Debaixo da oliveira da minha infância, ao fundo do quintal na casa dos meus avós paternos, em Ermidas-Sado, no Alentejo, tive uma visão pascal, ou melhor, uma re-visão pascal. Lembro-me bem. Eu era pequeno, quase do tamanho do borrego que o meu avô António levava pela mão até ao altar de imolação debaixo daquela oliveira sagrada. E mostrava-me como se fazia. Duas facas: o canivete pequenino, o mesmo dos petiscos, e uma faca média de matança - pois havia uma maior para matar os porcos (embora na família não houvesse indús, há muito que não se matavam vacas). Primeiro, o meu avô metia a faca no pescoço do bicho, por uma das carótidas, de onde jorrava o sangue que regava a árvore (se a natureza tivesse imaginação, aquela dava azeitonas de cabidela). O animal não se manifestava. Ia desfalecendo devagarinho, um cordeiro, como se diz. Depois punha a faca maior de lado, e abria o canivete. Fazia um buraquinho numa das mãos do falecido, entre a carne e a pele, e enfiava por lá uma cana de soprar borregos: é uma cana normal, fina e pequena, previamente preparada pelo matador, para isso mesmo. Soprar os borregos. E era isso que o avô fazia: prendia a cana com um cordel, e soprava por ali adentro (por vezes deixava-me experimentar) e o borrego começava a inchar como se fosse um balão, conforme a pele lãnzuda se separava da carne. Quando estava bem cheio, quase a levitar, pendurava-o na oliveira, por um gancho de arame, passava-lhe a faquinha pela pele insuflada e descascava-o num instante. Eu levava a pele para o casão, e houve vezes em que chegou a oferecer duas ou três ao meu irmão, para vender. Valeram 300 escudos cada uma no curtidor lá da terra. A partir daqui, o ritual começava a meter tripas e cacholas e para mim, perdia o interesse. Este fim-de-semana, o meu avô, que já não mata os borregos - agora é o meu tio, ou o meu pai -, esteve a mostrar-me a sua horta, debaixo da oliveira, ao fundo do quintal. Mas, à mesa, cortou a linguiça com a tal faquinha de esfolar os borregos, afiada, pontiaguda, a mesma dos petiscos. Tudo isto a propósito de uma pequena reportagem no Diário de Notícias, sobre a proibição de imolar borregos nas ruas das terras alentejanas, que na Páscoa enchiam os poiais de sangue escuro.
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