Comentário definitivo sobre o visceral filme de Burton ou Onde se explica Tim Tim por Tim Tim porque há realizadores de quem se pode dizer que são apenas Fish(es) e, outros, muito poucos, que são verdadeiramente Big.
Há quem coleccione moedas, outros reúnem livros, outros ainda acumulam obras de arte. Eu colecciono sonhos, vidas que não poderei viver e pedaços da irrealidade quotidiana. E devo dizer para que conste -verdade minha, por isso, desde logo, absoluta, inquestionável e indesmentível - que alguns dos melhores exemplares desta tão intima, preciosa e nada prosaica colecção, que vai para pouco mais de trinta anos iniciei, os desenterrei em salas escuras, depositadas sobre frágeis teias e tramas de um branco espectral, povoadas por seres luminosos e mágicos.
Ao contrário do que é crença comum, os sonhos, pelo menos este particular tipo de sonhos, não devem ser guardados em qualquer recôndito canto, mais ou menos sombrio, do cérebro humano. Eu arrumo-os numa caixa, que é exactamente o lugar onde devem ser guardados todos os sonhos. Não será necessário explicar que nem todas as caixas se adequam à função, tal se deve às particulares formas dos sonhos e às suas propriedades voláteis. Por isso no meu caso optei por os albergar na caixa torácica, mais precisamente no interior cavernoso do meu ventrículo esquerdo, válvula cardíaca responsável pela irrigação sanguínea de todo o organismo. Graças a isso, impulsionados pelo ritmo cadenciado de cada sístole e diástole, percorrem todo o meu ser, em harmonioso convívio com a amálgama de glóbulos brancos, vermelhos e plasma, pequenas partículas de celulose e nitrato de prata, materiais alquímicos usados na confecção dos sonhos.
E é com certeza por isso que amo o cinema, porque ele me corre nas veias.
Não será então de estranhar -silogismo simples, duplo axioma com um único corolário possível -, que se o cinema me está alojado no coração e que é do interior desse órgão que nasce o amor (lei universal afirmada por poetas e testemunhada por amantes), que devote profunda afeição aos demiurgos que criam universos, aos efabuladores míticos que ao sétimo dia não descansaram, antes se afadigaram a fazer nascer uma nova arte e a que, talvez por isso mesmo, chamaram sétima. E, nesse novo panteão, um Deus ex-machina, pairando sobre todos Los Angeles, num reino onírico e distante a que chamam Hollywood, ocupa o lugar central no firmamento. Burton, de seu nome.
Há quem tenha os filmes da sua vida, eu tenho os realizadores da minha (Burton, Eastwood, Scorcese, Curtiz, Capra, Coppola...) e sou-lhes violentamente fiel, intransigente na defesa contra os seus detractores, infinitamente orgulhoso na forma como desdenho os que não veneram a sua mestria.
E não percebo, verdade que não, como é possível ser-se insensível à pincelada do génio, ao toque do artista, ao desfilar de emoções que o seu talento faz assomar e que não deixam outra saída ao comum mortal, senão maravilhar-se perante o carrossel caleidoscópico de luz, cor e magia que dele brota, todo ele ilusão e mistério, milagre e profissão de fé.
Poderia invocar infinitas razões para amar esse luminoso objecto de desejo (não sei se acabo de contra-citar, ex-citar ou in-citar Buñuel, outro surrealista e sonhador como Burton) que é o Big Fish. Mas em vez de invocar prefiro lançar mão de outro verbo que me é muito mais caro: convocar. Porque, ao fim e ao cabo, tudo neste filme se resume a isso. Convocar os mais íntimos desejos, as mais pungentes inquietações, os medos mais atrozes: amar e ser amado, o apelo ancestral que me faz ansiar pela vinda de um filho, o valor inestimável que atribuo à amizade, o receio que me faz acordar de noite, sobressaltado, de perder o meu pai sem lhe dizer tudo o que ele significa para mim, de lhe dizer o tanto que gosto dele e de lhe agradecer tudo o que sou. Tudo isso estava lá. No Big Fish. Tudo eu vi e em tudo me revi. Lamento, se houve quem tivesse visto menos.
É um filme que fala da morte, celebrando a vida; que fala de mulheres e homens, celebrando o amor; que fala de pessoas, quantas vezes estranhas e bizarras, celebrando a amizade; que fala de filhos, celebrando os pais; que, no fim, e por fim, fala da realidade, celebrando a fantasia.
Vi, no Big Fish, bruxas que profetizam mortes. Cartografei cidades cujos habitantes permaneciam descalços, refugiados num limbo idílico e testemunhei o bom coração de gigantes. Também por lá andavam directores de circo que são lobisomens quando o sol se ausenta do céu e gémeas siamesas que cantam celestialmente. E vi milagres acontecerem, um homem que ao morrer se transformou em peixe e um filho que, na hora da morte do pai, se deu conta do muito que lhe devia, milagre maior entre todos os milagres.
Mas, acima de tudo, foi ao ver o Big Fish que tive a certeza de que até hoje nunca amei verdadeiramente, porque nunca, até então, tinha visto o amor acontecer perante os meus olhos. Mas agora que sei o que é o amor, que é quando espaço e tempo congelam, estarei preparado para o receber e para não o deixar fugir nunca. E recebê-lo-ei, de certeza num campo de narcisos, amarelos, como o sol, pois essa, sei-o agora, é a única maneira possível de colher o amor.
Foi Nietzsche, creio, que disse ser preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança. Para parir três estrelas, três estrelas e meia, Tiago, não imagino quanto de caos, matéria e antimatéria reunidas, será necessário. Muito menos para parir todo um universo... Big Fish ou Big Bang???
Armando Norte
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