viajam em turística, e recordo as parte do livro Cartas de Veneza, do australiano Robert Dessaix (Ed. Gótica, 2002), em que os personagem se interrogavam sobre o que os levava a viajar. A propósito, é um belo livro para se ler numa viagem, sobretudo se tiver uma paragem em Veneza. É uma sensação de proximidade com o autor olhar para as mesmas coisas que os personagens.
Mas sobre as viagens, dizia o Professor Eschebaum, de Dessaix: "Na verdade, um em cada dois livros que lemos é sobre um qualquer tipo de viagem, não é? E estamos constantemente a falar de caminhos da vida... trilhos, estradas, progresso, etapas e por aí fora... tudo metáforas relacionadas com o viajar, se pensarmos bem nisso".
O narrador, que escrevia as cartas em Veneza, tocava num ponto ainda mais essencial, que mais tarde ou mais cedo todos sentimos, quando o cansaço nos abate: "A verdade é que não há muito que fazer em Veneza, excepto ver. não se vem aqui para fazer o que quer que seja, mas simplesmente para ver coisas. Assim são as viagens modernas. Cheias de movimento, mas nada acontece verdadeiramente. Começo a ansiar por outro tipo de viagem".
Se gastamos todo o dinheiro que poupamos em viagens, não será apenas para ver, mas também para aprender, para viver, para nos sentirmos mais vivos, para encontrarmos "sabedoria e êxtase", também escreveu Dessaix, citando Paul Bowles. E pela procura de um certo encantamento.
Pela minha parte, esta viagem aos Balcãs ajudou-me a encontrar mais uma justificação: viajar ajuda-nos sobretudo a encontrar e a perceber o nosso lugar no mundo. Essa evidência tornou-se quase palpável enquanto passava por bairros residenciais na Bósnia ou na Croácia e via as marcas das balas nas casas onde estava roupa estendida na janela.
22 julho 2004
21 julho 2004
Aviso de recepção
Obrigado pelo postal. Não é comum recebermos postais de férias com imagens de cidades em ruínas e reconstrução. Vai já mentalmente para a porta do frigorífico, suspenso por um íman. Bom regresso.
Um postal da Bósnia (versão acentuada e cedilhada)
Dubrovnic. Croácia.
Ontem passámos o dia na Bósnia-Herzegovina. Dez anos depois, e a guerra continua demasiado visível. Ao longo da estrada, de Split para Sarajevo, percorremos uma paisagem deslumbrante, de planaltos e planícies pontuados por casa metralhadas e montes de feno, depois com montanhas rochosas e mais tarde floresta densa, quase alpina. Cruzámo-nos com militares portugueses, perto da capital. Soube depois que um tropa nosso tinha morrido na semana anterior num acidente estúpido, perto de Tuzla. Há portugueses que vêm morrer a esta terra em nome de uma paz que talvez seja para sempre hesitante.
À entrada de Sarajevo começamos a ver os buracos da balas nas casas, os prédios destruídos, as placas nas paredes com o nome dos mortos civis que tombaram naqueles lugares, e as pessoas na sua vida normal. O estranho nestas cidades são as marcas nas paredes e os habitantes, tal como nós em Lisboa, aparentemente no seu quotidiano banal. As marcas nas paredes são evidentes, as marcas no íntimo de cada bósnio não são visíveis. Também não perguntei, não procurei saber mais, estivemos pouco tempo na cidade. Num lugar onde a seguir a uma mesquita aparece uma igreja católica, onde logo depois de vermos e ouvirmos o canto do "muezzin" numa mesquita, damos com uma igreja ortodoxa e, num recanto, a um quarteirão de distância, se ergue uma sinagoga, num lugar assim, ou encontraríamos o paraíso da tolerância, ou as coisas haviam mesmo de dar para o torto.
Na velha biblioteca de Sarajevo uma inscrição dizia que esta tinha sido incendiada pelos "criminosos sérvios". Está a ser reconstruída com a ajuda internacional e exibia uma instalação de um artista plástico, que enchia os velhos nichos onde um dia tinham estado os antigos volumes com sacas de sarapilheira (como as que servem para as barricadas), livros, sacos-sarcófagos, pedras. Tocante.
Seguimos para Mostar, onde só chegámos à noite, para vermos a ponte secular que tinha sido destruída pelos próprios bósnios-croatas, em combates contra as milícias muçulmanas. Entrámos pelo lado muçulmano, onde os jardins públicos e a frontaria de casas estão cheios de lápides de vítimas dos bombardeamentos, enterradas a pressa. Passámos para o outro lado do rio, onde um em cada quatro predios está completamente esventrado. Na zona velha encontramos, porém, uma cidade em festa: Mostar 2004. A ponte que simboliza a ligação entre as culturas está pronta. Foi reconstruída com a ajuda da Unesco. Vai ser inaugurada amanhã, sexta-feira dia 23 de Julho, com a presenca de personalidades de todo o mundo. À noite, iluminada assim, com uma luz amarelada, vista dos restaurantes à beira rio, temos uma bela imagem: a de uma vida nova. Talvez o futuro venha a ser melhor.
Seguimos para Sul. Hoje chegámos a Dubrovic, um enclave croata que esteve cercado sete meses pelos sérvios e montenegrinos. A maior parte da cidade foi bombardeada. A maior parte ja foi reconstruída. É património mundial. Um lugar invejável. Que devia fazer-nos pensar. Esta guerra foi demasiado perto de nós. E nunca tivemos essa percepção de proximidade, quando olhavámos para aqui a partir de Portugal.
Um abraço. Nos próximos dois dias regressamos a Portugal via Veneza. Ainda temos muitos quilómetros à nossa frente.
Ontem passámos o dia na Bósnia-Herzegovina. Dez anos depois, e a guerra continua demasiado visível. Ao longo da estrada, de Split para Sarajevo, percorremos uma paisagem deslumbrante, de planaltos e planícies pontuados por casa metralhadas e montes de feno, depois com montanhas rochosas e mais tarde floresta densa, quase alpina. Cruzámo-nos com militares portugueses, perto da capital. Soube depois que um tropa nosso tinha morrido na semana anterior num acidente estúpido, perto de Tuzla. Há portugueses que vêm morrer a esta terra em nome de uma paz que talvez seja para sempre hesitante.
À entrada de Sarajevo começamos a ver os buracos da balas nas casas, os prédios destruídos, as placas nas paredes com o nome dos mortos civis que tombaram naqueles lugares, e as pessoas na sua vida normal. O estranho nestas cidades são as marcas nas paredes e os habitantes, tal como nós em Lisboa, aparentemente no seu quotidiano banal. As marcas nas paredes são evidentes, as marcas no íntimo de cada bósnio não são visíveis. Também não perguntei, não procurei saber mais, estivemos pouco tempo na cidade. Num lugar onde a seguir a uma mesquita aparece uma igreja católica, onde logo depois de vermos e ouvirmos o canto do "muezzin" numa mesquita, damos com uma igreja ortodoxa e, num recanto, a um quarteirão de distância, se ergue uma sinagoga, num lugar assim, ou encontraríamos o paraíso da tolerância, ou as coisas haviam mesmo de dar para o torto.
Na velha biblioteca de Sarajevo uma inscrição dizia que esta tinha sido incendiada pelos "criminosos sérvios". Está a ser reconstruída com a ajuda internacional e exibia uma instalação de um artista plástico, que enchia os velhos nichos onde um dia tinham estado os antigos volumes com sacas de sarapilheira (como as que servem para as barricadas), livros, sacos-sarcófagos, pedras. Tocante.
Seguimos para Mostar, onde só chegámos à noite, para vermos a ponte secular que tinha sido destruída pelos próprios bósnios-croatas, em combates contra as milícias muçulmanas. Entrámos pelo lado muçulmano, onde os jardins públicos e a frontaria de casas estão cheios de lápides de vítimas dos bombardeamentos, enterradas a pressa. Passámos para o outro lado do rio, onde um em cada quatro predios está completamente esventrado. Na zona velha encontramos, porém, uma cidade em festa: Mostar 2004. A ponte que simboliza a ligação entre as culturas está pronta. Foi reconstruída com a ajuda da Unesco. Vai ser inaugurada amanhã, sexta-feira dia 23 de Julho, com a presenca de personalidades de todo o mundo. À noite, iluminada assim, com uma luz amarelada, vista dos restaurantes à beira rio, temos uma bela imagem: a de uma vida nova. Talvez o futuro venha a ser melhor.
Seguimos para Sul. Hoje chegámos a Dubrovic, um enclave croata que esteve cercado sete meses pelos sérvios e montenegrinos. A maior parte da cidade foi bombardeada. A maior parte ja foi reconstruída. É património mundial. Um lugar invejável. Que devia fazer-nos pensar. Esta guerra foi demasiado perto de nós. E nunca tivemos essa percepção de proximidade, quando olhavámos para aqui a partir de Portugal.
Um abraço. Nos próximos dois dias regressamos a Portugal via Veneza. Ainda temos muitos quilómetros à nossa frente.
19 julho 2004
Guido, o dálmata português
Split. Croácia. Guido apareceu-nos estávamos a descansar no pátio da casa-museu do famoso escultor croata, Ivan Mestrovitć, na zona alta e antiga de Zagreb. Estão a falar português, percebi, disse-nos antes de mais. E dirigiu-se-nos em espanhol. Alto, magro, de olhos azuis, e cabelos grisalhos, um misto de marinheiro, estudioso e viajante mediterrânico, garantiu que há quinhentos anos a sua família tinha vindo de Portugal, embora sem ter explicado porquê. Depois, este professor de história de arte que fora director daquele museu durante alguns anos, contou-nos esta curiosa história: Na sua terra Natal, Split (onde escrevo num pequeno ciber-café, apesar de a Carla questionar que necessidade tenho eu de vir escrever em férias), mantém-se a tradição de queimar os barcos que são abatidos: depois, parte das cinzas são atiradas ao mar, enquanto outra parte vai num porte, para o barco novo do mesmo proprietário. E a família de Guido tinha um barco. E não só a família tem antepassados portugueses, como parece que o próprio barco era de origem lusa, provavelmente de Lisboa. Quando resolveram comprar uma embarcação nova, queimaram a antiga, cumprindo a tradição na Dalmácia. E dividiram as cinzas. Uma parte foi para um pote, colocada como se num altar no barco novo; e a outra parte viajou, por vontade de Guido, até Lisboa, na bagagem do Presidente da Croácia, em 1998. O Presidente (decerto amigo de Guido, mas não entramos nesses pormenores), de oficial visita a Lisboa durante a Expo'98, transportou as cinzas com a missão de as devolver ao Rio Tejo. Tarefa que terá desempenhado com solenidade, quem sabe, porque Guido também não explicou muito mais, durante a nossa breve conversa. Guido, o académico dálmata, nunca foi a Portugal a procura das suas raízes, mas uma tia esteve em Lisboa e disse-lhe que era a cidade mais bela que já tinha visto.
Tiago, corrige-me por favor este texto, que o teclado croata obrigou-me a assassinar o português.
(Da cidade mais bela de todas as visitadas pela tia do Guido, já corrigi as faltas. Achava melhor ter deixado o texto como estava: mais exótico, com as dificuldades das férias em viagem por lugares afastados do quotidiano; mas cumpri o pedido. Boa viagem. Tiago Araújo)
Tiago, corrige-me por favor este texto, que o teclado croata obrigou-me a assassinar o português.
(Da cidade mais bela de todas as visitadas pela tia do Guido, já corrigi as faltas. Achava melhor ter deixado o texto como estava: mais exótico, com as dificuldades das férias em viagem por lugares afastados do quotidiano; mas cumpri o pedido. Boa viagem. Tiago Araújo)
Postal de um exilado na Croácia
Split. Croácia. Como um golpe de Estado é uma coisa que dá muito trabalho e comporta os seus riscos, resolvi não emigrar, mas exilar-me durante algum tempo. Quinze dias, de Veneza a Dubrovnic, ao longo de toda a Croácia, passando por Sarajevo e Mostar, na Bosnia-Herzebžgovina, tornou-se num suave e breve exílio para quem vê a pátria nesta estranha situação. A escolha do itinerário foi inocente, mas agora deixou de o ser, porque, ao tomar consciência do que sofreram recentemente estes povos mediterrânicos como nós, ganha-se alento para voltar a um país que está como está. Se eles recuperaram assim, pelo menos aparentemente, de uma guerra como foi a guerra na Jugoslávia espartilhada, também Portugal sobreviverá aos santanistas e às santanettes.
Split, na zona antiga, é um misto de cidade romana, com o palácio de Diocleciano a dominar tudo o resto, de cidade medieval, e de centro renascentista dominado por Veneza. Como devem calcular é um lugar belo, apesar do excesso de esplanadas (eles têm-nas a mais, enquanto nós as temos a menos), e do excesso de turistas, como eu, aliás.
Nunca tinha ido a Veneza. Trago de lá a maior vontade de regressar, de preferência no Inverno, com poucos turistas, para explorar a história e os significados de um lugar singular.
Zabreb é uma capital estranhamente calma, pelo que percebemos, com gente profundamente religiosa. Numa das portas da cidade antiga, um fresco da virgem com o menino, que sobreviveu a um incêndio no sec. XVIII, e adorada por quase toda a gente que passa: jovens, velhos, homens, mulheres, quase todos se benzem; uma boa parte faz uma pequena oração antes de prosseguir; e alguns ficam ali alguns minutos a rezar. Não deixa de ser impressionante num pais católico, até porque os católicos não são de mostrar assim tão em público a sua religião. Fez-me lembrar os muçulmanos nos países muçulmanos. Mas a religião define a Croácia, assim como a Sérvia ou a Bósnia, é preciso não esquecer estas estranhas fronteiras (estranhas quando observadas por um português). Disseram-nos várias vezes: "como é que foram perder com os gregos? Toda a Croácia estava a torcer por vocês". Claro, nós somos os irmãos católicos, e os gregos os inimigos ortodoxos. E claro que estas coisas são sempre muito mais complicadas do que parecem.
Está um sol fabuloso e hoje vamos voltar a gozar (eu, a Carla, o Afonso e a Blandina), um belo dia de praia sobre as rochas dálmatas suavemente banhadas pelas calmas e cálidas águas adriáticas.
Tiago, por favor, põe-me os acentos e as cedilhas nisto.
Split, na zona antiga, é um misto de cidade romana, com o palácio de Diocleciano a dominar tudo o resto, de cidade medieval, e de centro renascentista dominado por Veneza. Como devem calcular é um lugar belo, apesar do excesso de esplanadas (eles têm-nas a mais, enquanto nós as temos a menos), e do excesso de turistas, como eu, aliás.
Nunca tinha ido a Veneza. Trago de lá a maior vontade de regressar, de preferência no Inverno, com poucos turistas, para explorar a história e os significados de um lugar singular.
Zabreb é uma capital estranhamente calma, pelo que percebemos, com gente profundamente religiosa. Numa das portas da cidade antiga, um fresco da virgem com o menino, que sobreviveu a um incêndio no sec. XVIII, e adorada por quase toda a gente que passa: jovens, velhos, homens, mulheres, quase todos se benzem; uma boa parte faz uma pequena oração antes de prosseguir; e alguns ficam ali alguns minutos a rezar. Não deixa de ser impressionante num pais católico, até porque os católicos não são de mostrar assim tão em público a sua religião. Fez-me lembrar os muçulmanos nos países muçulmanos. Mas a religião define a Croácia, assim como a Sérvia ou a Bósnia, é preciso não esquecer estas estranhas fronteiras (estranhas quando observadas por um português). Disseram-nos várias vezes: "como é que foram perder com os gregos? Toda a Croácia estava a torcer por vocês". Claro, nós somos os irmãos católicos, e os gregos os inimigos ortodoxos. E claro que estas coisas são sempre muito mais complicadas do que parecem.
Está um sol fabuloso e hoje vamos voltar a gozar (eu, a Carla, o Afonso e a Blandina), um belo dia de praia sobre as rochas dálmatas suavemente banhadas pelas calmas e cálidas águas adriáticas.
Tiago, por favor, põe-me os acentos e as cedilhas nisto.
15 julho 2004
A imaginação segue dentro de momentos. Enquanto isso...
(a mão negra)
O extremo poder dos símbolos reside em que eles, além de concentrarem maior energia que o espectáculo difuso do acontecimento real, possuem a força expansiva suficiente para captar tão vasto espaço da realidade que a significação a extrair deles ganha a riqueza múltipla e multiplicadora da ambiguidade. Mover-se nos terrenos dos símbolos, com a devida atenção à subtileza e a certo rigor que pertence à imaginação de qualidade alta, é o que distingue o grande intérprete do pequeno movimentador de correntes de ar.
[...]
Herberto Helder, Photomaton & Vox
(a mão negra)
O extremo poder dos símbolos reside em que eles, além de concentrarem maior energia que o espectáculo difuso do acontecimento real, possuem a força expansiva suficiente para captar tão vasto espaço da realidade que a significação a extrair deles ganha a riqueza múltipla e multiplicadora da ambiguidade. Mover-se nos terrenos dos símbolos, com a devida atenção à subtileza e a certo rigor que pertence à imaginação de qualidade alta, é o que distingue o grande intérprete do pequeno movimentador de correntes de ar.
[...]
Herberto Helder, Photomaton & Vox
12 julho 2004
Comentário atrasado e bastante breve
O Presidente da República tomou uma decisão para o futuro, mas não para o presente. Quis reforçar a componente parlamentarista do sistema semipresidencial, mas o poder que reforçou foi o dos partidos, não o do parlamento. Privilegiou excessivamente o elemento representativo da democracia, em detrimento do participativo.
08 julho 2004
A Adília Lopes está (diz ela) com alguns problemas psíquicos e emocionais desde o último Natal. Escreve as cartas à mão. Deixou crescer o cabelo, que apanhou em rabo de cavalo apenas para um poema. Com a cabelo apanhado, talvez para ver melhor o papel de carta, escreveu um texto fantástico para o último número da revista Relâmpago, sobre como se faz um poema com um pouco disto tudo.
Citação para a depressão
Vira tudo nitidamente assim que passou o cume dos trinta, o mais alto e escarpado de toda a travessia. A surpresa e o doloroso desconcerto que então viveu foram os de alguém que desperta bruscamente de um plácido sonho. Pois, assim como um actor enganado pode actuar numa première convencido de que se trata apenas de um ensaio geral, também ele actuara na sua juventude convencido que mais tarde, só mais tarde, chegaria a hora do début. E ao descobrir que ela já passara, mergulhou imediatamente num desconcerto tão profundo e obscuro como o fundo de um poço.
Ricardo Cano Gaviria, O Passageiro Walter Benjamin
Ricardo Cano Gaviria, O Passageiro Walter Benjamin
05 julho 2004
VI
Irmão do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
P'ra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impões
Leis que não são as minhas.
Teus pés batem a dança
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidias cintilas
Longas mãos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face de toira
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.
Sophia de Mello Breyner Andersen, «Homenagem a Ricardo Reis», Dual
Irmão do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
P'ra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impões
Leis que não são as minhas.
Teus pés batem a dança
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidias cintilas
Longas mãos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face de toira
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.
Sophia de Mello Breyner Andersen, «Homenagem a Ricardo Reis», Dual
02 julho 2004
Jorge Sampaio está a auscultar as mais altas individualidades do país. Não consigo deixar de imaginá-lo a mandá-las entrar para o seu gabinete, a pedir para se despirem da cintura para cima e a pegar no estetoscópio. «Inspire fundo,... outra vez. Pois, o seu pulmão esquerdo quer dissolução da Assembleia e o direito Santana Lopes.» Também estou a imaginar alguns a susterem a respiração, amuados, até lhes fazerem a vontade.
Morreu Marlon Brando. Como vi os filmes mais importantes em que entrou pela ordem inversa (Apocalipse Now, O Padrinho, Último Tango em Paris, Há Lodo no Cais, Um Eléctrico Chamado Desejo), foi para mim tornando-se cada vez mais novo: Stanley a gritar por Stella na base das escadas de uma casa do Bairro Francês de New Orleans. Saber que morreu hoje, num hospital da Califórnia, foi por isso uma surpresa, notícias de alguém de quem não me lembrava há muito tempo.
Um por todos, todos por nenhum
Um homem. Bastou a vontade de um homem para o país ficar num alvoroço e agora parece que ninguém serve. Isto assusta. Numa democracia não devia ser assim. A pluralidade devia ser sinónmo de existência de muitas escolhas possíveis. E de gente boa para escolher à direita e à esquerda.
Durão Barroso escolheu a Europa, e seria difícil a um português rejeitar essa oferta. Mas devia haver algum sucessor no Governo, membro do Governo e do partido, que as pessoas pudessem ver com naturalidade no cargo de primeiro-ministro, mesmo que não concordassem com ele. O mesmo se passa no PS. Se houver eleições, quem é que está a ver Ferro Rodrigues como primeiro-ministro, depois de ter provado que não tem esse estofo, pela maneira como reagiu ao processo da Casa Pia?
O rectângulo está em risco. Alguém nos acode? Retiro a proposta do golpe de Estado. Talvez não houvesse ninguém a quem valesse a pena entregar o poder. A dona Constança não quer entrar nesta festança?
Durão Barroso escolheu a Europa, e seria difícil a um português rejeitar essa oferta. Mas devia haver algum sucessor no Governo, membro do Governo e do partido, que as pessoas pudessem ver com naturalidade no cargo de primeiro-ministro, mesmo que não concordassem com ele. O mesmo se passa no PS. Se houver eleições, quem é que está a ver Ferro Rodrigues como primeiro-ministro, depois de ter provado que não tem esse estofo, pela maneira como reagiu ao processo da Casa Pia?
O rectângulo está em risco. Alguém nos acode? Retiro a proposta do golpe de Estado. Talvez não houvesse ninguém a quem valesse a pena entregar o poder. A dona Constança não quer entrar nesta festança?
Primeiro-ministro sob caução, não!
O FC Porto é Campeão Europeu, Portugal está na final do Euro 2004, Durão é presidente da Comissão Europeia. Fizémos o pleno. Mas no campeonato nacional ainda está tudo por decidir. Santana já lidera o PSD, mas as coisas em Belém não estão claras. Ninguém é capaz de afirmar hoje, com a mesma convicção de há uns dias, que Jorge Sampaio não vai convocar eleições antecipadas.
Há um cenário que tem sido lançado, mas é indesejável: o do Presidente aceitar Santana se ele levar nomes fortes para as pastas económicas. Se Santana Lopes for aceite por Sampaio levando como caução nomes tão fortes como António Borges (nas Finanças) ou António Mexia (na Economia), para garantir a credibilidade do Governo, esta seria uma má solução. Por quê? Ou bem que se confia em Santana, ou bem que não se confia. Nomeá-lo primeiro-ministro por causa dos seus ministros faria dele um débil chefe de Executivo, que teria de se demitir um dos seus ministros um dia se fosse embora.
Santana deve ser primeiro-minstro, se os portugueses votarem nas listas do PSD, em eleições antecipadas. Instabilidade por instabilidade, a instabilidade já foi lançada.
Há um cenário que tem sido lançado, mas é indesejável: o do Presidente aceitar Santana se ele levar nomes fortes para as pastas económicas. Se Santana Lopes for aceite por Sampaio levando como caução nomes tão fortes como António Borges (nas Finanças) ou António Mexia (na Economia), para garantir a credibilidade do Governo, esta seria uma má solução. Por quê? Ou bem que se confia em Santana, ou bem que não se confia. Nomeá-lo primeiro-ministro por causa dos seus ministros faria dele um débil chefe de Executivo, que teria de se demitir um dos seus ministros um dia se fosse embora.
Santana deve ser primeiro-minstro, se os portugueses votarem nas listas do PSD, em eleições antecipadas. Instabilidade por instabilidade, a instabilidade já foi lançada.
26 junho 2004
Santana ganha na secretaria
Afinal Durão Barroso sempre se vai embora. Santana Lopes deve ser o sucessor, com Paulo Portas a vice-primeiro ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Ao que este País triste chegou. Santana ganhou na secretaria aquilo que nem o seu próprio partido alguma vez lhe deu. Será que o próprio PSD aceita uma coisa assim?
Se Jorge Sampaio agir à Sampaio, ficará tudo na mesma. Sem eleições antecipadas. Com Santana e Portas à frente da nação. Os próximos meses vão ser muito animados. É a única certeza.
Do outro lado temos a pobreza que é a oposição do PS e a liderança de Ferro Rodrigues. Portugal está em situação de emergência. Ou fazemos um golpe de Estado ou emigramos.
Se Jorge Sampaio agir à Sampaio, ficará tudo na mesma. Sem eleições antecipadas. Com Santana e Portas à frente da nação. Os próximos meses vão ser muito animados. É a única certeza.
Do outro lado temos a pobreza que é a oposição do PS e a liderança de Ferro Rodrigues. Portugal está em situação de emergência. Ou fazemos um golpe de Estado ou emigramos.
24 junho 2004
Demoliram uma fábrica e o rio já nos corre frente à janela. É apenas uma faixa estreita de rio, a trezentos metros de distância, mas já dá para mergulhar, molhar imaginariamente os pés ao fim da tarde. É um salto para a água mais horizontal do que vertical, com elementos técnicos que contrariam as leis da gravidade. Dentro dela, a trezentos metros de distância, é mais fácil suportar o calor das águas-furtadas e a tarde de trabalho. Por vezes, um navio acosta e tapa-nos a vista com uma parede de metal; prolongamos ainda mais o exercício de transmigração e partimos com ele, clandestinos.
As eleições europeias, perdoe-se o atraso do post, trouxeram ao país uma estranha discussão: quem ganhou as eleições foi Ferro ou o Partido Socialista? O PS ganhou por causa de Ferro ou apesar de Ferro? O homem resistiu e sobreviveu. E agora arrisca-se a que um dia o poder lhe caia no colo. Mas os seus amigos no partido querem livrá-lo desse fardo. É uma original consequência do melhor resultado eleitoral de sempre para o PS.
Na coligação a coisa também é excêntrica. O PSD foi um partido canguru que levou na bolsa um pequeno partido vampiro que, não só se deixou transportar através da campanha sem mostrar o que na verdade diria se estivesse a concorrer sozinho, como sugou dois deputados laranjas e não reduziu a sua representação em Estrasburgo. O PSD foi, de facto, o único partido que perdeu as eleições.
Não admira que o PSD ande a pensar se é melhor ir sozinho ou acompanhado às legislativas. Que podem ser bem depressa, se Durão Barroso aceitar ser presidente da Comissão Europeia. Depois de Guterres ter fugido pela porta baixa depois da derrota eleitoral nas autárquicas de 2001, Durão quererá sair entronizado pela grande porta depois da derrota eleitoral nas europeias de 2004? Ao alimentar o suspense sobre o seu nome, Barroso passa o sinal de que o país é uma realidade secundária. Ou quererá dizer depois que é querido lá fora para ganhar credibilidade cá dentro?
Na coligação a coisa também é excêntrica. O PSD foi um partido canguru que levou na bolsa um pequeno partido vampiro que, não só se deixou transportar através da campanha sem mostrar o que na verdade diria se estivesse a concorrer sozinho, como sugou dois deputados laranjas e não reduziu a sua representação em Estrasburgo. O PSD foi, de facto, o único partido que perdeu as eleições.
Não admira que o PSD ande a pensar se é melhor ir sozinho ou acompanhado às legislativas. Que podem ser bem depressa, se Durão Barroso aceitar ser presidente da Comissão Europeia. Depois de Guterres ter fugido pela porta baixa depois da derrota eleitoral nas autárquicas de 2001, Durão quererá sair entronizado pela grande porta depois da derrota eleitoral nas europeias de 2004? Ao alimentar o suspense sobre o seu nome, Barroso passa o sinal de que o país é uma realidade secundária. Ou quererá dizer depois que é querido lá fora para ganhar credibilidade cá dentro?
Um regresso
Regresso ao blogue, como se o blogue fosse meu, como alguém que regressa a casa anos depois de ter desaparecido pelo mundo, e já não sente bem aquele lugar como seu. Este é o blogue do Tiago, cada vez mais, e sobretudo por minha ausência, mas também melhor por isso mesmo.
21 junho 2004
É um dos momentos mais reconfortantes do quotidiano, quando acabamos de ler um livro e vamos à estante escolher o seguinte. Não sabemos muito bem o que nos apetece, lemos a contracapa, avaliamos o peso e o volume, o índice de legibilidade em transportes públicos, o tamanho da letra, etc. De todos os critérios, o que mais utilizo é o da leitura do primeiro parágrafo. É tão falível como todos os outros, mas é por causa dele que vou andar a arrastar por Lisboa, nos próximos dias, O Passageiro Walter Benjamin de Ricardo Cano Gaviria:
Por momentos, precisamente ao sair do túnel que desembocava na longa escadaria, conduzindo às primeiras ruas da aldeia, a ilusão de uma placidez reconfortante foi quase perfeita. O forte banho de luz arrancou-o por um instante do espaço opressivo delimitado pelo quadrado betuminoso dos cais de embarque, onde tudo, desde as paredes raiadas da estação, até aos sombrios e distantes vagões colocados na via desactivada, passando pelo próprio olhar da criança que transportava as bagagens e oferecia os seus préstimos à comitiva, parecia albergar uma secreta correspondência com o boné cinzento dos polícias, com a voz inflexível do homem uniformizado que se recusara a carimbar-lhes a entrada no país, e essa espécie de nó na garganta desapareceu por completo. Ali estava de novo a luz mediterrânica que os acompanhara, rude e estimulante, durante toda a travessia a pé pela estrada Líster, e que agora os abandonava à sua sorte ao entrarem propriamente na aldeia, após o opressivo parêntesis da estação.
(Dedicado à Isabel, para que não cancele a sua assinatura anual)
Por momentos, precisamente ao sair do túnel que desembocava na longa escadaria, conduzindo às primeiras ruas da aldeia, a ilusão de uma placidez reconfortante foi quase perfeita. O forte banho de luz arrancou-o por um instante do espaço opressivo delimitado pelo quadrado betuminoso dos cais de embarque, onde tudo, desde as paredes raiadas da estação, até aos sombrios e distantes vagões colocados na via desactivada, passando pelo próprio olhar da criança que transportava as bagagens e oferecia os seus préstimos à comitiva, parecia albergar uma secreta correspondência com o boné cinzento dos polícias, com a voz inflexível do homem uniformizado que se recusara a carimbar-lhes a entrada no país, e essa espécie de nó na garganta desapareceu por completo. Ali estava de novo a luz mediterrânica que os acompanhara, rude e estimulante, durante toda a travessia a pé pela estrada Líster, e que agora os abandonava à sua sorte ao entrarem propriamente na aldeia, após o opressivo parêntesis da estação.
(Dedicado à Isabel, para que não cancele a sua assinatura anual)
16 junho 2004
«O rapazinho está fora de si. Abre caminho através da multidão, gritando, até à égua, abraça-lhe o focinho morto e ensanguentado, e beija-a, beija-a nos olhos, nos beiços...» (Crime e Castigo) Raskólnikov sonha com a infância, com um domingo em que passeia com o pai e vê um camponês bêbado bater no seu cavalo até à morte. No acto que despertou a loucura que o acompanharia o resto da vida, Nietzsche, em Turim, em 1889, corre para um cavalo que está a ser açoitado pelo cocheiro e abraça-lhe o pescoço. A influência de Dostoiévski em Nietzsche ultrapassa nesse momento a ficção. Ou transforma-se em ficção, o que é quase a mesma coisa.
A ventoinha
O calor nas águas-furtadas já só pode ser atenuado com uma combinação de nudez e de ventoinha. O Carlos de Oliveira tem um poema sobre as vantagens de viver numa mansarda («Vidro», Micropaisagem), de que já não me lembro muito bem. Temos mais chuva, quando chove, e mais calor, quando faz sol, do que os andares mais baixos. Amanhece mais cedo, qualquer coisa assim. Vivemos em condições meteorológicas extremas. Abraçamo-nos mas está demasiado frio para nos despirmos. Despimo-nos mas está demasiado calor para nos conseguirmos abraçar. Etc.
14 junho 2004
Um dos conceitos mais interessantes da área dos estudos eleitorais é o do votante sofisticado ou inteligente. Simplificando, o eleitor não vota na que seria naturalmente a sua primeira escolha, mas tendo em conta outros factores, aritméticos ou simbólicos. Os eleitores têm motivações diversas e insondáveis e a agregação dos seus votos em percentagens torna-se na proclamação de um oráculo que «não revela nem esconde, dá sinais.» O facto de, esta noite, os sinais serem múltiplos e contraditórios revela apenas que precisamos de intérpretes mais sofisticados e inteligentes e de mais sociologia eleitoral.
08 junho 2004
02 junho 2004
Morar num terceiro andar obriga-nos a conviver com a atracção pelo abismo. Hoje suicidou-se-nos mais um pano do pó. Não deixou sequer uma nota a explicar uma decisão tão drástica. Mas já estamos habituados. Os nossos objectos têm tendência a lançar-se em queda livre. Quanto a isso, as molas da roupa são os escandinavos dos objectos. À mínima distracção uma lança-se no vazio. E os nossos vizinhos também parecem ter o mesmo problema. Há um telheiro no rés-do-chão onde repousam os restos mortais de cada vez mais objectos improváveis: um vaso inteiro, muitas molas de roupa, um pano do pó, um soutien, dois pares de cuecas. São apenas dados sem teoria, para o caso de alguém querer actualizar o trabalho de Durkheim.
01 junho 2004
Eternal Sunshine of the Spotless Mind
Talvez seja mesmo possível entrar na cabeça de John Malkovich, cair dela para um terreno ao lado de uma auto-estrada. Mas mais interessante seria entrar na de Charlie Kaufman. As ideias labirínticas saem de cérebros labirínticos e todos temos cérebros assim, com os nossos próprios animais míticos. Charlie Kaufman parece ter simplesmente perdido a ponta do fio que indica o caminho mais rápido entre o cinzento mais profundo e a luz do dia. E leva-nos de memória em memória, numa organização improvável das imagens. Charlie Kaufman é o argumentista de Being John Malkovich, Adaptation (Inadaptado) e, agora, de Eternal Sunshine of the Spotless Mind (O Despertar da Mente). O título original do filme é retirado de um poema de Alexander Pope («How happy is the blameless vestal's lot!/ The world forgetting, by the world forgot./ Eternal sunshine of the spotless mind!/ Each pray'r accepted, and each wish resign'd.») e não se podia pedir mais do que a recusa de uma tradução literal. Três e muito.
28 maio 2004
O Embaixador de Jesus, Paula Rego
Amaro tem as mãos sobre o manto azul. A mão esquerda sobre a cabeça de Amélia, a direita na perna. Amélia retrai-se, perturbando por momentos o equilíbrio entre a razão e o desejo. A batina negra dele parece ganhar o mesmo valor simbólico do chapéu preto dos vilões nos westerns. Ela está vestida de branco. No fundo, em volta, anjos ou mulheres-cão, outras testemunhas de um crime, uma boneca, um bébe, o reflexo de Amaro.
Foi este o quadro – ou um dos quadros – de Paula Rego que ardeu, esta semana, em Londres, no incêndio de um armazém de obras de arte contemporânea.
Podemos, pelo menos, ficar com o momento seguinte da cena, pelo Eça:
Amaro então chegou-se por detrás dela, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda - e estendendo os lábios por sobre os dela, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos de Amélia cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para trás, pesada de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam, ávidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração dela apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre, descorada e morta de gozo.
Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro
(Apesar de Eça ter quebrado uma das regras fundamentais de construção de cenas eróticas, a utilização do termo «beiços», não deixa de ser uma descrição sugestiva.)
Foi este o quadro – ou um dos quadros – de Paula Rego que ardeu, esta semana, em Londres, no incêndio de um armazém de obras de arte contemporânea.
Podemos, pelo menos, ficar com o momento seguinte da cena, pelo Eça:
Amaro então chegou-se por detrás dela, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda - e estendendo os lábios por sobre os dela, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos de Amélia cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para trás, pesada de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam, ávidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração dela apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre, descorada e morta de gozo.
Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro
(Apesar de Eça ter quebrado uma das regras fundamentais de construção de cenas eróticas, a utilização do termo «beiços», não deixa de ser uma descrição sugestiva.)
Remover
Acabei de receber uma carta de José Luís Arnaut a motivar-me para o Euro, quando a única coisa que me poderia desmotivar era receber uma carta do Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro a tentar motivar-me. Apeteceu-me logo cancelar a encomenda da grade de «minis» e enrolar a bandeira, mas fiz o mais razoável - o mesmo que julgo que fará o resto dos «caros portugueses» - voltei-lhe as costas e colei-a no frigorífico (na parte de trás tem um calendário dos jogos).
26 maio 2004
O oásis de Amesterdão
A Gisela leu sobre o suicídio botânico e escreveu-me a dizer que lhe acontece exactamente o contrário. No escritório acham estranho que apenas as plantas que estão à volta dela sobrevivam. Imagino-a no seu oásis, a colher tâmaras com um braço e a agrafar com o outro, com um deserto de secretárias a estender-se centrifugamente. Depois de ver a mãe dela a cuidar do quintal de Moledo, acredito simplesmente que deve haver algo de genético na relação com os vegetais.
E a Eva, a irmã da Gisela, está grávida. Parabéns a ela e ao César, a ele o que é dele.
(Gisela, como não sei se conseguiste encontrar alguma coisa da Adília Lopes aí por Amesterdão, toma lá dois poemas.)
Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações
A Pão e Água de Colónia, Frenesi, 1987
Maria Andrade vai
à casa de banho
do aeroporto de Kinshasa
para rezar
precisa de agradecer
o encontro fortuito
com Túlio
como nas igrejas
em que entra
pela primeira vez
(é a primeira vez
que entra na casa de banho
do aeroporto de Kinshasa)
pede três graças
que mantém secretas
o Pai bate na testa
o Filho entre as maminhas
o Espírito na maminha esquerda
e o Santo na direita
às vezes o Espírito Santo
fica todo
na maminha esquerda
outras vezes o santo
fica no ar entre as maminhas
Maria Andrade
de joelhos
de mãos postas
reza
mas as maminhas interferem
com os antebraços
Maria Andrade
nunca viu nada escrito
sobre este assunto
A Continuação do Fim do Mundo, & etc, 1995
E a Eva, a irmã da Gisela, está grávida. Parabéns a ela e ao César, a ele o que é dele.
(Gisela, como não sei se conseguiste encontrar alguma coisa da Adília Lopes aí por Amesterdão, toma lá dois poemas.)
Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações
A Pão e Água de Colónia, Frenesi, 1987
Maria Andrade vai
à casa de banho
do aeroporto de Kinshasa
para rezar
precisa de agradecer
o encontro fortuito
com Túlio
como nas igrejas
em que entra
pela primeira vez
(é a primeira vez
que entra na casa de banho
do aeroporto de Kinshasa)
pede três graças
que mantém secretas
o Pai bate na testa
o Filho entre as maminhas
o Espírito na maminha esquerda
e o Santo na direita
às vezes o Espírito Santo
fica todo
na maminha esquerda
outras vezes o santo
fica no ar entre as maminhas
Maria Andrade
de joelhos
de mãos postas
reza
mas as maminhas interferem
com os antebraços
Maria Andrade
nunca viu nada escrito
sobre este assunto
A Continuação do Fim do Mundo, & etc, 1995
24 maio 2004
Uma Primavera de mulheres
A Carla está grávida. O Pedro (Santos) mostrou-nos a ecografia. Como ainda é demasiado cedo para se distinguirem feições, convencionámos que o lado esquerdo se parece mais com a Carla e o direito como o Pedro. A Irene também está grávida e o Ireneu já começou a trocar os guias de viagem para os próximos anos: os do Perú, do Bangladesh, da Albânia, pelos da Eurodisney. A minha prima Sílvia também está. E a Celita, e a Sónia. Encontrei o Hélder da minha turma, que vai ter um filho em Setembro, e o Rui vai ter gémeos (contou-me o Fernando), e acho que ouvi falar que a Eunice também estava grávida, mas não tenho a certeza. Ainda é cedo para falar de uma explosão demográfica, mas a este ritmo os meus amigos vão obrigar o Professor Barata a actualizar a sua sebenta de 1961.
21 maio 2004
OS COMEDORES DE ESPAÇO
O terror instalara-se na região com a chegada dos comedores de espaço. Os habitantes olhavam atónitos o espaço a desaparecer a toda a sua volta, incluindo casas, ruas, rios, árvores. Nada indicava que atrás deles não surgissem criadores de espaço capazes de repor as coisas nos devidos lugares ou que os próprios comedores não pudessem vomitar tudo o que haviam devorado. Mas mesmo nesta circunstância o mais provável era que o espaço, transformado entretanto nas entranhas de quem o deglutira, pouco tivesse já a ver com o que os habitantes haviam conhecido, nele se misturando coisas que os comedores trouxessem na memória e que decerto lhe viriam agarradas quando violentamente o expelissem.
Luís Miguel Nava, Vulcão
(O itálico é meu.)
O terror instalara-se na região com a chegada dos comedores de espaço. Os habitantes olhavam atónitos o espaço a desaparecer a toda a sua volta, incluindo casas, ruas, rios, árvores. Nada indicava que atrás deles não surgissem criadores de espaço capazes de repor as coisas nos devidos lugares ou que os próprios comedores não pudessem vomitar tudo o que haviam devorado. Mas mesmo nesta circunstância o mais provável era que o espaço, transformado entretanto nas entranhas de quem o deglutira, pouco tivesse já a ver com o que os habitantes haviam conhecido, nele se misturando coisas que os comedores trouxessem na memória e que decerto lhe viriam agarradas quando violentamente o expelissem.
Luís Miguel Nava, Vulcão
(O itálico é meu.)
19 maio 2004
XXII
O crepúsculo excita os loucos. – Lembro-me que tive dois amigos a quem o crepúsculo punha muito doentes. Um deles, nessas alturas, desconhecia todos os deveres da amizade e da educação, e maltratava, como um selvagem, o primeiro que aparecesse. Vi-o atirar à cabeça dum mordomo um excelente frango, em que ele pretendia ver não sei que insultante hieróglifo. A tarde, precursora das volúpias profundas, estragava-lhe as coisas mais suculentas.
Outro, um ambicioso falhado, tornava-se, à medida que o dia tombava, mais acre, mais sombrio, mais travesso. Ainda sociável e indulgente durante o dia, era implacável à tarde; e não era apenas contra os outros mas também contra si mesmo, que raivosamente se aplicava a sua mania crepusculosa
O primeiro morreu doido, incapaz de reconhecer a mulher e o seu filho; o segundo traz em si a inquietação duma doença perpétua, e se fosse decorado com todas as honras que podem conferir as repúblicas e os príncipes, creio que o crepúsculo acenderia ainda nele um ardente desejo pelas distinções imaginárias. A noite, que lhes punha no espírito as suas trevas, ilumina o meu; e, ainda que não seja raro ver a mesma causa engendrar dois efeitos contrários, fico sempre como que intrigado e alarmado com ela.
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris
Nunca atirei – nem tenho amigos que tenham atirado – frangos excelentes à cabeça de ninguém. A minha sanidade e a dos meus amigos vai ao ponto de não atirarmos a ninguém mesmo frangos menos bons. É um limiar de loucura muito débil, mas suficiente para tempos tão estranhos e agitados. Não tenho qualquer «mania crepusculosa», apenas o crepúsculo à minha frente e uma citação que não deve ser desperdiçada. Também não tenho nenhuma teoria geral sobre as personalidades crepusculares, capaz de explicar a diferença entre as matinais e as nocturnas. A passagem das trevas para a luz ou da luz para as trevas (qualquer que seja o sentido, real ou metafórico) não pode deixar de provocar distúrbios de personalidade. Talvez a loucura crepuscular seja uma doença mais comum do que os compêndios de psicologia admitam, e o seu primeiro sintoma seja o de se escrever textos sobre ela.
O crepúsculo excita os loucos. – Lembro-me que tive dois amigos a quem o crepúsculo punha muito doentes. Um deles, nessas alturas, desconhecia todos os deveres da amizade e da educação, e maltratava, como um selvagem, o primeiro que aparecesse. Vi-o atirar à cabeça dum mordomo um excelente frango, em que ele pretendia ver não sei que insultante hieróglifo. A tarde, precursora das volúpias profundas, estragava-lhe as coisas mais suculentas.
Outro, um ambicioso falhado, tornava-se, à medida que o dia tombava, mais acre, mais sombrio, mais travesso. Ainda sociável e indulgente durante o dia, era implacável à tarde; e não era apenas contra os outros mas também contra si mesmo, que raivosamente se aplicava a sua mania crepusculosa
O primeiro morreu doido, incapaz de reconhecer a mulher e o seu filho; o segundo traz em si a inquietação duma doença perpétua, e se fosse decorado com todas as honras que podem conferir as repúblicas e os príncipes, creio que o crepúsculo acenderia ainda nele um ardente desejo pelas distinções imaginárias. A noite, que lhes punha no espírito as suas trevas, ilumina o meu; e, ainda que não seja raro ver a mesma causa engendrar dois efeitos contrários, fico sempre como que intrigado e alarmado com ela.
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris
Nunca atirei – nem tenho amigos que tenham atirado – frangos excelentes à cabeça de ninguém. A minha sanidade e a dos meus amigos vai ao ponto de não atirarmos a ninguém mesmo frangos menos bons. É um limiar de loucura muito débil, mas suficiente para tempos tão estranhos e agitados. Não tenho qualquer «mania crepusculosa», apenas o crepúsculo à minha frente e uma citação que não deve ser desperdiçada. Também não tenho nenhuma teoria geral sobre as personalidades crepusculares, capaz de explicar a diferença entre as matinais e as nocturnas. A passagem das trevas para a luz ou da luz para as trevas (qualquer que seja o sentido, real ou metafórico) não pode deixar de provocar distúrbios de personalidade. Talvez a loucura crepuscular seja uma doença mais comum do que os compêndios de psicologia admitam, e o seu primeiro sintoma seja o de se escrever textos sobre ela.
XXXIII
Devemos andar sempre bêbados. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: «São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com virtude, a teu gosto.»
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris
Sai um traçadinho, um hexâmetro e um pires da virtude do dia para a mesa do fundo.
Devemos andar sempre bêbados. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: «São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com virtude, a teu gosto.»
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris
Sai um traçadinho, um hexâmetro e um pires da virtude do dia para a mesa do fundo.
Inventário de existências
Já só falta demolirem um ou dois pavilhões das fábricas para ter vista de rio, as sardinheiras estão a recuperar bem depois do coma, mais uma vez não consegui combinar qualquer coisa com o Zé Pedro e já não vejo o Armando há quase duas semanas, a médica olhou para a ecografia do meu ombro e está indecisa entre tendinite e micro-rotura, nenhuma das quais desculpa a minha má forma no vólei, a tradução vai lenta, ainda no capítulo sobre Rousseau, continuo, não desempregado, mas mal-empregado, a Joana já tirou para fora a roupa de Verão e fica muito bem com ela, já instalámos a ventoinha frente ao sofá para sobrevivermos aos meses quentes. Isto é um resumo de tudo sobre o que poderia ter escrito nestes últimos dias, para vos poupar tempo e dioptrias. Sobre a situação do mundo, comprem um jornal.
12 maio 2004
O suicídio botânico
Alguns dias depois de escrever o texto sobre a minha sardinheira suicida, chegou-me às mãos o livro do Seinfeld. Ao que parece, o meu problema é mais comum do que pensava:
Não tenho plantas em minha casa. Elas comigo não sobrevivem. Algumas nem esperam até morrer; suicidam-se. Um dia cheguei a casa e dei com uma enforcada num frio de macramé, com o vaso atirado fora do suporte. O recado dizia: «Odeio-te a ti e aos teus discos.
(Jerry Seinfeld, Linguagem Seinfeld, Gradiva.)
Nem enforcamento nem queda do terceiro andar. Com métodos suicidas tão espectaculares e interessantes, a minha sardinheira optou pela greve de fome. Definha lentamente, caem-lhe as pétalas. Se alguém conhecer um bom psicólogo de plantas, deixe por favor o contacto nos comentários. Ou o nome de uma boa marca de adubos.
Não tenho plantas em minha casa. Elas comigo não sobrevivem. Algumas nem esperam até morrer; suicidam-se. Um dia cheguei a casa e dei com uma enforcada num frio de macramé, com o vaso atirado fora do suporte. O recado dizia: «Odeio-te a ti e aos teus discos.
(Jerry Seinfeld, Linguagem Seinfeld, Gradiva.)
Nem enforcamento nem queda do terceiro andar. Com métodos suicidas tão espectaculares e interessantes, a minha sardinheira optou pela greve de fome. Definha lentamente, caem-lhe as pétalas. Se alguém conhecer um bom psicólogo de plantas, deixe por favor o contacto nos comentários. Ou o nome de uma boa marca de adubos.
Catálogo de monstros
Não me tem apetecido escrever no blogue, por isso fiz a coisa óbvia: ler o Livro do Desassossego para inspiração. Se existisse a tecnologia, tenho a certeza que Pessoa o teria publicado em primeiro lugar em forma de posts, em insónias sucessivas. A consequência também é óbvia, depois de ler algumas páginas, nada que escreva suporta a comparação. A inspiração transforma-se em citação, como a sonolência em monstros:
243.
Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais do que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a coerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.
São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.
(Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, p. 239.)
243.
Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais do que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a coerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.
São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.
(Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, p. 239.)
05 maio 2004
O eclipse nublado
Os fenómenos cósmicos não são tão espectaculares quando não os podemos observar. Com o céu nublado não consegui ver ontem o eclipse da Lua. Sendo assim, não passou de uma anotação num anuário ou de um ponto num cálculo de trajectórias. O mecanismo dos eclipses da Lua é igual ao do cinema. Temos, em uma ou duas horas, a sequência de planos que habitualmente se sucedem ao longo de um mês, do quarto crescente ao minguante. Para conseguir o mesmo efeito, vou ter de olhar para o céu nocturno todas as noites durante um mês e abstrair-me de tudo o que aconteceu durante os dias. Abstrair-me do que acontece durante os dias não é muito difícil mas, ainda assim, vou consultar os anuários e esperar pelo próximo eclipse.
(Os eclipses costumam ser presságios de acontecimentos. Ontem não era muito difícil de adivinhar. Com o céu nublado, bastava olhar para a televisão. Na mesma altura, o Porto passava à Final da Liga dos Campeões. Parabéns.)
(Os eclipses costumam ser presságios de acontecimentos. Ontem não era muito difícil de adivinhar. Com o céu nublado, bastava olhar para a televisão. Na mesma altura, o Porto passava à Final da Liga dos Campeões. Parabéns.)
04 maio 2004
- É ridículo dar nome de pessoa a um animal doméstico, e a plantas ainda é mais, por o antropomorfismo ser mais difícil de compreender. – disse eu para a Teresa, a minha sardinheira, que não me contradisse. A pobre tem tendências suicidas, sempre no beiral a ponderar o voo e a queda. As flores vermelhas, que interpretamos como um despontar de beleza, talvez sejam apenas um pedido de ajuda, para chamar a nossa atenção. Não se preocupem comigo, estou só a brincar, não estou louco, não falo com as plantas. Na verdade, eu e elas comunicamos por telepatia.
30 abril 2004
Sejam bem-vindos...
... Estonianos, Letões, Lituanos, Polacos, Checos, Eslovacos, Húngaros, Eslovenos, Cipriotas, Malteses.
27 abril 2004
O Clube Schopenhauer
Fui hoje a mais uma reunião do Clube Schopenhauer, na sala de espera do Centro de Saúde de Alcântara. Só queria uma receita de medicamentos para a alergia, mas tive de assistir primeiro ao encontro. É uma reunião clandestina e espontânea entre desconhecidos. As pessoas vão entrando e, enquanto esperam pela voz do médico, iniciam diálogos e monólogos pessimistas e niilistas. Sobre a velhice, a doença, a passagem do tempo, os filhos ingratos e as filhas mal casadas. Leio o livro que trouxe para a espera (A Viagem Vertical de Enrique Vila-Matas), fingindo não ouvir nada. É sobre um homem que, no fim da vida, inicia uma viagem forçada que o leva a questionar a existência. A minha médica (Luísa de Jesus, a mais atenciosa que já tive) anuncia o meu nome e, quando entro no consultório, o meu mal já não é físico mas metafísico. Ao sair, dói-me mais o universo que a cabeça.
25 abril 2004
Tiros de pétalas vermelhas
Imaginemos uma quantidade de militares a preparar um golpe de Estado. Imaginemos que descem à cidade, à capital e centro do poder, com as suas armas. Sim, porque eles vinham armados, e as armas matam, acima de tudo. Imaginemos que eles tinham a consciência de que poderiam ter de disparar as suas armas para tomar o poder. Ou imaginemos que os do poder faziam fogo com as armas que também tinham, e que os revoltosos ripostavam. Agora, imaginemos uma quantidade de militares a fazer um golpe de Estado com flores no cano das espingardas, que acima de tudo matam. Há uma beleza romântica no dia 25 de Abril, que vai acentuar-se com o passar dos anos. À hora que os militares saíram os quartéis não imaginavam que iam terminar o dia vivos, com flores vermelho-vivo a sair da boca das armas.
23 abril 2004
Sobre o optimismo antropológico do Tiago
O ser humano não é apenas uma massa biológica modável pela educação: esse foi um personagem de Rosseau. Com o desenvolvimento da genética e da neurologia, temos cada vez mais consciência de como somos determinados biologicamente. Em todas as raças, em todas as culturas e em todos os tempos, um homem foi sempre um homem: angústias, temores, alegrias, traições, bens e males, luta pelo poder, pela sobrevivência, pelo sexo. Se em geral evoluímos, foi porque melhorámos a sociedade através das ideias: a vida nas democracias, em geral, fez-nos em geral melhores pessoas, mas as leis e as regras servem exactamente para travar a nossa natureza (ia dizer maligna, mas seria ir longe demais) imperfeita. Não sou tão crente nessa evolução que defines como positiva: não creio que cada pessoa seja melhor do que cada pessoa que viveu há 200 ou 500 anos. A crueldade permanece bem vincada no mundo: por mais que a sociedade evolua, não transformará o homem. Todos os projectos de homem novo falharam e nem o melhor dos sistemas erradicará os males do universo. Acredito que podemos melhorar colectivamente, através de organizações mais justas, mas seremos sempre iguais a nós mesmos. Daí o meu pessimismo antropológico estar aliado a um certo optimismo sociológico moderado. Utopia a pensar nas organizações, porque a razão pode criar sistemas perfeitos, realismo a pensar na massa humana, porque o interesse da espécie reside na sua imperfeição.
22 abril 2004
Brown Bunny, Vincent Gallo
A cena é tão desnecessária como todas as outras: o lago de sal seco, o circuito de corridas, Violet, Lilly, Rose. No final, gostei retrospectivamente das paisagens de pára-brisas, da lentidão das sequências. Ganham sentido apenas retrospectivamente com a tristeza e o desespero de Bud. Três, quase quatro.
Sobre o pessimismo antropológico (a propósito de um comentário do Vítor)
O ser humano é uma massa biológica que desperta num tempo e num lugar que desconhece. Nos primeiros tempos de vida, não é capaz de fazer as escolhas conscientes que estão na base da moralidade. Não sei se o homem é naturalmente bom ou mau, deixo isso para a genética. Acho, simplesmente, que é maleável (embora não infinitamente) e que existem épocas, culturas, ordenamentos políticos, educações, etc., que contribuem mais para a sua benevolência ou malevolência. Ao longo da história, os homens têm dado exemplos de bondade e de malignidade. Se os últimos excedem os primeiros é uma questão estatística que não me sinto capaz de resolver (ainda para mais porque não toma em consideração as acções futuras). Sou um optimista antropológico, no sentido de achar que é possível tornar o homem melhor. E, apesar de não acreditar em nenhuma lei de progresso contínuo das sociedades (em nenhuma lei de progresso ou de decadência), acho que temos melhorado bastante nos últimos séculos.
21 abril 2004
O Radicalismo de Bakri e o Racionalismo na ponta da baioneta
É impressionante a entrevista de um alegado teórico da al-Qaeda na Europa, Omar Bakri Mohammed, a Paulo Moura, na Pública , no passado domingo. E impressiona não só pela maneira de pensar de um líder deste radicalismo islâmico: o que não falta por aí são fundamentalistas religiosos de todos os credos, completamente inofensivos. O que importa considerar é a fragilidade das democracias liberais. Estes mujahidin urbanos odeiam o nosso sistema exactamente por ser livre, odeiam portanto a liberdade e as leis feitas pelos homens - pois só reconhecem as leis de Deus -, e assim odeiam-nos a todos, acreditando que a nossa morte fará a felicidade Dele. Não estivesse já a teoria posta em prática, e isto far-nos-ia sorrir se fosse dito no dia 10 de Setembro de 2001.
Uma fragilidade das democracias liberais consiste em aceitar os inimigos no seu próprio seio. Mas esta tolerância relativa também pode ser a sua força em múltiplos aspectos. Omar Bakri dá entrevistas, participa em programas de televisão, vive em Londres. Sete alunos seus foram presos recentemente por suspeitas de estarem a preparar um atentado, enquanto ele prega a morte, mas vai cumprindo a lei britânca. Não atacará Inglaterra por ter um pacto de segurança com o país onde vive legalmente. Foi preso 16 vezes e libertado outras tantas. Lançou uma fatwa para matar John Major e continua a viver no Reino Unido. Qual o limite da tolerância democrática em relação a casos como este, que prega o islão como a religião do massacre?
Considerando este modo de pensar dos jihadistas, o proselitismo democrático como meio de combater o terrorismo pode ser uma falácia, mesmo que tivesse boas intenções genuínas. O problema do terrorismo não se resolverá militarmente, assim como não é com caçadeiras que se matam moscas. Nem com a democratização forçada do Médio Oriente. Enquanto uma revolução Iluminista não abalar o pensamento destes muçulmanos, dificilmente o jihadismo será travado. Nunca haverá democracias nos países onde Deus ainda manda nos assuntos públicos. Levaria uns anos, mas o racionalismo não se expandirá por aqueles desertos na ponta das baionetas.
Uma fragilidade das democracias liberais consiste em aceitar os inimigos no seu próprio seio. Mas esta tolerância relativa também pode ser a sua força em múltiplos aspectos. Omar Bakri dá entrevistas, participa em programas de televisão, vive em Londres. Sete alunos seus foram presos recentemente por suspeitas de estarem a preparar um atentado, enquanto ele prega a morte, mas vai cumprindo a lei britânca. Não atacará Inglaterra por ter um pacto de segurança com o país onde vive legalmente. Foi preso 16 vezes e libertado outras tantas. Lançou uma fatwa para matar John Major e continua a viver no Reino Unido. Qual o limite da tolerância democrática em relação a casos como este, que prega o islão como a religião do massacre?
Considerando este modo de pensar dos jihadistas, o proselitismo democrático como meio de combater o terrorismo pode ser uma falácia, mesmo que tivesse boas intenções genuínas. O problema do terrorismo não se resolverá militarmente, assim como não é com caçadeiras que se matam moscas. Nem com a democratização forçada do Médio Oriente. Enquanto uma revolução Iluminista não abalar o pensamento destes muçulmanos, dificilmente o jihadismo será travado. Nunca haverá democracias nos países onde Deus ainda manda nos assuntos públicos. Levaria uns anos, mas o racionalismo não se expandirá por aqueles desertos na ponta das baionetas.
20 abril 2004
Chopin no Túnel
O Tiago esclareceu-nos sobre um mistério antigo: ora o violinista do semáforo mais não será do que o célebre intérprete das sonatas de Chopin para violinos, a ensaiar áreas para os futuros concertos que vai dar por entre o condutores parados no Túnel do Marquês, sob o alto patrocínio do dr. Santana Lopes. O afadigado edil tem a noção das proporções, e como tal, encomendou um estudo que deu o seguinte resultado: a) os pianos prejudicam o tráfego automóvel; b) os pianos que deslizam em superfícies muito inclinadas chocam contra os automóveis; c) taxistas irritados só se comovem com o relato da bola; d) os violinos são mais leves.
19 abril 2004
Violinos no semáforo
É nestes pormenores que podemos aferir o grau de sofisticação e de progresso de uma sociedade. Vi um novo serviço a ser prestado nos semáforos. Depois da venda de pensos rápidos e da limpeza de pára-brisas, a música de violino. Com o semáforo no vermelho, um homem caminha por entre os automóveis a tocar violino, pedindo retribuição. Nem todos contribuem, mas já sabemos como o público do trânsito costuma ser exigente. As necessidades individuais evoluem com a afluência, e o que poderíamos julgar surrealismo é simplesmente Lisboa em dois mil e quatro: um homem a tocar violino no meio do trânsito. Talvez seja um retrato do país. Uma sociedade em que as pessoas têm cada vez mais qualificações e mais problemas financeiros.
Talvez para provar que todas as palavras são metáforas (como escreveu Borges), blogue deriva de weblog, que deriva de log-book, abreviado simplesmente para log. Log (tronco, toro) refere-se ao dispositivo flutuador que se arrastava atrás de um navio para calcular a sua velocidade e posição. Log-book seria então o livro onde se registava esses movimentos. Um diário de navegação, um diário de bordo. A metáfora parece não ter perdido a sua força e utilidade: dezanove de abril de dois mil e quatro, onze horas e quarenta e seis minutos, ando lentamente, em Alcântara.
18 abril 2004
16 abril 2004
The Dream of Reason. A History of Philosophy from the Greeks to the Renaissance, Anthony Gottlieb (Nova Iorque, W.W. Norton, 2001)
É um livro extraordinário para quem gosta de filosofia e de ciência, e de uma época em que as duas se confundiam. A análise condensa todos os mitos e histórias registados sobre cada um dos filósofos e reflecte sobre o que se conhece sobre os seus sistemas. No caso específico dos pré-socráticos, podemos perceber o quanto a ciência dependia (como ainda hoje) da imaginação e da observação. O conflito entre os elementos de Anaximandro, o mundo turbulento de Heraclito, a imobilidade do mundo de Parménides, poderão parecer-nos descrições demasiado imaginativas do funcionamento do universo. Mas não mais, por exemplo, do que um universo fechado sobre si próprio, finito mas sem limites, de Einstein.
O Atiçador de Wittgenstein, David Edmonds e John Eidinow (Temas e Debates, 2003)
A análise da realidade pode ser decomposta, para fins de simplificação. Um jantar entre duas pessoas, por exemplo. Podemos optar por estudar a complexa vida microscópica que se desenvolve em cima da mesa ou a própria estrutura física da mesa; a arquitectura do mobiliário; o estilo da gastronomia; o passado de cada uma das duas pessoas e do país onde tudo se desenrola; o significado do que dizem uma à outra; etc. O livro trata de um encontro entre Popper e Wittgenstein, numa conferência em Cambridge. E, se não fala da vida microscópica na sala da reunião do Clube de Ciência Moral, é bastante minucioso em praticamente tudo o resto. Mas, para mim, o seu maior problema será provavelmente o de transformar uma questão filosófica numa questão sociológica. É de leitura bastante agradável, enquanto estudo biográfico, mas submerge o encontro nas biografias. É como se tivéssemos a possibilidade de ler um relato sobre um jantar entre Platão e Aristóteles, Hobbes e Locke, Rawls e Hayek e o cronista descrevesse pormenorizadamente a refeição, das azeitonas à sobremesa, e apenas isso. Talvez a sociologia explique a animosidade entre os dois homens, mas esta é irrelevante para o problema filosófico de saber se existem genuínos problemas filosóficos.
Sobre a expressão «este não é o melhor dos mundos possíveis»
«Este não é o melhor dos mundos possíveis» é uma expressão optimista. A possibilidade de haver outro mundo, diferente, dependente das escolhas humanas, nega a crença realista e conservadora na inevitabilidade da desgraça. Mais pessimista seria: «vivemos no melhor dos mundos possíveis e é assim.» No caso do Iraque, o que mais me perturba é esta sensação de culpa por não ter solução para um problema que não criei. Às vezes temos de nos contentar com a escolha entre males menores, por mais que isso nos angustie. Ou ir assistir a concertos com sopranos, pianos e violoncelos.
15 abril 2004
Um dos piores mundos possíveis
Qualquer pessoa de bom senso devia subscrever o post do Tiago (uns quantos posts abaixo deste) sobre A Democracia e o Iraque. Concordo em pleno. A destituição e captura de Saddam valerão, moralmente, o número de mortos e estropiados que a guerra já causou? Uma democracia injectada à pressão será alguma vez uma democracia? O Iraque não é Portugal em 1974 e mesmo assim o país esteve por diversas vezes à beira de uma guerra civil. Se ali um líder político-religioso dissesse - matem-se os fascistas no campo pequeno! - eles acabavam lá mais do que mortos, esfolados. Como se está a ver com Moqtada al-Sadr.
Quanto às Nações Unidas, Tiago, tenho algumas reservas. Podem legitimar a ocupação com as resoluções que forem precisas, mas comandarem tropas combatentes no terreno, de peace enforcement, poderia ser igualmente um erro. Aquilo não é Timor, as Nações Unidas são odiadas no Iraque por causa do embargo (não são vistas como se fossem a Santa Casa), e a miscelânia de países que resultasse de uma força multinacional tornar-se-ia militarmente inoperante. Este não é de todo o melhor dos mundos possíveis.
Quanto às Nações Unidas, Tiago, tenho algumas reservas. Podem legitimar a ocupação com as resoluções que forem precisas, mas comandarem tropas combatentes no terreno, de peace enforcement, poderia ser igualmente um erro. Aquilo não é Timor, as Nações Unidas são odiadas no Iraque por causa do embargo (não são vistas como se fossem a Santa Casa), e a miscelânia de países que resultasse de uma força multinacional tornar-se-ia militarmente inoperante. Este não é de todo o melhor dos mundos possíveis.
14 abril 2004
Areia movediça
A actual e previsível situação no Iraque, para a qual tantos analistas avisaram vezes sem conta nos comentários antes da tomada de Bagdad, transporta consigo uma estranha pergunta: partindo do princípio que os membros da administração Bush não são completamente tontos, embora o pareçam, como é possível - com tantas informações à disposição -, que os falcões não tenham previsto a inevitabilidade do caos e da desordem entre a população xiita, sunita, ou curda? Assim, considerando que sabiam o atoleiro que os esperava, o que os motivou a desencadear uma guerra apenas positiva para empresas como a Halliburton e a Bechtel, no domínio da reconstrução, e para os empórios do armamento no domínio da Defesa?
Não creio que a decisão de fazer a guerra se baseasse apenas em 'wishful thinkings' embalados no messianismo democrático predestinado a dar a vitória aos 'bons', como nos filmes: votaram, e viveram felizes para sempre. O mundo é mais complicado do que isso, e os conservadores deviam ser os primeiros a sabê-lo.
Sem resposta a estas perguntas, resta uma certeza e uma suposição: é de supor que os eleitores norte-americanos vão sancionar Bush por ter criado um problema para o qual agora não tem solução; e é certo, ganhe Bush ou Kerry, que uma retirada precipitada do Iraque teria consequências muito mais nefastas do que teve a própria invasão. Este mundo não é mesmo o melhor dos mundos possíveis...
Não creio que a decisão de fazer a guerra se baseasse apenas em 'wishful thinkings' embalados no messianismo democrático predestinado a dar a vitória aos 'bons', como nos filmes: votaram, e viveram felizes para sempre. O mundo é mais complicado do que isso, e os conservadores deviam ser os primeiros a sabê-lo.
Sem resposta a estas perguntas, resta uma certeza e uma suposição: é de supor que os eleitores norte-americanos vão sancionar Bush por ter criado um problema para o qual agora não tem solução; e é certo, ganhe Bush ou Kerry, que uma retirada precipitada do Iraque teria consequências muito mais nefastas do que teve a própria invasão. Este mundo não é mesmo o melhor dos mundos possíveis...
Soprar borregos
Debaixo da oliveira da minha infância, ao fundo do quintal na casa dos meus avós paternos, em Ermidas-Sado, no Alentejo, tive uma visão pascal, ou melhor, uma re-visão pascal. Lembro-me bem. Eu era pequeno, quase do tamanho do borrego que o meu avô António levava pela mão até ao altar de imolação debaixo daquela oliveira sagrada. E mostrava-me como se fazia. Duas facas: o canivete pequenino, o mesmo dos petiscos, e uma faca média de matança - pois havia uma maior para matar os porcos (embora na família não houvesse indús, há muito que não se matavam vacas). Primeiro, o meu avô metia a faca no pescoço do bicho, por uma das carótidas, de onde jorrava o sangue que regava a árvore (se a natureza tivesse imaginação, aquela dava azeitonas de cabidela). O animal não se manifestava. Ia desfalecendo devagarinho, um cordeiro, como se diz. Depois punha a faca maior de lado, e abria o canivete. Fazia um buraquinho numa das mãos do falecido, entre a carne e a pele, e enfiava por lá uma cana de soprar borregos: é uma cana normal, fina e pequena, previamente preparada pelo matador, para isso mesmo. Soprar os borregos. E era isso que o avô fazia: prendia a cana com um cordel, e soprava por ali adentro (por vezes deixava-me experimentar) e o borrego começava a inchar como se fosse um balão, conforme a pele lãnzuda se separava da carne. Quando estava bem cheio, quase a levitar, pendurava-o na oliveira, por um gancho de arame, passava-lhe a faquinha pela pele insuflada e descascava-o num instante. Eu levava a pele para o casão, e houve vezes em que chegou a oferecer duas ou três ao meu irmão, para vender. Valeram 300 escudos cada uma no curtidor lá da terra. A partir daqui, o ritual começava a meter tripas e cacholas e para mim, perdia o interesse. Este fim-de-semana, o meu avô, que já não mata os borregos - agora é o meu tio, ou o meu pai -, esteve a mostrar-me a sua horta, debaixo da oliveira, ao fundo do quintal. Mas, à mesa, cortou a linguiça com a tal faquinha de esfolar os borregos, afiada, pontiaguda, a mesma dos petiscos. Tudo isto a propósito de uma pequena reportagem no Diário de Notícias, sobre a proibição de imolar borregos nas ruas das terras alentejanas, que na Páscoa enchiam os poiais de sangue escuro.
«A blindness that touches perfection, / But hurts just like anything else.»
Se pudessem ver a beleza de tudo o que não consigo descrever... Os Joy Division servem de banda sonora para a minha incapacidade de expressão («if you could just see the beauty, / These things I could never describe», Isolation). (A Joana não gosta da voz o Ian Curtis, acha que é má, como a minha. Talvez seja porque a tenho ouvido tanto desde os quinze anos, quando alguém me emprestou uma cassete com o Closer.) Oiço a música e não escrevo.
Talvez seja isto o progresso. Tenho notado, nos últimos anos, que em Salto, uma vila de Trás-os-Montes, o número de jornais disponíveis está a aumentar em proporção inversa ao número de vacas que passam junto à minha porta. Há três ou quatro anos, só se conseguia arranjar o Jornal de Notícias, se encomendado de véspera, e as manadas de vacas barrosãs passavam pontualmente duas vezes ao dia. No ano passado, abriu uma papelaria onde se podia comprar, sem aviso prévio, o Diário de Notícias e o Público, mas as vacas começaram a atrasar-se ou a saltar refeições. Fui este ano, pela primeira vez, passar lá a Páscoa (a minha avó fez 90 anos a 9 de Abril, Sexta-Feira Santa). Na porta da papelaria podia ver-se à distância o característico saco do Expresso, mas nem uma vaca passou junto à minha porta nos três dias que lá passei. Um conservador ficaria provavelmente perturbado por uma mudança tão rápida nos costumes e nas paisagens rurais (mas, por outro lado, um conservador gosta de ler o seu Expresso ao Sábado). Eu, limitei-me a comprar o jornal, a comer ao jantar bifes de vitela e a pensar nisso só o suficiente para escrever este texto.
Lá Fora, Fernando Lopes
Em diversas alturas do filme, ficamos com a ideia de que José Maria (Rogério Samora) está a ponderar o suicídio, mas não tão seriamente como eu a meio do diálogo de Laura (Alexandra Lencastre) com a sua psicoterapeuta. A única coisa que me impediu de tomar os comprimidos foi a curiosidade em saber o que era a encomenda do Jean-Luc.
12 abril 2004
Pintámos uma parede da nossa sala de azul. Uma parede com cor não serve qualquer propósito ou reflexão. Talvez inconscientemente quiséssemos prolongar o exterior para dentro de casa, rodando os planos. Se pintássemos a tecto, era uma metáfora. Assim, é um plano onde a luz que entra pela janela é absorvida. Apenas isso. Mas, não intencionalmente, alterou-se com isso a nossa percepção do espaço, como se caminhássemos agora perpendicularmente em relação ao hábito.
07 abril 2004
A Democracia e o Iraque
Acredito na universalidade da democracia; que não existe tempo e lugar específicos para ela. É conhecido que existem determinados factores que a favorecem, como a existência de uma classe média ampla e sólida, mas não há provas de que existam regiões, religiões ou povos incompatíveis com uma qualquer forma democrática de organização política. Logo, gostaria de ver a democracia estender-se a todos lugares do planeta. Mas existem princípios políticos perfeitos cuja invocação pode tornar-se perigosa. A autodeterminação e a democracia são, na política mundial, dois dos exemplos mais expressivos. A autodeterminação, aplicada como princípio universal, resultaria em caos e mortes num mundo com muitos mais grupos étnicos e linguísticos do que estados. Da mesma forma, a imposição da democracia pode ter custos proibitivos, para quem acreditar que a vida humana deve ser um fim e não um meio, que não se podem sacrificar vidas por um fim de resultado incerto. Especialmente para quem considerar, como eu, que as vidas de ocidentais e de cidadãos de outros lugares do mundo têm o mesmo valor. Os estados democráticos devem fomentar a democracia, mas devem adoptar regras de prudência quando acharem que a sua imposição possa ter resultados contraproducentes. No Iraque morreram hoje cerca de cento e oitenta pessoas e mais morrerão nos próximos tempos. (Claro que, no caso desse país, a questão nem se põe, pois esse não foi o argumento utilizado para a invasão, mas apenas uma atenuante para o desastre.) Agora, ainda do ponto de vista da perda de vidas humanas, a retirada imediata e incondicional das tropas estrangeiras do país seria outro erro, por muito que nos custe a nós, os que sempre estivemos contra a invasão. A única solução poderá agora ser procurar construir a legitimidade que os Estados Unidos perderam em volta das Nações Unidas.
No fim-de-semana estarei em Salto, Trás-os-Montes. A minha mãe já me telefonou a dizer que o carvalho que egoisticamente (trans)plantei no Verão, com 10 cm, sobreviveu (contra todas as probabilidades e conselhos). Egoisticamente, porque daqui a cinquenta anos já terá crescido demasiado e a geração seguinte terá de o cortar, para que as raízes não deitem as paredes da casa abaixo. Ou talvez não tanto, porque espero ser eu, um pouco mais velho, a cortar o carvalho ou a derrubar as paredes da casa, o que me parecer mais importante na altura. Até lá, a sombra.
Livro de Reclamações
Este blogue não é de serviço público, mas cada vez mais se parece com uma repartição pública. Atrasos, reclamações, a Joana sentada na sala de espera com uma senha na mão ou a marcar o livro, a minha mão lenta com o carimbo. Vão lendo as revistas, cruzando e descruzando as pernas, que o senhor doutor já está quase a chegar.
Recados (3)
Tiago BC, não te preocupes, era só para te mandar um abraço. E ao Rogério e à Susana. Para dizer-vos que gostei muito de vos conhecer, apesar do fracasso do projecto. E, já agora, para saber se as fotografias do Rogério e da Susana acabaram por ser reveladas, se ficaram boas. Podem servir de pósfácio. A história da montagem da peça teve uma carga dramática maior do que a própria história. Obrigado.
Mafalda, na sexta-feira não estarei em Lisboa, por isso: Parabéns! Este ano os teus convidados têm azar. Um aniversário comemorado na Sexta-Feira Santa é sempre muito triste, uns a comerem peixe cozido e a olharem para a picanha dos ateus do lado.
João, Fati, como está Paris nesta época do ano? Vamos passar a Páscoa a Salto. Pode ser que nos encontremos por lá.
Mafalda, na sexta-feira não estarei em Lisboa, por isso: Parabéns! Este ano os teus convidados têm azar. Um aniversário comemorado na Sexta-Feira Santa é sempre muito triste, uns a comerem peixe cozido e a olharem para a picanha dos ateus do lado.
João, Fati, como está Paris nesta época do ano? Vamos passar a Páscoa a Salto. Pode ser que nos encontremos por lá.
31 março 2004
Recados: (continuação do episódio anterior)
Sónia e Gonçalo, parabéns! S., quantos graus aumentou a inclinação da parábola (será este o termo, já não tenho geometria há alguns anos) da tua barriga desde o aniversário do G. (já agora, como é que estava o bolo de bolacha?). No primeiro filho, temos de manter um registo minucioso da evolução biológica. De guardar todas as ecografias para o álbum de fotos.
Celita e Nuno, parabéns! Se bem que isto já me soe a conspiração. Parece que os nossos amigos começaram todos a ter filhos só para nos fazerem inveja. Não perdem pela demora, os nossos vão ser mais bonitos que os vossos. É por isso que estamos a esperar mais um bocado, para que as técnicas de manipulação genética evoluam e as crianças saiam todas à mãe.
Isabel, não fiques triste e traz-me cajú. Sabes bem que é isso ou cocaína. Espero que as praias de Moçambique já tenham ligação à Internet e possas ler este recado: é só para avisar para te virares ao contrário, que já estás a ficar com um escaldão nas costas. Mas não te preocupes, o Ruca pode pôr-te um pouco de creme à noite.
Ana Mota, Isabel Ferreira, o que é feito de vocês? Perdi-vos, mesmo numa cidade tão pequena como Lisboa. Já andei às voltas, mas nada. Talvez estejam no cimo da cabeça, onde costumam estar os óculos de que andamos à procura.
Cristina Falcão, o teu último postal tem data de 20-12-2003. Só tens mais uma semana para não deixar expirar a tua licença de escritora oficial de postais. E a tua casa, já tem sardinheiras nos beirais?
Jorge, valter, obrigado.
(continua)
Celita e Nuno, parabéns! Se bem que isto já me soe a conspiração. Parece que os nossos amigos começaram todos a ter filhos só para nos fazerem inveja. Não perdem pela demora, os nossos vão ser mais bonitos que os vossos. É por isso que estamos a esperar mais um bocado, para que as técnicas de manipulação genética evoluam e as crianças saiam todas à mãe.
Isabel, não fiques triste e traz-me cajú. Sabes bem que é isso ou cocaína. Espero que as praias de Moçambique já tenham ligação à Internet e possas ler este recado: é só para avisar para te virares ao contrário, que já estás a ficar com um escaldão nas costas. Mas não te preocupes, o Ruca pode pôr-te um pouco de creme à noite.
Ana Mota, Isabel Ferreira, o que é feito de vocês? Perdi-vos, mesmo numa cidade tão pequena como Lisboa. Já andei às voltas, mas nada. Talvez estejam no cimo da cabeça, onde costumam estar os óculos de que andamos à procura.
Cristina Falcão, o teu último postal tem data de 20-12-2003. Só tens mais uma semana para não deixar expirar a tua licença de escritora oficial de postais. E a tua casa, já tem sardinheiras nos beirais?
Jorge, valter, obrigado.
(continua)
Sinto-me de consciência pesada. Como a criança a quem deixaram ter um animal de estimação, com a condição de não se esquecer de o alimentar. Depois a criança vai jogar futebol, ler livros do Salgari, traduzir, andar de transportes públicos, e quando regressa encontra o seu blogue a boiar de barriga para cima dentro do aquário.
27 março 2004
26 março 2004
Mira técnica
Antes da chuva, a mira técnica. É igualmente inútil, mas com alguma cor e simetria. Agora que já acabei mais uma tradução, pode ser que me apeteça ter opinião sobre alguma coisa. O mundo anda interessante, mas passa ao largo de Alcântara. Mas tenho de escrever para a Joana não ficar nublada. E, a avaliar pela pulsação do blogue (no fundo, à esquerda), de escrever só para ela e para um ou outro tresmalhado que aqui venha parar sem querer. Não se vão já embora, tenho recados para muita gente:
Gisela, recebi as extraordinárias fotografias da neve no Vondelpark. Agora o teu jardim já deve estar a começar a ficar verde, como o resto da Holanda. E eu, de inveja - pelos canais, pelos crepes do upstairs, pela tarte de maçã no mercado.
Zé Pedro e Mafalda, um café logo à noite? Este fim-de-semana não vamos a Espinho.
Marta, espero que esteja tudo a correr bem: que já te possas levantar para que o Nuno possa descansar. Se precisares de uma lasanha, liga-nos. E quando a criança nascer, claro.
Analú e Pedro, por onde andam? Sempre vão comprar a casa?
Catarina, se já acabaste a cerveja da esplanada em Copacabana, liga-nos. Podemos beber outra este fim-de-semana em qualquer lado.
Inês, parece que não vai estar um Sábado bom para um piquenique. Ou então, além de uma toalha aos quadrados prepara também uns cobertores às riscas.
Paula, não te preocupes, vamos retocar o teu bronze do Brasil para uma esplanada qualquer este fim-de-semana.
Xana, boa sorte para a tua viagem até Castelo Branco e para o curso. Vê lá se aprendes como consertar-me o ombro.
Bertrand, Katell, ça va? Je ne sais pas écrire rien plus en français.
Mário, de que cor estão as estepes russas nesta altura do ano? Tens sabido alguma coisa dos nossos amigos Daniel, Eunice, Rui, etc.
Guitinha, Lisboa é uma aldeia e nunca te encontro na padaria, na leitaria, na rua. Um postal por ano não chega. Já estava na altura de trazer o Ricardo Pinheiro da Madeira, telefonar ao Zé Paulo, ao Rui, ao Quim, à Mónica, ao Místico, à Sandra, ao Sardinha e a todos os outros e fazer um jantar da AEISCSP.
Vítor, como se estão a portar os teus novos coleguinhas. Não deixes que te estraguem os lápis de cera e te roubem plasticina.
Joana, vou almoçar contigo e digo-te ao ouvido o que me apetecer dizer-te. Está aqui demasiada gente. Na Tentadora?
(continua) (cenas dos próximos capítulos: recados para o Armando, a Cláudia, o Pedro Saragoça, o Pedro Santos, o Jean e a Fati, o Tiago B. C., a Cristina Falcão, a Carla Castro, a Carla Antunes, a Sónia e o Gonçalo, etc.)
Gisela, recebi as extraordinárias fotografias da neve no Vondelpark. Agora o teu jardim já deve estar a começar a ficar verde, como o resto da Holanda. E eu, de inveja - pelos canais, pelos crepes do upstairs, pela tarte de maçã no mercado.
Zé Pedro e Mafalda, um café logo à noite? Este fim-de-semana não vamos a Espinho.
Marta, espero que esteja tudo a correr bem: que já te possas levantar para que o Nuno possa descansar. Se precisares de uma lasanha, liga-nos. E quando a criança nascer, claro.
Analú e Pedro, por onde andam? Sempre vão comprar a casa?
Catarina, se já acabaste a cerveja da esplanada em Copacabana, liga-nos. Podemos beber outra este fim-de-semana em qualquer lado.
Inês, parece que não vai estar um Sábado bom para um piquenique. Ou então, além de uma toalha aos quadrados prepara também uns cobertores às riscas.
Paula, não te preocupes, vamos retocar o teu bronze do Brasil para uma esplanada qualquer este fim-de-semana.
Xana, boa sorte para a tua viagem até Castelo Branco e para o curso. Vê lá se aprendes como consertar-me o ombro.
Bertrand, Katell, ça va? Je ne sais pas écrire rien plus en français.
Mário, de que cor estão as estepes russas nesta altura do ano? Tens sabido alguma coisa dos nossos amigos Daniel, Eunice, Rui, etc.
Guitinha, Lisboa é uma aldeia e nunca te encontro na padaria, na leitaria, na rua. Um postal por ano não chega. Já estava na altura de trazer o Ricardo Pinheiro da Madeira, telefonar ao Zé Paulo, ao Rui, ao Quim, à Mónica, ao Místico, à Sandra, ao Sardinha e a todos os outros e fazer um jantar da AEISCSP.
Vítor, como se estão a portar os teus novos coleguinhas. Não deixes que te estraguem os lápis de cera e te roubem plasticina.
Joana, vou almoçar contigo e digo-te ao ouvido o que me apetecer dizer-te. Está aqui demasiada gente. Na Tentadora?
(continua) (cenas dos próximos capítulos: recados para o Armando, a Cláudia, o Pedro Saragoça, o Pedro Santos, o Jean e a Fati, o Tiago B. C., a Cristina Falcão, a Carla Castro, a Carla Antunes, a Sónia e o Gonçalo, etc.)
18 março 2004
14 março 2004
A VIDA QUOTIDIANA
Espelho fechado/Manequim de pássaros/A vida breve/Te corta os sonhos//Cai a cidade/Das prateleiras do céu//Homem-gaveta/Guardou lembranças/Guardou laranjas e o semen/De outros meninos-gavetas//Três sereias ameaçam o mar//Cordélia na varanda/Engole nuvens/Cospe jasmins
Murilo Mendes, 1941
Espelho fechado/Manequim de pássaros/A vida breve/Te corta os sonhos//Cai a cidade/Das prateleiras do céu//Homem-gaveta/Guardou lembranças/Guardou laranjas e o semen/De outros meninos-gavetas//Três sereias ameaçam o mar//Cordélia na varanda/Engole nuvens/Cospe jasmins
Murilo Mendes, 1941
12 março 2004
O mal está no meio de nós
Não foi um «mal absoluto» que se abateu sobre Espanha (como classificou ontem Durão Barroso). Foi pior do que isso: um mal tradicional, maléfico, do tipo do que existe desde sempre mas raramente se manifesta, e ultrapassa os nossos piores pesadelos porque existe.
Quase duzentos mortos.
O medo, que vai fazer-nos agora? Que país vai atacar a Espanha? O Afeganistão não vale a pena. No Iraque rebentam as bombas todos os dias... Talvez os subúrbios de Paris onde foi proibido o véu islâmico? Ou os ghetos muçulmanos de Londres onde se vende o jornal que recebeu o fax da Al-Qaeda? É lá que eles estão agora, no meio de nós, os que accionam este eixo do mal.
Não quero pensar. O mundo tornou-se demasiado complexo e as coisas não fazem sentido. O nosso mundo não é com certeza o melhor dos mundos possíveis. Se alguma ciência vai estudar estes fenómenos, que seja a mesma que trata a loucura. Que pena a vida real não ser como as ficções: esta manhã ninguém desligou as bombas no último segundo... Talvez deixem de fazer filmes assim porque já ninguém acredita.
Quase duzentos mortos.
O medo, que vai fazer-nos agora? Que país vai atacar a Espanha? O Afeganistão não vale a pena. No Iraque rebentam as bombas todos os dias... Talvez os subúrbios de Paris onde foi proibido o véu islâmico? Ou os ghetos muçulmanos de Londres onde se vende o jornal que recebeu o fax da Al-Qaeda? É lá que eles estão agora, no meio de nós, os que accionam este eixo do mal.
Não quero pensar. O mundo tornou-se demasiado complexo e as coisas não fazem sentido. O nosso mundo não é com certeza o melhor dos mundos possíveis. Se alguma ciência vai estudar estes fenómenos, que seja a mesma que trata a loucura. Que pena a vida real não ser como as ficções: esta manhã ninguém desligou as bombas no último segundo... Talvez deixem de fazer filmes assim porque já ninguém acredita.
10 março 2004
Ah, as coisas que se passaram por aqui, enquanto andei embrenhado a resolver os problemas que aparecem no tipo de vida somos obrigados a viver: vi sonhos irrigados por corações generosos, a nossa inexistência perante a existência, deuses de onanismo fecundo, histórias de Borges, e a descoberta de um grande texto de um grande amigo. Com a leitura de tantos livros, Armando, nem podias ser diferente.
09 março 2004
Lugones
Há muito que Fernando Pessoa nos ensinou que alguns escritores criam os seus próprios mestres. Ao lermos os contos de Leopoldo Lugones, não podemos deixar de imaginar se Jorge Luis Borges não terá, também ele, criado o seu. Uma criação que os milhares de discípulos borgianos, anónimos nas suas profissões quotidianas, terão encoberto com a inclusão de biografias em enciclopédias e de recensões em revistas de literatura. Nelas, fala-se de um argentino, nascido em Rio Seco em 1874, que terá ajudado a renovar a poesia hispano-americana. Existirão provavelmente também fotografias e relatos de familiares, mas afirmo que Lugones nunca terá existido para além de Borges. Digo isto convictamente, após ter lido «Os Cavalos de Abdera», um livro de oito contos publicado, em Portugal, pela Vega (1988), onde em todas as linhas se pode pressentir Borges. Num dos contos, o terceiro, inserido entre «A Chuva de Fogo» e «A Estátua de Sal», Borges terá dado uma pista para resolvermos o mistério, que só quem não reconhecer o seu génio poderá pensar tratar-se de um erro. O conto é intitulado «Um Arquitecto no Deserto» e é a história de um homem que constrói uma pequena cidade de areia, destruída a cada ano pelos ventos sazonais. A pista para conhecer a verdadeira identidade do autor do conto pode ser encontrada logo na primeira página.
05 março 2004
Armando, só posso responder com uma evidência: há críticas a filmes melhores do que os próprios filmes. E, depois de ler o teu texto, com cada vez mais pena de não ter sentido o mesmo que tu. Não gostei particularmente do filme, mas gostei muito dos vossos textos sobre ele (o teu e o do Vítor). Todos temos caos prestes a explodirem em supernovas. Mas reagimos a estímulos diferentes. Muitos dos sentimentos que o Big Fish vos derpertou, senti-os ao sair do Lost in Translation. Talvez por me ter identificado com Charlotte, um personagem que acabou a universidade há algum tempo e não sabe o que fazer da vida. Ou por qualquer outro motivo inexplicável, como acontece com muitos filmes.
Exercício de direito de posta
Comentário definitivo sobre o visceral filme de Burton ou Onde se explica Tim Tim por Tim Tim porque há realizadores de quem se pode dizer que são apenas Fish(es) e, outros, muito poucos, que são verdadeiramente Big.
Há quem coleccione moedas, outros reúnem livros, outros ainda acumulam obras de arte. Eu colecciono sonhos, vidas que não poderei viver e pedaços da irrealidade quotidiana. E devo dizer para que conste -verdade minha, por isso, desde logo, absoluta, inquestionável e indesmentível - que alguns dos melhores exemplares desta tão intima, preciosa e nada prosaica colecção, que vai para pouco mais de trinta anos iniciei, os desenterrei em salas escuras, depositadas sobre frágeis teias e tramas de um branco espectral, povoadas por seres luminosos e mágicos.
Ao contrário do que é crença comum, os sonhos, pelo menos este particular tipo de sonhos, não devem ser guardados em qualquer recôndito canto, mais ou menos sombrio, do cérebro humano. Eu arrumo-os numa caixa, que é exactamente o lugar onde devem ser guardados todos os sonhos. Não será necessário explicar que nem todas as caixas se adequam à função, tal se deve às particulares formas dos sonhos e às suas propriedades voláteis. Por isso no meu caso optei por os albergar na caixa torácica, mais precisamente no interior cavernoso do meu ventrículo esquerdo, válvula cardíaca responsável pela irrigação sanguínea de todo o organismo. Graças a isso, impulsionados pelo ritmo cadenciado de cada sístole e diástole, percorrem todo o meu ser, em harmonioso convívio com a amálgama de glóbulos brancos, vermelhos e plasma, pequenas partículas de celulose e nitrato de prata, materiais alquímicos usados na confecção dos sonhos.
E é com certeza por isso que amo o cinema, porque ele me corre nas veias.
Não será então de estranhar -silogismo simples, duplo axioma com um único corolário possível -, que se o cinema me está alojado no coração e que é do interior desse órgão que nasce o amor (lei universal afirmada por poetas e testemunhada por amantes), que devote profunda afeição aos demiurgos que criam universos, aos efabuladores míticos que ao sétimo dia não descansaram, antes se afadigaram a fazer nascer uma nova arte e a que, talvez por isso mesmo, chamaram sétima. E, nesse novo panteão, um Deus ex-machina, pairando sobre todos Los Angeles, num reino onírico e distante a que chamam Hollywood, ocupa o lugar central no firmamento. Burton, de seu nome.
Há quem tenha os filmes da sua vida, eu tenho os realizadores da minha (Burton, Eastwood, Scorcese, Curtiz, Capra, Coppola...) e sou-lhes violentamente fiel, intransigente na defesa contra os seus detractores, infinitamente orgulhoso na forma como desdenho os que não veneram a sua mestria.
E não percebo, verdade que não, como é possível ser-se insensível à pincelada do génio, ao toque do artista, ao desfilar de emoções que o seu talento faz assomar e que não deixam outra saída ao comum mortal, senão maravilhar-se perante o carrossel caleidoscópico de luz, cor e magia que dele brota, todo ele ilusão e mistério, milagre e profissão de fé.
Poderia invocar infinitas razões para amar esse luminoso objecto de desejo (não sei se acabo de contra-citar, ex-citar ou in-citar Buñuel, outro surrealista e sonhador como Burton) que é o Big Fish. Mas em vez de invocar prefiro lançar mão de outro verbo que me é muito mais caro: convocar. Porque, ao fim e ao cabo, tudo neste filme se resume a isso. Convocar os mais íntimos desejos, as mais pungentes inquietações, os medos mais atrozes: amar e ser amado, o apelo ancestral que me faz ansiar pela vinda de um filho, o valor inestimável que atribuo à amizade, o receio que me faz acordar de noite, sobressaltado, de perder o meu pai sem lhe dizer tudo o que ele significa para mim, de lhe dizer o tanto que gosto dele e de lhe agradecer tudo o que sou. Tudo isso estava lá. No Big Fish. Tudo eu vi e em tudo me revi. Lamento, se houve quem tivesse visto menos.
É um filme que fala da morte, celebrando a vida; que fala de mulheres e homens, celebrando o amor; que fala de pessoas, quantas vezes estranhas e bizarras, celebrando a amizade; que fala de filhos, celebrando os pais; que, no fim, e por fim, fala da realidade, celebrando a fantasia.
Vi, no Big Fish, bruxas que profetizam mortes. Cartografei cidades cujos habitantes permaneciam descalços, refugiados num limbo idílico e testemunhei o bom coração de gigantes. Também por lá andavam directores de circo que são lobisomens quando o sol se ausenta do céu e gémeas siamesas que cantam celestialmente. E vi milagres acontecerem, um homem que ao morrer se transformou em peixe e um filho que, na hora da morte do pai, se deu conta do muito que lhe devia, milagre maior entre todos os milagres.
Mas, acima de tudo, foi ao ver o Big Fish que tive a certeza de que até hoje nunca amei verdadeiramente, porque nunca, até então, tinha visto o amor acontecer perante os meus olhos. Mas agora que sei o que é o amor, que é quando espaço e tempo congelam, estarei preparado para o receber e para não o deixar fugir nunca. E recebê-lo-ei, de certeza num campo de narcisos, amarelos, como o sol, pois essa, sei-o agora, é a única maneira possível de colher o amor.
Foi Nietzsche, creio, que disse ser preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança. Para parir três estrelas, três estrelas e meia, Tiago, não imagino quanto de caos, matéria e antimatéria reunidas, será necessário. Muito menos para parir todo um universo... Big Fish ou Big Bang???
Armando Norte
Há quem coleccione moedas, outros reúnem livros, outros ainda acumulam obras de arte. Eu colecciono sonhos, vidas que não poderei viver e pedaços da irrealidade quotidiana. E devo dizer para que conste -verdade minha, por isso, desde logo, absoluta, inquestionável e indesmentível - que alguns dos melhores exemplares desta tão intima, preciosa e nada prosaica colecção, que vai para pouco mais de trinta anos iniciei, os desenterrei em salas escuras, depositadas sobre frágeis teias e tramas de um branco espectral, povoadas por seres luminosos e mágicos.
Ao contrário do que é crença comum, os sonhos, pelo menos este particular tipo de sonhos, não devem ser guardados em qualquer recôndito canto, mais ou menos sombrio, do cérebro humano. Eu arrumo-os numa caixa, que é exactamente o lugar onde devem ser guardados todos os sonhos. Não será necessário explicar que nem todas as caixas se adequam à função, tal se deve às particulares formas dos sonhos e às suas propriedades voláteis. Por isso no meu caso optei por os albergar na caixa torácica, mais precisamente no interior cavernoso do meu ventrículo esquerdo, válvula cardíaca responsável pela irrigação sanguínea de todo o organismo. Graças a isso, impulsionados pelo ritmo cadenciado de cada sístole e diástole, percorrem todo o meu ser, em harmonioso convívio com a amálgama de glóbulos brancos, vermelhos e plasma, pequenas partículas de celulose e nitrato de prata, materiais alquímicos usados na confecção dos sonhos.
E é com certeza por isso que amo o cinema, porque ele me corre nas veias.
Não será então de estranhar -silogismo simples, duplo axioma com um único corolário possível -, que se o cinema me está alojado no coração e que é do interior desse órgão que nasce o amor (lei universal afirmada por poetas e testemunhada por amantes), que devote profunda afeição aos demiurgos que criam universos, aos efabuladores míticos que ao sétimo dia não descansaram, antes se afadigaram a fazer nascer uma nova arte e a que, talvez por isso mesmo, chamaram sétima. E, nesse novo panteão, um Deus ex-machina, pairando sobre todos Los Angeles, num reino onírico e distante a que chamam Hollywood, ocupa o lugar central no firmamento. Burton, de seu nome.
Há quem tenha os filmes da sua vida, eu tenho os realizadores da minha (Burton, Eastwood, Scorcese, Curtiz, Capra, Coppola...) e sou-lhes violentamente fiel, intransigente na defesa contra os seus detractores, infinitamente orgulhoso na forma como desdenho os que não veneram a sua mestria.
E não percebo, verdade que não, como é possível ser-se insensível à pincelada do génio, ao toque do artista, ao desfilar de emoções que o seu talento faz assomar e que não deixam outra saída ao comum mortal, senão maravilhar-se perante o carrossel caleidoscópico de luz, cor e magia que dele brota, todo ele ilusão e mistério, milagre e profissão de fé.
Poderia invocar infinitas razões para amar esse luminoso objecto de desejo (não sei se acabo de contra-citar, ex-citar ou in-citar Buñuel, outro surrealista e sonhador como Burton) que é o Big Fish. Mas em vez de invocar prefiro lançar mão de outro verbo que me é muito mais caro: convocar. Porque, ao fim e ao cabo, tudo neste filme se resume a isso. Convocar os mais íntimos desejos, as mais pungentes inquietações, os medos mais atrozes: amar e ser amado, o apelo ancestral que me faz ansiar pela vinda de um filho, o valor inestimável que atribuo à amizade, o receio que me faz acordar de noite, sobressaltado, de perder o meu pai sem lhe dizer tudo o que ele significa para mim, de lhe dizer o tanto que gosto dele e de lhe agradecer tudo o que sou. Tudo isso estava lá. No Big Fish. Tudo eu vi e em tudo me revi. Lamento, se houve quem tivesse visto menos.
É um filme que fala da morte, celebrando a vida; que fala de mulheres e homens, celebrando o amor; que fala de pessoas, quantas vezes estranhas e bizarras, celebrando a amizade; que fala de filhos, celebrando os pais; que, no fim, e por fim, fala da realidade, celebrando a fantasia.
Vi, no Big Fish, bruxas que profetizam mortes. Cartografei cidades cujos habitantes permaneciam descalços, refugiados num limbo idílico e testemunhei o bom coração de gigantes. Também por lá andavam directores de circo que são lobisomens quando o sol se ausenta do céu e gémeas siamesas que cantam celestialmente. E vi milagres acontecerem, um homem que ao morrer se transformou em peixe e um filho que, na hora da morte do pai, se deu conta do muito que lhe devia, milagre maior entre todos os milagres.
Mas, acima de tudo, foi ao ver o Big Fish que tive a certeza de que até hoje nunca amei verdadeiramente, porque nunca, até então, tinha visto o amor acontecer perante os meus olhos. Mas agora que sei o que é o amor, que é quando espaço e tempo congelam, estarei preparado para o receber e para não o deixar fugir nunca. E recebê-lo-ei, de certeza num campo de narcisos, amarelos, como o sol, pois essa, sei-o agora, é a única maneira possível de colher o amor.
Foi Nietzsche, creio, que disse ser preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança. Para parir três estrelas, três estrelas e meia, Tiago, não imagino quanto de caos, matéria e antimatéria reunidas, será necessário. Muito menos para parir todo um universo... Big Fish ou Big Bang???
Armando Norte
04 março 2004
Leio num livro que o deus egípcio Amon deu vida ao mundo masturbando-se sobre a terra. De todas as cosmogonias, nenhuma me parece mais deprimente: uma figura meio humana com cornos de carneiro a masturbar-se no deserto. (Faz-me lembrar as capas dos discos de heavy-metal dos anos oitenta.) Tem uma vantagem, explica claramente a natureza dos oásis.
03 março 2004
As cuecas semitransparentes de Charlotte
Lost in Translation. Vi o filme ontem à noite, com um atraso de alguns meses em relação ao resto do mundo ocidental, e ainda não consegui tirar da cabeça o More Than This dos Roxy Music. E o filme não é mais do que isto: um grande hotel espelhado, como uma ilha de vidro, no meio de uma cidade estranha. Dentro e fora dele, os dois náufragos tropeçam numa ternura imensa, imersa em música de bar de hotel, trânsito caótico, salões de videojogos, karaoke caseiro, quartos silenciosos e piscinas. Quatro e tal.
02 março 2004
Contribuição para o niilismo
Uma equipa de astrofísicos descobriu que o universo pode durar mais 30 mil milhões de anos do que se pensava. O universo vai existir sem mim mais 30 mil milhões de anos do que eu pensava. A minha contribuição para o universo (em percentagem de anos) vê-se assim encurtada drasticamente. É só aplicar uma regra de três simples. Não exponho aqui o resultado para que quem visite a página não pense que estamos com um erro informático que nos enche a página de zeros após uma vírgula. Mas é só fazer as contas. O problema é que temos não uma, mas duas incógnitas. É que ainda não sabemos quantos anos irei viver. Sugiro que se utilize a esperança média de vida para a população masculina portuguesa para acabar com a incógnita, embora espere ultrapassá-la. Claro que, como podem imaginar, o meu niilismo tem uma relação inversamente proporcional com a percentagem de contribuição para o universo. Aproximo-me de Nietzsche à velocidade da luz.
Se não fosse materialista, poderia acreditar que todo o universo é uma construção mental minha. E que, por conseguinte, a sua duração é igual à da minha vida, a minha contribuição para ele absoluta. Mas, por mais que tente, não consigo acreditar que possuo dentro de mim tanta criatividade, tantos cometas. Por vezes, pressinto o vazio estelar, mas logo o estômago ocupa o seu lugar e «o universo/Reconstr[ói]-se-me sem ideal nem esperança» (A. C.).
Se não fosse materialista, poderia acreditar que todo o universo é uma construção mental minha. E que, por conseguinte, a sua duração é igual à da minha vida, a minha contribuição para ele absoluta. Mas, por mais que tente, não consigo acreditar que possuo dentro de mim tanta criatividade, tantos cometas. Por vezes, pressinto o vazio estelar, mas logo o estômago ocupa o seu lugar e «o universo/Reconstr[ói]-se-me sem ideal nem esperança» (A. C.).
01 março 2004
O carapau do Tim Burton
Vítor, é difícil não concordar com a tua argumentação. Mas o teu texto fala da ideia geral de imaginação e memória, de pais e de filhos, e não da concretização dessa ideia em filme. Entre os irmãos Lumière e Tim Burton vai um século de cinema. Dos milhares de filmes produzidos em todo o mundo nesse período de tempo, a maioria transporta-nos para universos estranhos de criatividade, mesmo que em ambiente realista. Mas uns são melhores do que outros. Não basta uma boa ideia para fazer um bom filme (ou um bom livro, um quadro belo). Mesmo assim, devo relembrar que gostei do filme. Mas não mais do que três estrelas e um pequeno cometa. A outra estrela e meia vais ter de justificar num novo texto (tu ou o Armando, ao abrigo do direito de resposta), onde fales da interpretação dos actores, do argumento, da realização. Quanto ao resto, concordo contigo, a nossa vida é feita de mais construções mentais, da manipulação criativa da memória, do que nos apercebemos. E, mais importante, da memória dos outros.
Fragmento de Alice
Num instante, Alice passou através do vidro, e saltou agilmente para a sala do Espelho. A primeira coisa que fez foi ver se havia lume na lareira, e ficou muito contente por descobrir que havia um fogo verdadeiro, ardendo em grandes labaredas como o que ela deixara para trás. ‘Então estarei aqui tão quentinha como na velha sala’, pensou Alice, ‘ou até mais quente, na realidade, porque aqui não haverá ninguém para me mandar afastar do fogo. Oh, que divertido vai ser quando me virem aqui através do espelho, sem poderem apanhar-me.’
Lewis Carroll, Alice do Outro Lado do Espelho, trad. Margarida Vale de Gato
Lewis Carroll, Alice do Outro Lado do Espelho, trad. Margarida Vale de Gato
Big Fish: a realidade é uma fábula
Regresso. Passei demasiado tempo fora, no mundo-longe-dos-blogues. Volto agora, depois de ter visto o último filme do Tim Burton, 'Big Fish'. E regresso, para dizer o seguinte ao meu amigo Tiago, que num post mais ou menos recente afirmava não ter gostado do filme: um tipo que tem um blogue chamado Através dos Espelhos e que não gostou do 'Big Fish', não devia ter dado esse nome ao dito cujo.
E porquê? Porque quem não gosta do 'Big Fish' não acredita que é possível atravessar os espelhos para lá daquilo a que chamamos: a realidade.
Vamos por partes: o facto do filme ser bom é uma parte; é mais profundo do que pode parecer; não é tudo tonteria. Não quero contar a história, mas acho que uma ideia subjacente a toda a narrativa deve tocar-nos a todos de um modo ou de outro. Os filhos, normalmente olham para a vida dos pais como icebergues, dos quais apenas conseguem ver 10 por cento. A psicologia terá certamente estudado isto. E é esta a base do argumento. Qual terá sido a verdadeira história da vida do meu pai, para além daquilo que ele me conta?
As histórias fabulosas do pai do filme, afinal foram exageradas. Será? Aqui deixamos a psicologia e entramos num campo que não sendo o da filosofia, pode considerar-se perto dele. A vida é real? O que é a realidade? O que são as aparências? Qual o lugar da fantasia na realidade?
Às vezes penso que toda a minha vida se passou no domínio da fantasia, desde tudo o que foi bom até tudo o que foi mau. É que, passado o momento em que as coisas acontecem, tornam-se memória, e a memória das coisas não é o mesmo do que as coisas em si. Ora a vida, a nossa vida, a realidade do que foi e é a nossa vida, são as histórias que contamos dela. O que é um curriculum vitae? É a nossa vida? Não. É o que nós achamos que devemos contar dela para nos darem um emprego, e não se trata de fantasia, mas da coisa mais seca que devemos apresentar a um potencial empregador.
Assim, quando passamos a contar as histórias da nossa vida, esta torna-se um exercício da memória, o que não a torna propriamente exacta, mas uma fábula mais ou menos real.
O meu pai, por exemplo, como muitos pais com filhos da nossa idade, foi à guerra. Esteve na Guiné. Anos a fio, contou-me a história de uma macaca que morreu de cirrose por gostar tanto das bebidas alcoólicas que os soldados lhe davam a beber. Contou outras que tais. Só depois de ele se ter juntado, pela primeira vez em 25 anos, com os amigos da tropa desse tempo, é que pude ouvir algumas das histórias que ele me contava, contadas por outras vozes.
Há também a história do cão fiel, que voltou ao monte, no Alentejo, depois de ter sido oferecido a um homem que vivia a dezenas de quilómetros e que regressou um dia, com as patas todas feridas, a arranhar à porta... ouvi-a uma segunda vez da boca do meu avô. Era uma fábula, mas era verdade.
A nossa vida, meu caro Tiago, tem mais de fantasia que de realidade porque o acaso, a contingência e o absurdo interferem mais no mundo do que à partida a nossa racionalidade faria supor. A vida, na realidade, é uma fantasia. Contada ninguém acredita. É esse o tributo do filme do Tim Burton. A vida não é uma coisa como uma notícia de jornal. É uma ficção como as que são contadas nos livros. E as únicas pessoas que sobrevivem depois da morte são apenas aquelas sobre as quais se contam histórias.
Quem tiver dúvidas, e houve quem as tivesse, há dois posts neste blogue que atestam isso mesmo. São histórias passadas do lado de cá do espelho, no mundo real, e nas quais as pessoas têm dificuldade em acreditar: é o post sobre o "Quarto do Filho" e a história do "Judeu Messiânico". Que seria de nós se por vezes não parecesse que tínhamos atravessado o espelho?
E porquê? Porque quem não gosta do 'Big Fish' não acredita que é possível atravessar os espelhos para lá daquilo a que chamamos: a realidade.
Vamos por partes: o facto do filme ser bom é uma parte; é mais profundo do que pode parecer; não é tudo tonteria. Não quero contar a história, mas acho que uma ideia subjacente a toda a narrativa deve tocar-nos a todos de um modo ou de outro. Os filhos, normalmente olham para a vida dos pais como icebergues, dos quais apenas conseguem ver 10 por cento. A psicologia terá certamente estudado isto. E é esta a base do argumento. Qual terá sido a verdadeira história da vida do meu pai, para além daquilo que ele me conta?
As histórias fabulosas do pai do filme, afinal foram exageradas. Será? Aqui deixamos a psicologia e entramos num campo que não sendo o da filosofia, pode considerar-se perto dele. A vida é real? O que é a realidade? O que são as aparências? Qual o lugar da fantasia na realidade?
Às vezes penso que toda a minha vida se passou no domínio da fantasia, desde tudo o que foi bom até tudo o que foi mau. É que, passado o momento em que as coisas acontecem, tornam-se memória, e a memória das coisas não é o mesmo do que as coisas em si. Ora a vida, a nossa vida, a realidade do que foi e é a nossa vida, são as histórias que contamos dela. O que é um curriculum vitae? É a nossa vida? Não. É o que nós achamos que devemos contar dela para nos darem um emprego, e não se trata de fantasia, mas da coisa mais seca que devemos apresentar a um potencial empregador.
Assim, quando passamos a contar as histórias da nossa vida, esta torna-se um exercício da memória, o que não a torna propriamente exacta, mas uma fábula mais ou menos real.
O meu pai, por exemplo, como muitos pais com filhos da nossa idade, foi à guerra. Esteve na Guiné. Anos a fio, contou-me a história de uma macaca que morreu de cirrose por gostar tanto das bebidas alcoólicas que os soldados lhe davam a beber. Contou outras que tais. Só depois de ele se ter juntado, pela primeira vez em 25 anos, com os amigos da tropa desse tempo, é que pude ouvir algumas das histórias que ele me contava, contadas por outras vozes.
Há também a história do cão fiel, que voltou ao monte, no Alentejo, depois de ter sido oferecido a um homem que vivia a dezenas de quilómetros e que regressou um dia, com as patas todas feridas, a arranhar à porta... ouvi-a uma segunda vez da boca do meu avô. Era uma fábula, mas era verdade.
A nossa vida, meu caro Tiago, tem mais de fantasia que de realidade porque o acaso, a contingência e o absurdo interferem mais no mundo do que à partida a nossa racionalidade faria supor. A vida, na realidade, é uma fantasia. Contada ninguém acredita. É esse o tributo do filme do Tim Burton. A vida não é uma coisa como uma notícia de jornal. É uma ficção como as que são contadas nos livros. E as únicas pessoas que sobrevivem depois da morte são apenas aquelas sobre as quais se contam histórias.
Quem tiver dúvidas, e houve quem as tivesse, há dois posts neste blogue que atestam isso mesmo. São histórias passadas do lado de cá do espelho, no mundo real, e nas quais as pessoas têm dificuldade em acreditar: é o post sobre o "Quarto do Filho" e a história do "Judeu Messiânico". Que seria de nós se por vezes não parecesse que tínhamos atravessado o espelho?
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