Existe um tempo circular, marcado pela recorrência das estações, e um tempo linear, marcado pela sucessão dos anos. Os nossos antepassados reuniam-se em planícies ou cumes de montanha para celebrarem solstícios, nós comemoramos passagens de ano. Esta alteração nos rituais de celebração adequa-se provavelmente melhor ao carácter da vida moderna: não mudamos ao ritmo das estações; vivemos num tempo aberto e não fechado sobre si próprio, lento. Continuamos a habitar «ruínas circulares», mas existem mais saídas para o labirinto.
Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
31 dezembro 2004
Como é que esta tragédia vai mudar as nossas vidas? O terramoto de 1755 (o sismo, a tsunami, e o incêndio), uma das maiores catástrofes conhecidas do mundo civilizado daquele tempo, ajudou a moldar as mentalidades. Em pelno Ilumunismo, deixámos de acreditar que os males naturais eram enviados por Deus para punir os males morais dos homens, ou mais simplesmente, para castigar os pecados. Nesse momento, a natureza ganhou o carácter de neutralidade que ainda tem hoje. E agora, duzentos e cinquenta anos depois, com tantas imagens e testemunhos que na Lisboa pombalina não havia? Embora esta seja uma visão eurocênctrica, parece que o 11 de Setembro (e cerca de três mil mortos) vão contribuir mais para definir o nosso futuro enquanto Mundo do que as dezenas de milhar de mortos causados pela tsunami. Um acidente é uma fatalidade e nada a fazer. Quando há uma mão humana a comandar o mal tudo muda. Mas o holocausto não foi há 50 anos e a humanidade não permaneceu a mesma?
28 dezembro 2004
25 dezembro 2004
Do outro lado do espelho - VI
O Chico Malveiro bebeu o último copo de tinto já a chorar, na tasca do algarvio, junto à praça das palmeiras.
- Então hoje, esta noite, você aqui ó amigo Malveiro? Não vai comer o bacalhau e as couves com a sua Maria?
O Malveiro voltou a cair em si, apesar do vinho. Sentou-se e chorou outra vez.
- Estou aqui a chorar porque a Maria ficou em casa sozinha a chorar porque vim aqui... Se eu fosse para casa esta já não era uma noite triste, porque é sempre... estas noites...
- Ó amigo Malveiro deixe-se de balbuciar. Venha lá comigo.
Levado pelo braço, desceu a avenida. À vigésima quinta amoreira que ladeia a estrada bateu à sua própria porta e gritou - Maria do Carmo! A seu lado ela limpou-lhe o suor do rosto, falando baixinho - Francisco, acorda... Sabes que não podes vestir esse pijama quente no Verão porque tens pesadelos. Queres água?
- Então hoje, esta noite, você aqui ó amigo Malveiro? Não vai comer o bacalhau e as couves com a sua Maria?
O Malveiro voltou a cair em si, apesar do vinho. Sentou-se e chorou outra vez.
- Estou aqui a chorar porque a Maria ficou em casa sozinha a chorar porque vim aqui... Se eu fosse para casa esta já não era uma noite triste, porque é sempre... estas noites...
- Ó amigo Malveiro deixe-se de balbuciar. Venha lá comigo.
Levado pelo braço, desceu a avenida. À vigésima quinta amoreira que ladeia a estrada bateu à sua própria porta e gritou - Maria do Carmo! A seu lado ela limpou-lhe o suor do rosto, falando baixinho - Francisco, acorda... Sabes que não podes vestir esse pijama quente no Verão porque tens pesadelos. Queres água?
23 dezembro 2004
22 dezembro 2004
Espelho mau, espelho mau - VIII
Espera-se a todo o momento ouvir uma ideia da boca de José Sócrates. Há quem tenha os foguetes preparados para quando o fenómeno ocorrer. Pedir uma maioria absoluta sem se saber para quê soa muito a santanista. E chegar ao poder assim sem se estar preparado, como estamos a ver, dá mal resultado. Guterres preparou-se anos e Durão sentou-se no trono pelo menos um ano antes do que esperava. Por este caminho o país não se endireita. Vamos continuar a viver num regime de comédia trágica que nos faz rir primeiro e chorar depois. Alguém sabe como estão as quotas de imigração da Nova Zelândia?
Do outro lado do espelho - V
Voltei a conversar longamente com Deus depois do meu neuropsicólogo estimular com choques eléctricos o lóbulo temporal que me causava os ataques de epilepsia. Dessa vez quase tive uma visão piedosa, como se fosse um pastorinho de Fátima. Ainda não percebi se é o meu cérebro fantasioso que é crente se sou eu que acredito. Tenho de voltar a tomar os comprimidos inibidores da transcendência porque a minha sugestão natural para achar que Ele existe está a tornar-se demasiado forte.
Espelho mau, espelho mau - VII
Facadas nas costas, diz ele, que se atira para trás cada vez que vê uma coisa afiada e vai caindo, caindo, para cima das facas que vê no caminho. Ora ontem foi ver Santana e Bagão de facas longas apontadas a Ferreira Leite. Ainda vamos ver os ministros deste Governo às navalhadas de rectaguarda com os do anterior.
20 dezembro 2004
Leitor externo
Acredito por momentos na validade de algumas teorias idealistas quando visito bibliotecas. Passo a tarde mais em lugares criados concretamente no cérebro do que numa mesa da biblioteca. Os estudantes lêem muito longe de mim, em outras cidades. Quando ponho os auscultadores, o fenómeno amplifica-se: estou em São Petersburgo, num bar da 52nd Street e na biblioteca da Faculdade de Letras. Sou um leitor externo e só agora entendo o significado da classificação.
Não consigo ler o Cântico Negro de José Régio («Ninguém me diga: ‘vem por aqui’! [...] // Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, / - Sei que não vou por aí!») sem pensar na semelhança de alguns versos com os de Lisbon Revisited de Álvaro de Campos («Assim, como sou, tenham paciência! / Vão para o diabo sem mim, / Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! / Para que haveremos de ir juntos?»). E o tom de Noite antiquíssima de Álvaro de Campos («Vem, Noite antiquíssima e idêntica [...] Vem, vagamente, / Vem, levemente, / Vem sozinha, solene, com as mãos caídas / Ao teu lado») lembra-me alguns versos de Romeu e Julieta de Shakespeare («Come Night, come Romeo [...] Come gentle night...»). Não acho que todos os poetas sejam meros continuadores de um longo poema universal e não tenho nenhuma teoria sobre os limites do plágio ou do contágio. Esta não é uma observação sobre a influência, é mais sobre a leitura do que sobre a escrita: as palavras não se esgotam, repetem-se.
As traduções das letras dos Joy Division são más. As traduções das letras dos Joy Division não podem ser boas. Há bastante tempo que partilho com o Zé Pedro este desconforto. O erro é estrutural, nenhum tradutor pode atenuar a estranheza. (A Assírio & Alvim tem duas edições, uma com tradução de Paulo da Costa Domingos e de mais alguém cujo nome não me recordo e a outra de José Alberto Oliveira.) Não conseguimos simplesmente ler os poemas, ouvimo-los mentalmente em português com a música original. É indiferente se «o amor nos destroçará» ou se «nos dilacerará», nunca chegará para «tear us apart». É como tentar ler aquele soneto da Florbela Espanca sem ouvir a voz do Luís Represas a querer amar-nos perdidamente.
Dezoito de Dezembro
Sónia, Gonçalo, Luísa, Andreia, Pedro Saragoça, Pedro Santos, Carla/Carolina, Armando, Paulo, Ana Luísa/Gustavo, Pedro, Rodrigo, Vítor, Carla, Catarina, Paula, Xana, Cláudia, Nuno Moura, Maísa, Irene, Ireneu, Francisco, Mafalda, Mafalda de Castro, Miguel, Hugo Franco, Dina, Zé Pedro, obrigado. Obrigado à Isabel que teve de cobrir a inauguração de quarenta metros de tronco de natal e a todos os outros que não puderam aparecer. Obrigado ao fofo de Belas gigante e ao travesseiro da Piriquita por se terem deixado comer passivamente. Obrigado à Joana, que tem sempre boas surpresas preparadas para mim.
17 dezembro 2004
O niilismo e a taxa metabólica
Num artigo já com alguns anos, Stephen Jay Gould escreve sobre a taxa metabólica dos mamíferos. Ao que parece, há uma relação entre o tamanho do corpo e o ritmo do metabolismo e os animais com um metabolismo mais acelerado vivem menos tempo (os mais pequenos respiram e morrem mais depressa). Vivem aproximadamente o mesmo tempo biológico, mas a ritmos diferentes. Segundo estimativas, os mamíferos tendem a respirar cerca de 200 milhões de vezes no espaço da sua vida e, como respiram uma vez por cada quatro batimentos cardíacos, os seus corações batem cerca de 800 milhões de vezes. Antes que comecem a fazer contas, Gould explica que os seres humanos escapam a este padrão geral, vivendo cerca de três vezes mais tempo do que os outros mamíferos do mesmo tamanho: os pulmões respiram 600 milhões de vezes e o coração bate 2400 milhões de vezes. Já é um pouco tarde para começar a contar, mas sei que, pelo menos, vou passar a respirar muito mais devagarinho.
16 dezembro 2004
Espelho mau, espelho mau - VI
Qual é coisa qual é ela, que antes de o ser já o era?
a) O cherne.
b) A pescada.
c) A coligação PSD-CDS/PP.
d) O carapau de corrida.
a) O cherne.
b) A pescada.
c) A coligação PSD-CDS/PP.
d) O carapau de corrida.
Nos séculos XVI e XVII descobriram-se muitas ilhas imaginárias, com constituições perfeitas e habitantes pacíficos. Os oceanos eram perigosos e um naufrágio era uma bênção concedida aos marinheiros imaginários. Encontravam Utopia (More), Oceana (Harrington) ou Bensalem. Esta última é descrita por Francis Bacon em Nova Atlântida: uma ilha centrada na ciência e nos frutos da ciência. Da mistura entre filosofia política e ficção científica, o que mais me interessou quando li a fábula foi a ocupação de uma das divisões da classe dirigente. É constituída por homens que navegam para outros países em busca de livros e de conhecimento. Chamam-lhes mercadores de luzes (merchants of light). Actualmente, temos uma coisa parecida mas com um nome muito menos fascinante, são os bolseiros e já não navegam, andam de avião. Do cais em frente à minha janela chegam e partem navios; não sei se me candidate a uma bolsa ou se viaje clandestino.
15 dezembro 2004
Num daqueles livros que se lêem na adolescência, o narrador descreve os dias que passou num quarto, sem a noção do tempo, sob o efeito de uma droga qualquer. Também eu vivi pelo relógio sem ponteiros de Morangos Silvestres nestas duas últimas semanas, sem ter tomado nada. Acabei a tradução de um livro difícil, comemorei a dissolução do parlamento e a evaporação do governo (passagem do estado líquido ao gasoso), vi A Costa dos Murmúrios, participei na maratona gastronómica de recepção ao Ruca, assisti ao empate do Sporting em Alvalade, não escrevi postais de Natal, li pouco. Já preguei os ponteiros ao relógio: estou atrasado, estou muito atrasado. Estou de volta.
14 dezembro 2004
Espelho mau, espelho mau - V
A coligação vai descoligada a votos com uma aliança firmada para coligar-se a seguir. De que cor é o cavalo branco de D. José?
Do outro lado do espelho - IV
Aquele homem tinha-se alimentado toda a vida de uma incubadora de sonhos, muito transparente, pendurada na sala como se fosse um aquário por cima da telefonia. Conforme os anos passavam e os tempos se tornavam mais modernos, mais deprimido ficava com a realidade. Então, para fugir do mundo que o iludia com empirismos, punha os óculos de mergulhador e aspirava pelo tubo da incubadora os sonhos sedimentados ora em camadas ora em forma de maçanetas que lhe abriam novas passagens.
Um dia, já os tempos eram muito modernos, porque tinham passado muitos anos, não aguentou. Partiu a incubadora e fez dos sonhos a realidade, à qual só regressou verdadeiramente já era muito velho. Quando saiu da clínica de desintoxicação, onde tinha entrado entre a vida e a morte - com o cérebro a querer expandir-se pelos orifícios da cabeça com tantas imaginações -, prometeu que nunca mais se punha a levitar à frente das pessoas esfumando-se para dentro de chaleiras quando concedia três desejos surreais. Para lhe proibir a actividade, as autoridades alegaram que a satisfação plena prejudicava a economia.
Um dia, já os tempos eram muito modernos, porque tinham passado muitos anos, não aguentou. Partiu a incubadora e fez dos sonhos a realidade, à qual só regressou verdadeiramente já era muito velho. Quando saiu da clínica de desintoxicação, onde tinha entrado entre a vida e a morte - com o cérebro a querer expandir-se pelos orifícios da cabeça com tantas imaginações -, prometeu que nunca mais se punha a levitar à frente das pessoas esfumando-se para dentro de chaleiras quando concedia três desejos surreais. Para lhe proibir a actividade, as autoridades alegaram que a satisfação plena prejudicava a economia.
13 dezembro 2004
Espelho mau, espelho mau IV
Santana demitiu-se e bem. Mas a notícia (no Público) de que pretendia abandonar funções só vinca ainda mais as verdadeiras características dele. Este homem tem vertigens e quando olha para baixo de um lugar alto atira-se em desespero, se ninguém lhe joga a mão.
12 dezembro 2004
Espelho mau, espelho mau III
Dias Loureiro já tinha aconselhado Santana Lopes a demitir-se, e disse-o numa entrevista à TSF. Pedro concordou porque não lhe iam perdoar estar no cargo sem ter sido eleito.
Agora só lhe resta agradecer a Sampaio por ter dissolvido a Assembleia, deixando-o aparecer como a vítima (se ele próprio se demitisse era sinal de fraqueza); ou então pode aproveitar a embalagem e atirar-se ao Presidente por o ter feito primeiro-ministro, quando era mais que visto que isso só o ia prejudicar (um Santana virgem de acção governativa seria muito mais eficaz em campanha eleitoral). E, já agora, dizer ao 'Manel' (Dias Loureiro) que com amigos destes...
Agora só lhe resta agradecer a Sampaio por ter dissolvido a Assembleia, deixando-o aparecer como a vítima (se ele próprio se demitisse era sinal de fraqueza); ou então pode aproveitar a embalagem e atirar-se ao Presidente por o ter feito primeiro-ministro, quando era mais que visto que isso só o ia prejudicar (um Santana virgem de acção governativa seria muito mais eficaz em campanha eleitoral). E, já agora, dizer ao 'Manel' (Dias Loureiro) que com amigos destes...
11 dezembro 2004
Se eles até ganham é que vai ser o bonito
... E Sampaio falou.
Para dizer tudo o que já se sabia, tão óbvias eram as suas razões. Foi assassino quando disse que as reacções [da maioria] à sua decisão ainda reforçaram mais essa certeza. Talvez as reacções do PS à nomeação de Santana, há quatro meses, tenham funcionado de forma simétrica. Só que fruto da decisão de Sampaio o PS mudou. Agora, com um discurso como este, onde se percebe a desconfiança pessoal absoluta do Presidente em Santana Lopes, que condições políticas terá Sampaio para dar posse a um Governo Santana/Portas, se a actual maioria ganhar as eleições, o que não é completamente disparatado?
Para dizer tudo o que já se sabia, tão óbvias eram as suas razões. Foi assassino quando disse que as reacções [da maioria] à sua decisão ainda reforçaram mais essa certeza. Talvez as reacções do PS à nomeação de Santana, há quatro meses, tenham funcionado de forma simétrica. Só que fruto da decisão de Sampaio o PS mudou. Agora, com um discurso como este, onde se percebe a desconfiança pessoal absoluta do Presidente em Santana Lopes, que condições políticas terá Sampaio para dar posse a um Governo Santana/Portas, se a actual maioria ganhar as eleições, o que não é completamente disparatado?
08 dezembro 2004
Espelho mau, espelho mau II
Santana nunca percebeu o papel de primeiro-ministro. Quando revelou em público a conversa tida no Palácio de Belém - e a tripla negação de Sampaio à pergunta da dissolução -, não percebeu que aquela tinha sido uma conversa entre dois titulares de órgãos de soberania unipessoais, e não uma troca de palavras entre o Pedro e o tio Jorge. Nunca se vai perceber se estava a falar a verdade, porque jamais alguém de Belém vai dizer o que se passou naquela sala. Santana Lopes transportará esse ónus de traição da confiança institucional durante a campanha eleitoral. E, se ganhar as eleições, a confiança entre os dois será tanta que terá de fazer como Eanes e Balsemão que gravavam as conversas para não haver dúvidas.
05 dezembro 2004
Espelho mau, espelho mau I
Obrigatório ler o artigo de Vasco Pulido Valente, no Público de hoje, sobre os maus políticos e tudo o resto que também é mau. Mas se todos nos olhássemos ao espelho que VPV segura, corríamos para a Ponte 25 de Abril numa romaria suicida colectiva.
Do outro lado do espelho III
Olho para cima. Na fachada do edifício estende-se o cartaz imenso daquela campanha publicitária que se repete há três Invernos, para coincidir com o Natal: "Adopte uma pessoa abandonada. Ofereça uma vida." Entro. Respondo a um questionário ao computador. Tenho o perfil indicado. Quando chega a minha vez, uma mulher de branco conduz-me pelos corredores até aos aposentos. "Esta semana tem sido uma loucura, levaram-nos quase tudo, são boas prendas, sabe..." Pois, penso eu, ao preço que estão as coisas... Ela abre a última porta e deixa-me em frente a uma fila de quartos com portas de vidro. "Pronto, pode escolher, já só temos estes quatro, mas daqui a uns dias devemos ter mais. Quando quiser, chame".
Perco-me tempos sem fim a andar de um lado para o outro diante das pequenas celas. Havia uma namorada abandonada a chorar sentada de cócoras a um canto. Um ministro remodelado a redigir decretos para não perder o jeito. Um velho sentado na cama, de bengala na mão, como se estivesse num banco de jardim. E uma menina encontrada num hipermercado, não reclamada pelos pais, a jogar num telemóvel. Escolhi o ministro. Mandei entregar dali a três dias e paguei o transporte. Fica bem na minha secretária, bem penteado e com a sua gravata, tem lá muito com que escrever despachos, faz-me companhia a beber um uísque ao serão e a minha mulher acha o máximo ter gente importante lá em casa.
Perco-me tempos sem fim a andar de um lado para o outro diante das pequenas celas. Havia uma namorada abandonada a chorar sentada de cócoras a um canto. Um ministro remodelado a redigir decretos para não perder o jeito. Um velho sentado na cama, de bengala na mão, como se estivesse num banco de jardim. E uma menina encontrada num hipermercado, não reclamada pelos pais, a jogar num telemóvel. Escolhi o ministro. Mandei entregar dali a três dias e paguei o transporte. Fica bem na minha secretária, bem penteado e com a sua gravata, tem lá muito com que escrever despachos, faz-me companhia a beber um uísque ao serão e a minha mulher acha o máximo ter gente importante lá em casa.
03 dezembro 2004
Borges quer meter-se "nisto"?
No último post, questionava quem quer meter-se nisto, na política, tendo em conta o modo como estão as coisas. Hoje, António Borges diz numa entrevista ao Diário Económico: "Portugal atravessa um momento em que ninguém com responsabilidades pode afirmar ‘eu fico de fora’". É uma atitude patriótica, desde que seja consequente com as palavras ditas. Resta saber quem está com Borges no PSD para expulsar a chamada moeda má. Mas agora, quatro meses depois do tempo certo, pode ser tarde de mais...
02 dezembro 2004
The end of the affair
A falta de legitimidade é uma coisa terrível, por mais legalidades que justificassem a nomeação de Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro. O homem nunca se sentiu legitimado, foi sempre uma espécie de adolescente vigiado pelos tutores. Isso ficou provado durante estes longos quatro meses trapalhões, em que o Governo andou trôpego e o PSD passou o tempo encalhado em si mesmo. De qualquer maneira, valeu a pena para sabermos o que vale Santana em S. Bento. Jorge Sampaio percebeu e emendou a mão, com todas as consequências que isso agora vai ter.
Vivemos em democracia. Num regime semi-parlamentar - ou mais para o semi-presidencial desde há dois dias (ou desde há quatro meses) -, ir a eleições não pode ser um drama. Mais dramático seria viver com um Governo artificial, ligado à máquina, a precisar de oxigénio a toda a hora, sem autonomia para respirar. Mas se não é um drama, não deixa de ser grave que agora funcionamos em ciclos de dois anos. Das próximas eleições devia sair um Governo de maioria, fosse de quem fosse, para isto normalizar.
Só que a realidade e a Constituição estão desfazadas: as pessoas votam para o primeiro-ministro, que não é eleito, e não para os representantes parlamentares; o sistema partidário não permite um esquema de alianças possíveis à direita e à esquerda como vemos noutros países europeus; e o Presidente da República é percebido como uma Rainha de Inglaterra ou um notário que, de facto, como vemos, não é.
Vivemos uma crise de regime. Da maneira que as coisas estão, quem vai querer meter-se nisto?
Vivemos em democracia. Num regime semi-parlamentar - ou mais para o semi-presidencial desde há dois dias (ou desde há quatro meses) -, ir a eleições não pode ser um drama. Mais dramático seria viver com um Governo artificial, ligado à máquina, a precisar de oxigénio a toda a hora, sem autonomia para respirar. Mas se não é um drama, não deixa de ser grave que agora funcionamos em ciclos de dois anos. Das próximas eleições devia sair um Governo de maioria, fosse de quem fosse, para isto normalizar.
Só que a realidade e a Constituição estão desfazadas: as pessoas votam para o primeiro-ministro, que não é eleito, e não para os representantes parlamentares; o sistema partidário não permite um esquema de alianças possíveis à direita e à esquerda como vemos noutros países europeus; e o Presidente da República é percebido como uma Rainha de Inglaterra ou um notário que, de facto, como vemos, não é.
Vivemos uma crise de regime. Da maneira que as coisas estão, quem vai querer meter-se nisto?
29 novembro 2004
O Governo na incubadora
Cavaco Silva escreveu que os políticos competentes devem afastar os incompetentes. Henrique Chaves não esperou. Ainda não há garantias de substituição por um competente.
Não há memória de uma demissão tão violenta de um ministro, ainda por cima amigo e apoiante de sempre do primeiro-ministro. Tudo o que houver por detrás de tudo isto será mais grave do que possa pensar-se. E terá os seus efeitos no castelo de cartas governamental.
Ontem Santana Lopes fez um discurso com metáforas que ficam mal. Comparou o Governo a uma criança mal parida, aquilo a que ele chama "um parto difícil", assumindo que o Executivo está numa "incubadora", mas depois vêm os "irmãos mais velhos" - sim, o mesmo Cavaco Silva a quem ele apelou para Belém -, que dão "estalos e pontapés, em vez de o acarinhar". Isto é tudo ingenuidade?
É a declaração de fraqueza mais franca e trapalhona alguma vez feita por um primeiro-ministro.
Jorge Sampaio está neste momento reunido em Belém com um nascituro precoce que vive numa incubadora por ser imaturo para funções tão solenes. A pedir garantias de quê?
Não há memória de uma demissão tão violenta de um ministro, ainda por cima amigo e apoiante de sempre do primeiro-ministro. Tudo o que houver por detrás de tudo isto será mais grave do que possa pensar-se. E terá os seus efeitos no castelo de cartas governamental.
Ontem Santana Lopes fez um discurso com metáforas que ficam mal. Comparou o Governo a uma criança mal parida, aquilo a que ele chama "um parto difícil", assumindo que o Executivo está numa "incubadora", mas depois vêm os "irmãos mais velhos" - sim, o mesmo Cavaco Silva a quem ele apelou para Belém -, que dão "estalos e pontapés, em vez de o acarinhar". Isto é tudo ingenuidade?
É a declaração de fraqueza mais franca e trapalhona alguma vez feita por um primeiro-ministro.
Jorge Sampaio está neste momento reunido em Belém com um nascituro precoce que vive numa incubadora por ser imaturo para funções tão solenes. A pedir garantias de quê?
28 novembro 2004
As meninas de Picasso
Saímos do Museu Picasso para as ruas estreitas do bairro gótico de Barcelona, tão diferentes das Ramblas: trazíamos ainda os desenhos de infância, os primeiros retratos clássicos do pintor - ou não tivesse o pai dele sido professor de belas-artes -, tudo aquilo que não se imagina que Picasso pudesse ter pintado, como a cena realista de uma primeira comunhão com que ganhou um prémio aos 15 anos, mas levávamos na mente sobretudo o quadro e as dezenas de variações distorcidas das "Meninas", de Velasquez, vistas por ele.
As anchovas de Dalí
À procura de um bar de tapas, andámos às voltas pelo bairro até voltarmos à rua do museu e darmos com uma fila de gente que entrava para uma taberna a abrir a porta naquele exacto momento, sete da tarde: seguimos a procissão para o "Xampañet", sentámo-nos, pedimos tapas de tudo, repetimos, e acompanhámos as ditas, deliciosas, com um vinho branco espumoso, que não é espumante nem vinho verde, a que eles chamam o "cava". As melhores e a jogar com o vinho eram as de achovas, "as preferidas de Dalí", como estava destacado num artigo de jornal pendurado na parede, debaixo das pipas. Parece que o surrealista gostava de ir ali beberricar e petiscar as melhores anchovas da cidade. Uma fonte de inspiração a que fomos sensíveis. Pelo menos eu saí de lá um bocado mais surreal...
A sombra do vento
Na mesma noite, um pouco mais tarde, Fermín Romero de Torres era violentamente feito em papa quando ia a entrar para o mesmo "Xampañet", de tanta porrada que apanhava de um tal de inspector Francisco Javier Fumero, um esbirro e assassino do pior, da polícia política espanhola, que deixou o homem de costelas partidas e impróprio para consumo durante dias. Mesmo com tanto sangue, foi uma agradável surpresa: agora, quando viajo de férias, leio sempre um romance que se passe nos lugares onde vou, e foi o que aconteceu. Antes de dormir, li que Fermín queria comer umas tapas ao tal de "Xampañet", mas teve azar, e só quando revi as fotos na máquina digital confirmei, satisfeito, que era o mesmo lugar... "A Sombra do Vento", de Carlos Ruiz Zafón (Dom Quixote), ganhou prémios em 2001 e 2002 e é um best-seller mundial, mas não é um grande livro, apesar da história ser impulsionada pelos livros. Lê-se compulsivamente, mas vale duas estrelas em cinco. Para apreciar em viagens descontraídas de férias.
Irlandeses de Glasgow
Em Barcelona respira-se futebol. Depois da vitória sobre o Real Madrid, a cidade recebeu os adeptos listados de verde e branco (como o Sporting) do Celtic de Glasgow - o mesmo clube que o Porto venceu na final da Liga dos Campeões o ano passado (eh, eh!). Os escoceses enchiam os bares, os pubs e as ruas com cânticos de cerveja aos litros. Tudo normal. Menos a quantidade de bandeiras da Irlanda que desfraldavam pelas ruas e a ausência total da flâmula da Escócia. Depois de cruzadas quatro fontes muito entornadas e de sotaque impossível após um jogo que acabou empatado um igual, solucionei o mistério: o fundador do Celtic foi um irlandês, daí que o símbolo do clube seja um trevo de quatro folhas; os adeptos são maioritariamente de um bairro situado na West Wing de Glasgow, onde se fixaram os imigrantes irlandeses no início do século; os avós são irlandeses, eles são escoceses e não gostam lá muito de ingleses. Por isso nem eles perderam nem os da Catalunha ganharam. Afinidades...
Saímos do Museu Picasso para as ruas estreitas do bairro gótico de Barcelona, tão diferentes das Ramblas: trazíamos ainda os desenhos de infância, os primeiros retratos clássicos do pintor - ou não tivesse o pai dele sido professor de belas-artes -, tudo aquilo que não se imagina que Picasso pudesse ter pintado, como a cena realista de uma primeira comunhão com que ganhou um prémio aos 15 anos, mas levávamos na mente sobretudo o quadro e as dezenas de variações distorcidas das "Meninas", de Velasquez, vistas por ele.
As anchovas de Dalí
À procura de um bar de tapas, andámos às voltas pelo bairro até voltarmos à rua do museu e darmos com uma fila de gente que entrava para uma taberna a abrir a porta naquele exacto momento, sete da tarde: seguimos a procissão para o "Xampañet", sentámo-nos, pedimos tapas de tudo, repetimos, e acompanhámos as ditas, deliciosas, com um vinho branco espumoso, que não é espumante nem vinho verde, a que eles chamam o "cava". As melhores e a jogar com o vinho eram as de achovas, "as preferidas de Dalí", como estava destacado num artigo de jornal pendurado na parede, debaixo das pipas. Parece que o surrealista gostava de ir ali beberricar e petiscar as melhores anchovas da cidade. Uma fonte de inspiração a que fomos sensíveis. Pelo menos eu saí de lá um bocado mais surreal...
A sombra do vento
Na mesma noite, um pouco mais tarde, Fermín Romero de Torres era violentamente feito em papa quando ia a entrar para o mesmo "Xampañet", de tanta porrada que apanhava de um tal de inspector Francisco Javier Fumero, um esbirro e assassino do pior, da polícia política espanhola, que deixou o homem de costelas partidas e impróprio para consumo durante dias. Mesmo com tanto sangue, foi uma agradável surpresa: agora, quando viajo de férias, leio sempre um romance que se passe nos lugares onde vou, e foi o que aconteceu. Antes de dormir, li que Fermín queria comer umas tapas ao tal de "Xampañet", mas teve azar, e só quando revi as fotos na máquina digital confirmei, satisfeito, que era o mesmo lugar... "A Sombra do Vento", de Carlos Ruiz Zafón (Dom Quixote), ganhou prémios em 2001 e 2002 e é um best-seller mundial, mas não é um grande livro, apesar da história ser impulsionada pelos livros. Lê-se compulsivamente, mas vale duas estrelas em cinco. Para apreciar em viagens descontraídas de férias.
Irlandeses de Glasgow
Em Barcelona respira-se futebol. Depois da vitória sobre o Real Madrid, a cidade recebeu os adeptos listados de verde e branco (como o Sporting) do Celtic de Glasgow - o mesmo clube que o Porto venceu na final da Liga dos Campeões o ano passado (eh, eh!). Os escoceses enchiam os bares, os pubs e as ruas com cânticos de cerveja aos litros. Tudo normal. Menos a quantidade de bandeiras da Irlanda que desfraldavam pelas ruas e a ausência total da flâmula da Escócia. Depois de cruzadas quatro fontes muito entornadas e de sotaque impossível após um jogo que acabou empatado um igual, solucionei o mistério: o fundador do Celtic foi um irlandês, daí que o símbolo do clube seja um trevo de quatro folhas; os adeptos são maioritariamente de um bairro situado na West Wing de Glasgow, onde se fixaram os imigrantes irlandeses no início do século; os avós são irlandeses, eles são escoceses e não gostam lá muito de ingleses. Por isso nem eles perderam nem os da Catalunha ganharam. Afinidades...
21 novembro 2004
Voltando atrás: ontem quando chegámos as ruas estavam assustadoramente desertas. De vez em quando (aconteceu três vezes) ouvíamos as explosoes de alegria dentro das casas: golos contra os de Madrid. Perto da meia-noite as ruas estavam alagadas de gente a festejar. E quando eles gritam "Puta Espanha!" (cantando com a música do "Viva Espanha!") nao é a mesma coisa de quando os do Porto dizem que querem ver Lisboa a arder. Ao apanhar com isto logo na primeira noite percebe-se melhor o que é este país.
Gaudí, Picasso, Dalí:
Quando os artistas mudam a face de uma cidade, como Gaudí marcou esta, mudam a nossa vida: quem é o nosso Gaudí, o nosso Picasso, o nosso Dalí? Que artistas mudaram a nossa vida e a das nossas cidades? Assim também pecebemos melhor o que é o nosso país. Nao há como relativizar para percebermos a nossa verdadeira dimensao. A palidez...
Gaudí, Picasso, Dalí:
Quando os artistas mudam a face de uma cidade, como Gaudí marcou esta, mudam a nossa vida: quem é o nosso Gaudí, o nosso Picasso, o nosso Dalí? Que artistas mudaram a nossa vida e a das nossas cidades? Assim também pecebemos melhor o que é o nosso país. Nao há como relativizar para percebermos a nossa verdadeira dimensao. A palidez...
20 novembro 2004
Vi no espelho que estou pálido. Sentei-me aqui ao computador. Do outro lado da rua, através da janela, o amarelo da parede do Arsenal da Marinha está pálido. Esta luz empalidece-nos a todos. O país também está pálido, na palidez do Governo, das oposições, das pessoas nos comboios de manhã ou a trabalhar no campo, na palidez das casas de emigrantes com azulejos de fora como há por aí, ou na palidez do Palácio de Queluz, que também o há. O país deve ver-se ao longe quando se quer vê-lo melhor. Daqui a nada vamos para Barcelona, onde o espírito das cores dos artistas da cidade absorvem a nossa palidez. Boa viagem! Obrigado. Talvez fiquemos por lá, nunca se sabe o efeito que certas cidades têm sobre as pessoas.
(Aceitam-se parabéns à Carla nos comentários, a partir da meia noite, porque faz anos amanhã, dia 21)
2046
É um filme curioso, lento, longo. As memórias são lugares de onde nunca se regressa, como em 2046. Cada plano é quase um quadro que apetece guardar. E as personagens perdidas são todas gente desesperada como tanta gente. Wong-Kar-Wai, depois de Disponível para Amar, está mais amargo. Demasiado. Nem quando as pessoas se divertem estão felizes. Que assim não seja.
Vieira da Silva
Na respectiva fundação, os quadros da artista dispersos pelo mundo em colecções particulares ou de instituções. Vale a pena ver, porque não sabemos quando voltarão a juntar-se. Ontem flutuei pelos espaços profundos de alguns quadros, outras dimensões que nos levam por eles a dentro como poucos, num movimento perpétuo de absorção do vidente.
(Aceitam-se parabéns à Carla nos comentários, a partir da meia noite, porque faz anos amanhã, dia 21)
2046
É um filme curioso, lento, longo. As memórias são lugares de onde nunca se regressa, como em 2046. Cada plano é quase um quadro que apetece guardar. E as personagens perdidas são todas gente desesperada como tanta gente. Wong-Kar-Wai, depois de Disponível para Amar, está mais amargo. Demasiado. Nem quando as pessoas se divertem estão felizes. Que assim não seja.
Vieira da Silva
Na respectiva fundação, os quadros da artista dispersos pelo mundo em colecções particulares ou de instituções. Vale a pena ver, porque não sabemos quando voltarão a juntar-se. Ontem flutuei pelos espaços profundos de alguns quadros, outras dimensões que nos levam por eles a dentro como poucos, num movimento perpétuo de absorção do vidente.
18 novembro 2004
17 novembro 2004
16 novembro 2004
Regressámos às Vicentinas, onde já não íamos há mais de um ano. É como ir visitar umas tias-avós solteiras ou entrar numa estalagem de aldeia. As tias fazem um chá e um bolinho para agradecerem a nossa visita. São um misto de Miss Jane Marple e daquelas velhotas simpáticas de um filme de Capra com o mau hábito de envenenarem os convidados. E com uma divisão social do trabalho muito rígida: umas despejam o arsénico sobre o bolo de amêndoa e outras descobrem quem o colocou. Hoje à tarde só houve uma vítima, o bolo de chocolate, e eu sou o suspeito do costume.
(Nota: Para quem não sabe, as Vicentinas é uma casa de chá, gerida por uma instituição de beneficência, na Rua de São Bento, perto do Rato. Não contem a muita gente.)
(Nota: Para quem não sabe, as Vicentinas é uma casa de chá, gerida por uma instituição de beneficência, na Rua de São Bento, perto do Rato. Não contem a muita gente.)
14 novembro 2004
Não sei se só acontece comigo mas, quando estou ainda longe da paragem, olho para trás e vejo que se aproxima o autocarro, começo automaticamente a ouvir a música do «Momentos de Glória». Porém, como nunca estou vestido com os calções e a t-shirt brancos e os sapatos de corrida, como os do filme, é muito mais difícil bater recordes. Ainda assim, sou medalha de prata de 38 (Calvário – Quinta de Barros) e medalha de bronze de 15 (Algés – Praça da Figueira). Para além disso, há muitos anos que detenho o recorde (ex-aequo com o Mário Leite) dos 200 metros Rua de São Pedro – Estação do Algueirão, obtido num dia memorável em que estávamos atrasados para a primeira aula e tínhamos idade para correr tão rápido.
12 novembro 2004
O panfleto santanista ou a regra do contraditório
O Governo vai editar um livro com as fotos e os extraordinários avanços do país nos primeiros 100 dias de governação com o sr. Santana Lopes em S. Bento. Deixamos aqui uma ideia e não cobramos um tostão: já agora, se fizessem uma publicaçãozinha trimestral para os pategos da nação saberem de fonte segura que alguém está a cuidar deles sem a interferência desse ruído anti-sr. Santana que tanto o apoquenta? Ao fim de 100 dias e já tanto para nos dizer. Aleluia. Viva o contraditório! Viva o panfleto anti-marcelista! E um especial obrigado à central de comunicação do sr. Sarmento.
Post-scriptum (que em latim quer dizer para além do post): Eles falam, falam, falam... essa é que é essa, porque quanto ao fazer, quando se faz não é preciso apregoar aos berros o que se fez aos quatro ventos. O povo pode ser aparvalhado, mas é menos parvo do que se pensa.
Post-scriptum (que em latim quer dizer para além do post): Eles falam, falam, falam... essa é que é essa, porque quanto ao fazer, quando se faz não é preciso apregoar aos berros o que se fez aos quatro ventos. O povo pode ser aparvalhado, mas é menos parvo do que se pensa.
11 novembro 2004
Lembram-se de ter escrito aqui sobre a vaga de mulheres grávidas da minha geração. Agora, o período de gestação parece ter chegado ao fim. Nasceu o Miguel, o filho da Celita e do Nuno; o Francisco, o filho da Irene e do Ireneu; e o Tomás, o filho do José Rui Teixeira e da Ana. As boas-vindas para os três. O país não está grande coisa e o mundo um bocadinho pior, mas vamos tentar arrumar as coisas antes de terem aprendido a compreendê-las.
08 novembro 2004
A Avozinha América ou as diferenças genéticas entre a Europa e os EUA
Aquela mulher com mais de 70 anos era um retrato da América. Quando visitei o battleship USS Wisconsin, um navio de guerra fabuloso, da segunda guerra mundial (do Pacífico), que está ancorado em Norfolk, a velhota, que era um dos guias da visita, foi uma surpresa. Falava como um soldado ou um velho marinheiro antigamente embarcado naquele navio. Contava como os mísseis Tomahawk tinham sido ali instalados para a última missão operacional do navio durante a I Guerra do Golfo, na presença do Colin Powell, e onde tinham estado alojadas as ogivas com armamento químico - que, esclarece, graças a Deus, não foram usadas. Explicava como "our boys", os dela, tinham dado cabo dos japoneses na II Grande Guerra. Falava sempre num tom onde separava os bons dos maus com uma naturalidade impressionante. Não tinha, e pelo menos não demonstrava, grande piedade das vítimas dos ataques. Muito menos por iraquianos, por exemplo. Esclarecia que os longos canhões à proa não eram "canons", mas sim "guns", como se fosse um sargento-mor a corrigir recrutas, e descrevia-nos como eram as batalhas navais como se tivesse lá estado.
Quando nos afastámos dela, depois de nos ter falado da neta como se fosse uma doida que agora até andava a aprender japonês (vejam lá, a língua do inimigo), o meu colega alemão, jornalista do Merkur (um semanário nacional de grande tiragem na Alemanha), confessou-se impressionado com a naturalidade ou o orgulho com que a mulher falava da guerra e das armas. Lembrei-lhe que a avó dele, tal como as avozinhas europeias contemporâneas daquela avó americana, nunca poderiam ter um discurso igual porque as consequências das guerras na Europa não são apenas os corpos que chegam dentro dos sacos de plástico à pátria. A avozinha da América não sabe o que é ter a casa destruída em cada 20 anos; não sabe o que é ver a sua cidade completamente arrasada pelos raides aéreos do inimigo; nunca soube o que é ter a sua nação dividida pelas armas (a Guerra da sessessão, onde já vai?), nem conhece o ódio entre vizinhos, nem o medo de um inimigo a quem pode ver-se o rosto. Na Europa a guerra é ao pé de nós e ainda há memória. Ele, o alemão cujos avós conheceram o nazismo, concordou. Para a avó americana a guerra foi sempre lá longe, coisa de heróis.
É por estas e por outras, em coisas simples do quotidiano, que descobrimos que a América e a Europa são terras diferentes com outros códigos genéticos.
Quando nos afastámos dela, depois de nos ter falado da neta como se fosse uma doida que agora até andava a aprender japonês (vejam lá, a língua do inimigo), o meu colega alemão, jornalista do Merkur (um semanário nacional de grande tiragem na Alemanha), confessou-se impressionado com a naturalidade ou o orgulho com que a mulher falava da guerra e das armas. Lembrei-lhe que a avó dele, tal como as avozinhas europeias contemporâneas daquela avó americana, nunca poderiam ter um discurso igual porque as consequências das guerras na Europa não são apenas os corpos que chegam dentro dos sacos de plástico à pátria. A avozinha da América não sabe o que é ter a casa destruída em cada 20 anos; não sabe o que é ver a sua cidade completamente arrasada pelos raides aéreos do inimigo; nunca soube o que é ter a sua nação dividida pelas armas (a Guerra da sessessão, onde já vai?), nem conhece o ódio entre vizinhos, nem o medo de um inimigo a quem pode ver-se o rosto. Na Europa a guerra é ao pé de nós e ainda há memória. Ele, o alemão cujos avós conheceram o nazismo, concordou. Para a avó americana a guerra foi sempre lá longe, coisa de heróis.
É por estas e por outras, em coisas simples do quotidiano, que descobrimos que a América e a Europa são terras diferentes com outros códigos genéticos.
05 novembro 2004
Sempre encarei os hábitos como rituais de uma religião natural. O mesmo jornal comprado na mesma tabacaria, a mesma italiana em chávena escaldada com meio pacote de açúcar e um croquete pela manhã. Nesta matéria, tenho percebido que os grandes evangelizadores são os empregados de café. Hoje entrei na pastelaria onde ultimamente tenho bebido o primeiro café da manhã, sentei-me a uma mesa e, antes que tivesse tido tempo de fazer o meu pedido, apareceu uma chávena à minha frente. Não gosto de ser previsível. Para mim, a cena mais triste da história da literatura é, em «A Morte de Carlos Gardel» de Lobo Antunes, a do casal que, para além de morar em Benfica, todos os Domingos comia frango assado. Se tomo um café sempre todos os dias antes de apanhar o autocarro não é por hábito mas por absoluta necessidade. Para conseguir ler e não ir a dormir todo o caminho, a babar o vidro que se pode «quebrar em caso de emergência».
Para que a vida não se torne a repetição de um mesmo dia, tenho desenvolvido ao longo do tempo alguns truques. Utilizar uma diferente combinação de transportes públicos para chegar ao mesmo lugar, deixar de frequentar os sítios onde já me adivinham o pensamento. Há quem possa considerar este comportamento um pouco obsessivo, mas esses são provavelmente aqueles que gostam de ver surgir do nada a sua bica escaldada.
(Agora que acabaram as eleições americanas, é bom poder voltar finalmente a assuntos mais sérios.)
Para que a vida não se torne a repetição de um mesmo dia, tenho desenvolvido ao longo do tempo alguns truques. Utilizar uma diferente combinação de transportes públicos para chegar ao mesmo lugar, deixar de frequentar os sítios onde já me adivinham o pensamento. Há quem possa considerar este comportamento um pouco obsessivo, mas esses são provavelmente aqueles que gostam de ver surgir do nada a sua bica escaldada.
(Agora que acabaram as eleições americanas, é bom poder voltar finalmente a assuntos mais sérios.)
A nova força do filho de Bush
Bush teve mais oito milhões de votos do que na primeira eleição, mau prenúncio se pensarmos que ele ia corrigir os erros do primeiro mandato. Lembro-me do Paulo Portas que nas campanhas eleitorais pedia a peixeiras e lavradores: "Dêe-me força!". Ora os americanos deram força, muito mais força, a George W. Bush. Que motivos tem ele para achar que errou ou para sentir que deve mudar a sua forma de agir? Tivesse ele errado assim tanto, não teria merecido a confiança de tanta gente. É assim mesmo, a democracia encerra alguns perigos, como fazer de toda uma nação a cúmplice de um erro colossal. E com esta legitimidade acrescida, arricamo-nos, desta vez sim, a ver a verdadeira natureza de Bush filho. Ainda tenho algumas esperanças de estar enganado...
03 novembro 2004
A nova acuidade de W.
A propósito de vitória de Bush, Jorge Sampaio disse esperar que a experiência do primeiro mandato de W. desse ao segundo «uma nova acuidade».
a) Será que Sampaio queria dizer "um novo cuidado"?
b) Será que isto é uma reminiscência eanista? Eanes teria dito "cuidade", "a cuidade"", ou "acuidade"?
c) Ou seria uma forma subtil, à Sampaio, de dizer para ele, o Bush, "andar mas é com cuidado", porque anda uma data de pessoal a jurar-lhe pela pele?
d) Sampaio quis passar a ideia de que ele próprio no segundo mandato é um rapaz muito mais acuitado?
e) Isto era um sinal para o Governo porque no segundo mandato Sampaio vai acuitar Santana?
d) O que é que afinal Sampaio quis dizer com isto?
Segundo o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora:
Acuidade - acume; agudeza; finura; penetração; perspicácia; subtileza.
Acuitado - aflito, triste.
Acuitar - acoitar; afligir; apoquentar; entristecer.
a) Será que Sampaio queria dizer "um novo cuidado"?
b) Será que isto é uma reminiscência eanista? Eanes teria dito "cuidade", "a cuidade"", ou "acuidade"?
c) Ou seria uma forma subtil, à Sampaio, de dizer para ele, o Bush, "andar mas é com cuidado", porque anda uma data de pessoal a jurar-lhe pela pele?
d) Sampaio quis passar a ideia de que ele próprio no segundo mandato é um rapaz muito mais acuitado?
e) Isto era um sinal para o Governo porque no segundo mandato Sampaio vai acuitar Santana?
d) O que é que afinal Sampaio quis dizer com isto?
Segundo o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora:
Acuidade - acume; agudeza; finura; penetração; perspicácia; subtileza.
Acuitado - aflito, triste.
Acuitar - acoitar; afligir; apoquentar; entristecer.
W.
George W. Bush está prestes a anunciar a vitória nas eleições, para passar mais quatro anos nas nossas vidas. Definitivamente, que isto nos entre na cabeça: a América não é a Europa, os americanos não pensam como os europeus e Nova Iorque e a Calofórnia não representam aquilo que os Estados Unidos verdadeiramente são.
02 novembro 2004
ESPECIAL: ATRAVÉS DAS ELEIÇÕES AMERICANAS
Em quinze dias nos Estados Unidos podem ouvir-se muitas opiniões, mas o que mais me espantou, entre visitas ao Departamento de Estado, ao Pentágono, ao Congresso, ao Senado e a respeitados think-tanks, é que a Política Externa de Bush e de Kerry poderá não será radicalmente diferente. Este é um resumo muito ligeiro do que disseram algumas pessoas que ouvi, com um grupo que integrava.
Simon Serfaty : Eleições para os próximos 20 anos
Professor universitáro, analista político, foi durante mais de 10 anos director do Programa para Europa do Center for Strategic and International Studies (CSIS) (http://www.csis.org/)
Para Simon Serfaty, estas são “as eleições mais significativas desde 1948, em termos de implicações internacionais”. Nem Kerry nem Bush podem fugir das novas estratégias de segurança traçadas depois do 11 de Setembro, daí o professor considerar que “o que eles puserem em marcha vai definir o que será o mundo nos próximos 20 anos”.
Mas em que sentido é que podem prever-se essas mudanças? Serfaty diz que não está preocupado com “a transição de Bush para Kerry”, mas sim com a transição de “Bush para Bush”. E porquê? Porque “Bush é um homem de convicções, ele sente as coisas, não as explica ou compreende”. É o homem que respondeu a um jornalista que o seu filósofo preferido era Jesus Cristo, mas não se deu ao trabalho de dizer porquê, alegando que o outro não compreenderia. “Ele diz ‘I feel’ e não ‘I think’”. Para o analista do CSIS, a personalidade do indivíduo que se senta na Sala Oval pode fazer toda a diferença. “Kerry vai querer ir ao encontro dos europeus e reabrir o diálogo”. Mas a sua política dependerá das respostas que obtiver.
The Atlantic Council: Política externa europeia está à espera do resultado das eleições
Neste think-tank que se diz independente, mas onde estava um cartaz de apoio a Kerry, uma das altas responsáveis resumiu muito bem qual a sensação que se tem em Washington em relação aos governos europeus: “Aqui sente-se que os europeus estão à espera do resultado das eleições para avançarem na sua política externa. Isso é muito mau se Bush ganhar”. E ainda foi mais concreta: “Tenho avisado os nossos amigos a não esperarem grandes mudanças na nossa política externa. Não esperem mudanças fundamentais com uma alteração de administração. Esperar isso seria esperar em vão”. A diferença seria a seguinte: “Kerry pode ser mais activo a abordar o conflito israelo-palestiniano. Mas na questão multilateral isso depende de como os parceiros europeus reagirem. As administrações querem é eficácia”.
John Huslman, Heritage Foundation : Simpatia não é tudo
Para este republicano da fundação conservadora da escola realista (e não neoconservadora), o caso do Irão pode vir a ser o paradigma de uma alteração na Política Externa norte-americana. “Todos achamos que é útil encontrar uma solução diplomática. Todos temos medo que os israelitas tomem a situação nas suas mãos”. Os americanos estão muito preocupados com isto e Kerry não se cansou de o dizer na campanha.
Huslman diz que “Kerry começará por ir à Europa dizer que tudo se trata de uma questão de estilo”, mas o analista também entende que “não é esse o problema”. E concretiza: “Há pessoas da entourage de Kerry que acham que os países europeus não vão dar mais tropas [para o Iraque e o Afeganistão] só porque ele irá à Europa falar com os líderes de uma forma mais simpática”. No caso de haver um segundo mandato de Bush, “o tempo definidor será entre Janeiro e Fevereiro [com as eleições no Iraque]. No Partido Republicano haverá uma guerra civil entre realistas – que é a visão tradicional – e neoconservadores. Se Bush perder as eleições, os neocon serão os culpados”, considera.
As diferenças entre os dois candidatos serão mais de estilo, segundo Huslman. No caso do Irão, por exemplo, “Kerry terá maior capacidade para se coordenar com os três da União Europeia [Alemanha, França e Reino Unido] nos primeiros quatro meses. Se Bush disser que vai atacar, todos sabem que será assim”.
Congresista Robert Wexler, democrata, da Flórida: "A fresh new start"
Pertence ao sub-comité para a Europa
Claro que agora é contra a intervenção no Iraque, destacando a ida para a guerra com base em falsas premissas, mas tal como Kerry votou a favor. “A pessoas como eu, que não alinham com Bush, colocou-se a questão: vamos votar por Bush ou por Chirac?” Embora seja um democrata do tal Estado, a Flórida, concorda que as maiores diferenças entre Kerry e Bush “são uma questão de grau”. É o que se deduz também destas palavras: “Talvez o melhor fosse mudar de administração e ter mais credibilidade. A União Europeia tem um papel a desempenhar. Mas se a Europa não for séria, apenas os EUA podem actuar”. No caso concreto do Irão, Wexler concretizou melhor a sua opinião: “A Europa ainda parece incapaz em termos de vontade política, para dar os próximos passos, o que me leva a pensar que se a União Europeia não actuar, serão os EUA a ter de agir”. Ora que diferenças temos aqui para os maiores falcões da administração Bush? “Com Kerry seria diferente porque toda a abordagem da sua administração seria muito mais multilateral. Bush não tem credibilidade e com Kerry teríamos um ‘fresh new start’”.
No entanto, quando se fala da reconstrução do Iraque, ele responde aquilo que os seus eleitores gostariam de ouvir: “Estou é preocupado com a reconstrução da Flórida, não com o Iraque”. (A conversa tinha-se passado poucos dias depois dos furacões terem devastado o seu estado).
Senador Richard Lugar, presidente do Foreign Relations Committee
Richard Lugar falou ao grupo na sala da comissão de Senado que durante anos partilhou com o senador John Kerry. Portanto, apesar de ser republicano, diz conhecer bem o candidato democrata: “Kerry é muito como Bush. Ainda são as mesmas pessoas que o aconselham e eu conheço-as muito bem”.
Simon Serfaty : Eleições para os próximos 20 anos
Professor universitáro, analista político, foi durante mais de 10 anos director do Programa para Europa do Center for Strategic and International Studies (CSIS) (http://www.csis.org/)
Para Simon Serfaty, estas são “as eleições mais significativas desde 1948, em termos de implicações internacionais”. Nem Kerry nem Bush podem fugir das novas estratégias de segurança traçadas depois do 11 de Setembro, daí o professor considerar que “o que eles puserem em marcha vai definir o que será o mundo nos próximos 20 anos”.
Mas em que sentido é que podem prever-se essas mudanças? Serfaty diz que não está preocupado com “a transição de Bush para Kerry”, mas sim com a transição de “Bush para Bush”. E porquê? Porque “Bush é um homem de convicções, ele sente as coisas, não as explica ou compreende”. É o homem que respondeu a um jornalista que o seu filósofo preferido era Jesus Cristo, mas não se deu ao trabalho de dizer porquê, alegando que o outro não compreenderia. “Ele diz ‘I feel’ e não ‘I think’”. Para o analista do CSIS, a personalidade do indivíduo que se senta na Sala Oval pode fazer toda a diferença. “Kerry vai querer ir ao encontro dos europeus e reabrir o diálogo”. Mas a sua política dependerá das respostas que obtiver.
The Atlantic Council: Política externa europeia está à espera do resultado das eleições
Neste think-tank que se diz independente, mas onde estava um cartaz de apoio a Kerry, uma das altas responsáveis resumiu muito bem qual a sensação que se tem em Washington em relação aos governos europeus: “Aqui sente-se que os europeus estão à espera do resultado das eleições para avançarem na sua política externa. Isso é muito mau se Bush ganhar”. E ainda foi mais concreta: “Tenho avisado os nossos amigos a não esperarem grandes mudanças na nossa política externa. Não esperem mudanças fundamentais com uma alteração de administração. Esperar isso seria esperar em vão”. A diferença seria a seguinte: “Kerry pode ser mais activo a abordar o conflito israelo-palestiniano. Mas na questão multilateral isso depende de como os parceiros europeus reagirem. As administrações querem é eficácia”.
John Huslman, Heritage Foundation : Simpatia não é tudo
Para este republicano da fundação conservadora da escola realista (e não neoconservadora), o caso do Irão pode vir a ser o paradigma de uma alteração na Política Externa norte-americana. “Todos achamos que é útil encontrar uma solução diplomática. Todos temos medo que os israelitas tomem a situação nas suas mãos”. Os americanos estão muito preocupados com isto e Kerry não se cansou de o dizer na campanha.
Huslman diz que “Kerry começará por ir à Europa dizer que tudo se trata de uma questão de estilo”, mas o analista também entende que “não é esse o problema”. E concretiza: “Há pessoas da entourage de Kerry que acham que os países europeus não vão dar mais tropas [para o Iraque e o Afeganistão] só porque ele irá à Europa falar com os líderes de uma forma mais simpática”. No caso de haver um segundo mandato de Bush, “o tempo definidor será entre Janeiro e Fevereiro [com as eleições no Iraque]. No Partido Republicano haverá uma guerra civil entre realistas – que é a visão tradicional – e neoconservadores. Se Bush perder as eleições, os neocon serão os culpados”, considera.
As diferenças entre os dois candidatos serão mais de estilo, segundo Huslman. No caso do Irão, por exemplo, “Kerry terá maior capacidade para se coordenar com os três da União Europeia [Alemanha, França e Reino Unido] nos primeiros quatro meses. Se Bush disser que vai atacar, todos sabem que será assim”.
Congresista Robert Wexler, democrata, da Flórida: "A fresh new start"
Pertence ao sub-comité para a Europa
Claro que agora é contra a intervenção no Iraque, destacando a ida para a guerra com base em falsas premissas, mas tal como Kerry votou a favor. “A pessoas como eu, que não alinham com Bush, colocou-se a questão: vamos votar por Bush ou por Chirac?” Embora seja um democrata do tal Estado, a Flórida, concorda que as maiores diferenças entre Kerry e Bush “são uma questão de grau”. É o que se deduz também destas palavras: “Talvez o melhor fosse mudar de administração e ter mais credibilidade. A União Europeia tem um papel a desempenhar. Mas se a Europa não for séria, apenas os EUA podem actuar”. No caso concreto do Irão, Wexler concretizou melhor a sua opinião: “A Europa ainda parece incapaz em termos de vontade política, para dar os próximos passos, o que me leva a pensar que se a União Europeia não actuar, serão os EUA a ter de agir”. Ora que diferenças temos aqui para os maiores falcões da administração Bush? “Com Kerry seria diferente porque toda a abordagem da sua administração seria muito mais multilateral. Bush não tem credibilidade e com Kerry teríamos um ‘fresh new start’”.
No entanto, quando se fala da reconstrução do Iraque, ele responde aquilo que os seus eleitores gostariam de ouvir: “Estou é preocupado com a reconstrução da Flórida, não com o Iraque”. (A conversa tinha-se passado poucos dias depois dos furacões terem devastado o seu estado).
Senador Richard Lugar, presidente do Foreign Relations Committee
Richard Lugar falou ao grupo na sala da comissão de Senado que durante anos partilhou com o senador John Kerry. Portanto, apesar de ser republicano, diz conhecer bem o candidato democrata: “Kerry é muito como Bush. Ainda são as mesmas pessoas que o aconselham e eu conheço-as muito bem”.
É preciso retribuir tanto o bem como o mal: mas porque há-de ser precisamente à pessoa que nos fez bem ou mal? (Nietzsche, Para Além de Bem e Mal)
Um estudo divulgado há alguns dias estima que poderão ter morrido cerca de cem mil civis iraquianos desde o início da ocupação americana. Os números, sobre ou subavaliados, recordaram-me mais este aforismo moralmente errado (na vertente de retribuição do mal, obviamente).
Um estudo divulgado há alguns dias estima que poderão ter morrido cerca de cem mil civis iraquianos desde o início da ocupação americana. Os números, sobre ou subavaliados, recordaram-me mais este aforismo moralmente errado (na vertente de retribuição do mal, obviamente).
31 outubro 2004
A propósito de roedores
Num tempo de metáforas os escritores têm de ter muito cuidado com as palavras. Na montra de uma loja de Campo de Ourique está exposto o livro infantil «A Ratinha Vaidosa» (Rua Tomás da Anunciação, perto do Jardim da Parada). O esforço de suavização do diminutivo é logo frustrado pela escolha do adjectivo. Não o comprei, por isso não sei se será uma tentativa de actualização de um conto clássico de uma perspectiva mais feminina (estilo «A Ratinha do Campo e a Ratinha da Cidade»). Ficou-me apenas a sugestão de uma história com piercings e shavings totais.
30 outubro 2004
O pára-ratos
O velhote da loja de sementes hortícolas do Cais do Sodré pôs a ratoeira metálica em cima da mesa. "Isto tem uma força parva, quer ver?", explicou-me, enquanto armava a armadilha. Depois tocou-lhe com uma caneta e, numa fracção se segundo, a Bic azul ficou desfeita em mil pedaços espalhados pelo estabelecimento. "Até corta ratazanas ao meio", disse, e fez um gesto com a mão. Pensei no rato decepado em duas partes, a sangrar no meu quarto de vestir, e não gostei. "Mas tem aqui este produto, talvez seja melhor". E trouxe uma caixinha amarela com este dizer: "Pára-ratos". Um pântano movível, uma cola que se espalha numa folhiha de papel em volta de um isco de queijo, onde eles ficam presos: eh-eh, apanhá-lo vivo...
(Ladies and gentlemen, we got him! Ainda não tinha acabado de postar este post, e aparece a Carla aos gritos: "O bicho está ali preso a mexer-se!" Sim, o nosso prisioneiro, vivinho da Silva, imediatamente sepultado no lixo em lenta agonia, prensado entre duas folhas de papel cheias de cola e cinco pedaços de queijo. Paz à sua alma.)
(Ladies and gentlemen, we got him! Ainda não tinha acabado de postar este post, e aparece a Carla aos gritos: "O bicho está ali preso a mexer-se!" Sim, o nosso prisioneiro, vivinho da Silva, imediatamente sepultado no lixo em lenta agonia, prensado entre duas folhas de papel cheias de cola e cinco pedaços de queijo. Paz à sua alma.)
Guerra doméstica assimétrica
Caganitas no ombro esquerdo do meu fato claro de linho, o meu preferido, e que me dá assim um ar de gangster cubano dos anos 30. Agora sim, estou irritado. E ainda teve o desplante, o despudor, de assustar a empregada ao passear-se pendurado nas minhas camisas dentro do armário. Ainda por cima, este rato é acrobata. Volta e meia entro no quarto de vestir empunhando a minha esfregona mortal, mas não tenho tido sorte. O gajo é esperto. Já me fareja à distância. Deve ter percebido que lhe matei o amigo esmagado à esfregonada.
Ontem fomos às grandes superfícies à procura de armamento letal, mas sem sucesso. Só havia armas químicas, de destruição maciça, ou seja, todo o tipo de venenos imagináveis, mas nós queremos armas de alta precisão. Por isso agora vou sair para comprar nem que seja uma daquelas velhas ratoeiras. Tinha mais esperança na tecnologia: um amigo falou-nos nuns aparelhos que emitem ultra-sons, que afugentam os ratos, mas os nossos não têm para onde fugir; era vê-los às cabeçadas contra as paredes. Não, prefiro uma coisa artesanal, antiga e eficaz. Uma velha ratoeira com queijo da serra, ou irresistíveis queijos "cholé" de Niza ou Castelo Branco. Isso é que vai ser. Se não resultar, duvido que a Carla aceite o emprego da arma biológica anti-rato mais letal do mundo: o gato. Estou a desesperar nesta guerra assimétrica.
Ontem fomos às grandes superfícies à procura de armamento letal, mas sem sucesso. Só havia armas químicas, de destruição maciça, ou seja, todo o tipo de venenos imagináveis, mas nós queremos armas de alta precisão. Por isso agora vou sair para comprar nem que seja uma daquelas velhas ratoeiras. Tinha mais esperança na tecnologia: um amigo falou-nos nuns aparelhos que emitem ultra-sons, que afugentam os ratos, mas os nossos não têm para onde fugir; era vê-los às cabeçadas contra as paredes. Não, prefiro uma coisa artesanal, antiga e eficaz. Uma velha ratoeira com queijo da serra, ou irresistíveis queijos "cholé" de Niza ou Castelo Branco. Isso é que vai ser. Se não resultar, duvido que a Carla aceite o emprego da arma biológica anti-rato mais letal do mundo: o gato. Estou a desesperar nesta guerra assimétrica.
29 outubro 2004
"Tons alaranjados invaem o céu...
... num eclipse lunar"
É este o título de uma foto-legenda do Diário de Notícias de hoje. Segue o texto:
"A lua desapareceu por completo na madrugada de quinta-feira. A noite tornou-se escura e envolveu a Europa, a África e a América, num eclipse total. O círculo lunar criou um verdadeiro espectáculo cor-de-laranja. Os portugueses que perderam este fenómeno, devido à nebulosidade só terão oportunidade de o voltar a observar em 2007".
Ora, em Portugal, podemos assistir todos os dias a um espectáculo laranja, da laranja ou do circo montado no laranjal. Devido à nebulosidade, porque as nuvens que pairam são negras e a opacidade é muita, os portugueses vão perdendo a oportunidade de ver alguns fenómenos destes, mas muitos laranjas fazem questão de furar o nevoeiro para se eclipsarem a si mesmos em público. Depois isso dá-nos sempre para a galhofa, naquela fase que antecede a outra, em que começamos a chorar. E quanto ao fenómeno de 2007, talvez o espectáculo aí seja cor-de-rosa sem que a neblina se tenha dissipado.
Mas há muito séculos, neste País, enquanto há nevoeiro há esperança...
É este o título de uma foto-legenda do Diário de Notícias de hoje. Segue o texto:
"A lua desapareceu por completo na madrugada de quinta-feira. A noite tornou-se escura e envolveu a Europa, a África e a América, num eclipse total. O círculo lunar criou um verdadeiro espectáculo cor-de-laranja. Os portugueses que perderam este fenómeno, devido à nebulosidade só terão oportunidade de o voltar a observar em 2007".
Ora, em Portugal, podemos assistir todos os dias a um espectáculo laranja, da laranja ou do circo montado no laranjal. Devido à nebulosidade, porque as nuvens que pairam são negras e a opacidade é muita, os portugueses vão perdendo a oportunidade de ver alguns fenómenos destes, mas muitos laranjas fazem questão de furar o nevoeiro para se eclipsarem a si mesmos em público. Depois isso dá-nos sempre para a galhofa, naquela fase que antecede a outra, em que começamos a chorar. E quanto ao fenómeno de 2007, talvez o espectáculo aí seja cor-de-rosa sem que a neblina se tenha dissipado.
Mas há muito séculos, neste País, enquanto há nevoeiro há esperança...
28 outubro 2004
Sem comentários
It was dark now, and as we dipper under a little bridge I put my arm around Jordan's golden shoulder and drew her toward me and asked her to dinner. Suddenly I wasn´t thinking of Daisy and Gatsby any more, but of this clean, hard, limited person, who dealt in universal scepticism, and who leaned back jauntily just within the circle of my arm. A phrase began to beat in my ears with a sort of heady excitement: 'There are only the pursued, the pursuing, the busy, and the tired.' (F. Scott Fitzgerald, The Great Gatsby)
27 outubro 2004
As desvantagens do contraditório
A sua gestão do silêncio foi exímia. Agora Marcelo falou. E fez uso do contraditório na AACS. Chamou mentiroso a Pais do Amaral. Acusou-o de o ter pressionado. Disse que o presidente da TVI lhe confessara estar disposto a abdicar da liberdade informativa da televisão, porque uma TV não pode andar sempre a dizer mal do Governo. A democracia está doente. Mas também nunca teve grande saúde. A coisa está feia, mas agora é que vai ser bonito.
O Espelho do ano vai para...
Champanhe, recarrecas e confettis! A Rua da Judiaria faz hoje um ano. É um dos melhores blogues escritos em português, embora seja produzido na Califórnia. Parabéns, Nuno, pelo teu trabalho (porque o que produzes dá trabalho), e por teres criado mais do que um simples blogue, uma publicação digital de referência.
Aliás, é obrigatório ler um dos últimos posts do Nuno Guerreiro, que é judeu, sobre a tão propalada cabala, as origens da palavra e os significados que ganhou ao longo dos tempos. "A palavra cabala é um dos vocábulos da língua portuguesa onde a linguística e a filologia se intersectam com o fanatismo histórico e a intolerância. E com o antisemitismo institucional que durante séculos vigorou em Portugal graças à Inquisição".
Aliás, é obrigatório ler um dos últimos posts do Nuno Guerreiro, que é judeu, sobre a tão propalada cabala, as origens da palavra e os significados que ganhou ao longo dos tempos. "A palavra cabala é um dos vocábulos da língua portuguesa onde a linguística e a filologia se intersectam com o fanatismo histórico e a intolerância. E com o antisemitismo institucional que durante séculos vigorou em Portugal graças à Inquisição".
26 outubro 2004
A prova que faltava...
A Alta Autoridade para a Comunicação Social que se prepare para agir de novo antes de ser definitivamente extinta. Este título de um texto da Agência Lusa prova como o Governo controla com rédea curta os media do Estado: "Astronomia: Eclipse da Lua na quinta-feira, um espectáculo cor-de-laranja".
Convoque-se a lua, o sol, o astrónomo e Luís Delgado para depôr.
Convoque-se a lua, o sol, o astrónomo e Luís Delgado para depôr.
No espaço político o que interessa são as ideias e não a origem das ideias. É irrelevante se se fundam na religião, na ideologia ou na razão pura. O problema com a nomeação de Rocco Buttiglione para comissário da Justiça, Liberdade e Segurança não é a base católica das suas ideias acerca da homossexualidade e do papel da mulher na sociedade, mas as ideias em si mesmas. Se fosse proposto para comissário da agricultura, nenhum eurodeputado se lembraria de lhe perguntar as suas opiniões sobre esses assuntos. Mas, nessa pasta, espera-se que promova medidas relacionadas, por exemplo, com a igualdade de oportunidades entre os sexos no acesso ao emprego e a não discriminação com base na orientação sexual. Buttiglione está provavelmente a ser sincero quando afirma aceitar a distinção entre as leis da religião e as leis dos estados, que não é favorável à criminalização do pecado. Mas não será provavelmente também o promotor mais enérgico daquelas medidas. Não é obrigatório que os grupos políticos do Parlamento Europeu rejeitem o nome do comissário; não me parece que haja motivo para indignação e acusações de perseguição que coloquem a hipótese de o fazer. As ideias não podem ser rejeitadas por terem uma base religiosa; não podem ser aceites simplesmente por a terem.
Qual esquerda, que direita?
Voltemos de novo aos usos da dicotomia esquerda/direita. O uso que identifiquei como filosófico é mais propriamente assente num modo antropológico diferente de distinguir duas visões do homem: uma, a da bondade original, pervertida pela sociedade, ou seja, um optimismo antropológico; outra, a ideia de que a natureza selvagem do homem implica instituições assentes na ordem e na autoridade que o moderem nos seus instintos primários como condição para haver sociedade, ou seja, um pessimismo antropológico.
Pacheco Pereira, Público, 21/10/2004
Apesar de esta ser uma das distinções mais básicas entre esquerda e direita, a dicotomia tendo como ponto de partida o pessimismo/optimismo antropológico faz-me sempre sentir uma contradição. Sou assumidamente um pessimista antropológico, não penso que o homem seja naturalmente bom, antes pelo contrário, acho que transporta naturalmente os males que vemos todos os dias, e considero-me, ao mesmo tempo, de esquerda. Devo consultar um psicólogo? Talvez um politólogo? Não. O mundo é cada vez mais complexo, e as escolhas menos baseadas neste radicalismo (no sentido de raiz). Se a História ainda não acabou, pelo menos as fronteiras estão muito esbatidas para o Último Homem.
Pacheco Pereira, Público, 21/10/2004
Apesar de esta ser uma das distinções mais básicas entre esquerda e direita, a dicotomia tendo como ponto de partida o pessimismo/optimismo antropológico faz-me sempre sentir uma contradição. Sou assumidamente um pessimista antropológico, não penso que o homem seja naturalmente bom, antes pelo contrário, acho que transporta naturalmente os males que vemos todos os dias, e considero-me, ao mesmo tempo, de esquerda. Devo consultar um psicólogo? Talvez um politólogo? Não. O mundo é cada vez mais complexo, e as escolhas menos baseadas neste radicalismo (no sentido de raiz). Se a História ainda não acabou, pelo menos as fronteiras estão muito esbatidas para o Último Homem.
25 outubro 2004
E já não só parece: é mesmo!
"Recusei o convite, até por não acreditar que a Lusomundo Media e a Global Notícias estivessem dispostas a reunir as condições necessárias para voltar a fazer do Diário de Notícias um diário de referência, isenção e aceitação pública", disse hoje Clara Ferreira Alves em comunicado. Está tudo dito. E depois disto, senhoras e senhores, quem será o molusco que nestas circunstâncias aceitará o lugar?
O que parece é
Foi uma "fonte governamental", e não uma fonte da empresa, que confirmou ao Expresso o nome de Clara Ferreira Alves na direcção do Diário de Notícias. Sendo que se trata de uma empresa de capitais maioritariamente privados (a Global Notícias, do Grupo PT, apesar do Estado ter uma golden share), está tudo dito quanto ao controlo governamental da comunicação social. Nem há pudor em fazer parecer o que não é. Ao menos assim sabemos com o que contar.
23 outubro 2004
Se a vida nos vive, ou "Antes do Anoitecer"
Sim, Antes do Anoitecer é um belo filme no sentido da palavra que significa beleza. Acabámos de chegar do cinema e isto ainda está quente. Não falo da natural perfeição dos diálogos porque o Tiago a descreveu da melhor maneira uns posts atrás. Mas dos caminhos da vida: um desencontro pode mudar-nos as vidas para sempre, ou um encontro pode fazê-las diferentes o resto do tempo. O que o filme trata de forma fina é isso mesmo, os elos que se não ligaram e os que se fecharam dadas as contingências da vida. Tudo o que é acidental é demasiado importante para ser considerado um acaso. Não acredito no destino. Creio no aproveitamento das oportunidades. É sobre isso que este filme nos faz pensar: se passamos ao lado das nossas vidas, ou se as vivemos por dentro delas, pelos destinos que segurámos. Há dois tipos de atitudes, em que as pessoas vão oscilando: quando deixamos que a vida nos viva, ou quando vivemos o que impomos aos próprios acasos. Eu cá prefiro a segunda forma de estar, embora nem sempre isso seja fácil ou exequível. O filme foca-se demasiado na primeira.
E este final diz bem mais sobre cínicos e românticos do que o primeiro final em Viena.
E este final diz bem mais sobre cínicos e românticos do que o primeiro final em Viena.
- Já pensaste na vida pateta que levas? - disse-me o rato tranquilamente, quando me viu com a esfregona na mão, prestes a esmagá-lo. E atingiu-me no coração, aquela insignificância.
- Matas-me, pois, porque tenho este tamanho. Fosse eu da talha de um gato tu é que fugias, ó cobarde, pobre espécie de homem - e atingiu-me outra vez.
Pousei a esfregona e disse-lhe "cheiras mal", e "sim, levo uma vida de pateta", quase toda a gente leva. "Mas tu também não és do tamanho de um gato. As coisas são como são". Só então o esmaguei com a esfregona. E decidi mudar de vida.
- Matas-me, pois, porque tenho este tamanho. Fosse eu da talha de um gato tu é que fugias, ó cobarde, pobre espécie de homem - e atingiu-me outra vez.
Pousei a esfregona e disse-lhe "cheiras mal", e "sim, levo uma vida de pateta", quase toda a gente leva. "Mas tu também não és do tamanho de um gato. As coisas são como são". Só então o esmaguei com a esfregona. E decidi mudar de vida.
A evolução das espécies
Acabei de me cruzar com o outro rato [há dois posts atrás, descrevi um raticídio]. Seria o par do outro, ou isto já é uma colónia? Desta vez, depois de fugir para debaixo do frigorífico, ao ver que eu tinha pegado na esfregona assassina, meteu-se num lugar impossível por detrás da máquina de secar. Este aprendeu com os erros do outro. Primeira lição: nunca se mata um rato sem a certeza de que nenhum outro está a olhar. Alguém, por aí, me empresta um gato? O lexotan tinha deixado uma mensagem no outro post a dizer que tinha um...
22 outubro 2004
Exercícios de abstracção
O novo sistema de acesso do metropolitano de Lisboa presta-se a diferentes metáforas. Ontem lembrou-me as corridas de galgos que só vi em filmes. As portas abrem-se e os cães lançam-se em perseguição da lebre mecânica. Fiquei desorientado. Quando passo já o animal se distanciou e não sei por onde ir; corro apesar de não ter pressa de chegar a lado nenhum.
E já experimentaram, nas escadas rolantes que descem até à estação do Rato, colocar os pés lado a lado, dobrar ligeiramente os joelhos e movendo os braços fingir que estão a esquiar? A Joana já. A reacção dos que, em direcção contrária, perseguiam a sua lebre mecânica até à luz do dia foi bastante favorável.
E já experimentaram, nas escadas rolantes que descem até à estação do Rato, colocar os pés lado a lado, dobrar ligeiramente os joelhos e movendo os braços fingir que estão a esquiar? A Joana já. A reacção dos que, em direcção contrária, perseguiam a sua lebre mecânica até à luz do dia foi bastante favorável.
Kerry igual a Bush: a lavagem cerebral que me fizeram
Durante uma semana em Washington, think-tankers, um senador republicano e um congressista democrata, assim como membros da administração (estes é que não é de estranhar), tentaram convencer-nos (a mim e a outros camaradas de profissão) de que, apesar de toda a retórica, a política externa de Kerry não será muito diferente da de Bush, caso vença as eleições no dia 2 de Novembro.
No fim de contas saí de lá quase convencido, porque estes argumentos não são irrealistas:
a) No início do mandato, Kerry fará uma viagem aos países da velha Europa para recompor as antigas amizades;
b) Mas esperará que os aliados, em troca pela simpatia, disponibilizem umas tropas para o Afeganistão e para o Iraque (sobretudo para o Iraque), de modo a aliviar o contingente norte-americano;
c) Os europeus hão-de sorrir ao lado de Kerry, mas tropas é que não. A maioria dos políticos não gosta de pôr a cabeça no cepo por causa de meras simpatias (e Kerry é bem mais simpático do que Bush); depois há um défice para cumprir porque Bruxelas está vigilante e militares no estrangeiros são caros. Mais: cada soldado europeu morto tem mais custos políticos do que um americano. E se a Europa mandar tropas não serão as suficientes.
d) Se ao fim de três ou quatro meses Kerry não tiver respostas satisfatórias de países como Alemanha, França e Espanha, regressará ao orgulhosamente sós;
e) O sr. Chirac deve estar a torcer para o sr. Dabliú continuar onde está, que é para não ter de mover uma palha;
f) John Kerry nunca afastou a possibilidade de poder fazer ataques preventivos;
g) O democrata farta-se de falar no Irão e das armas nucleares. Se se concluir que o Irão as possui e os europeus não se chegarem à frente, então corremos o risco de ter uma nova situação como o Iraque (dizem eles que é preferível serem os EUA a intervir, para prevenir qualquer acção de Israel que incendiaria a região);
h) É preciso não esquecer que o trauma do 11 de Setembro ainda está fresco na cabeça dos americanos;
i) Todas as acções de Kerry seriam embrulhadas num papel mais multilateral do que as de Bush, mas os resultados não seriam diferentes, caso as organizações internacionais não dessem o aval às intenções norte-americanas.
Apesar de este ser um cenário possível, era preferível que não fosse assim.
No fim de contas saí de lá quase convencido, porque estes argumentos não são irrealistas:
a) No início do mandato, Kerry fará uma viagem aos países da velha Europa para recompor as antigas amizades;
b) Mas esperará que os aliados, em troca pela simpatia, disponibilizem umas tropas para o Afeganistão e para o Iraque (sobretudo para o Iraque), de modo a aliviar o contingente norte-americano;
c) Os europeus hão-de sorrir ao lado de Kerry, mas tropas é que não. A maioria dos políticos não gosta de pôr a cabeça no cepo por causa de meras simpatias (e Kerry é bem mais simpático do que Bush); depois há um défice para cumprir porque Bruxelas está vigilante e militares no estrangeiros são caros. Mais: cada soldado europeu morto tem mais custos políticos do que um americano. E se a Europa mandar tropas não serão as suficientes.
d) Se ao fim de três ou quatro meses Kerry não tiver respostas satisfatórias de países como Alemanha, França e Espanha, regressará ao orgulhosamente sós;
e) O sr. Chirac deve estar a torcer para o sr. Dabliú continuar onde está, que é para não ter de mover uma palha;
f) John Kerry nunca afastou a possibilidade de poder fazer ataques preventivos;
g) O democrata farta-se de falar no Irão e das armas nucleares. Se se concluir que o Irão as possui e os europeus não se chegarem à frente, então corremos o risco de ter uma nova situação como o Iraque (dizem eles que é preferível serem os EUA a intervir, para prevenir qualquer acção de Israel que incendiaria a região);
h) É preciso não esquecer que o trauma do 11 de Setembro ainda está fresco na cabeça dos americanos;
i) Todas as acções de Kerry seriam embrulhadas num papel mais multilateral do que as de Bush, mas os resultados não seriam diferentes, caso as organizações internacionais não dessem o aval às intenções norte-americanas.
Apesar de este ser um cenário possível, era preferível que não fosse assim.
21 outubro 2004
Raticídio pela manhã
A primeira coisa que fiz hoje, quando me levantei, foi matar um rato. Não é que não goste de ratos, ou que tenha, pelo contrário, ficado com um peso na consciência, mas é uma acção desagradável de se fazer logo pela manhã. Ver um bicho escuro a fugir, a meter-se debaixo do frigorífico, pegar na vassoura, procurá-lo, causar-lhe o pânico e depois esmagá-lo não é a melhor maneira de começar um dia de folga. À primeira, ficou mal esmagado, continuou a tentar fugir, já meio coxo (ou estaria a fingir que estava coxo, para eu o deixar escapar?) e aí peguei na esfregona. É um utensílio mais eficaz.
As barbas da vassoura devem picar suficientemente a carne de qualquer pequeno mamífero, mas uma esfregona molhada é mais compacta, deve ser como chumbo, e o facto de estar ensopada ajuda a uma sufocação mais conveniente. Seria uma morte piedosa. Mas não. Calquei-o bem calcado, mas a cauda nunca deixou de abanar, não de felicidade, talvez como que dizendo - "Ainda estou vivo, despacha-te, não sabes matar depressa, vá!..." Pelo menos não chiava como a osga que matei, ainda vivia na outra casa.
Quando levantei a esfregona, o pequeno, muito pequeno, peludo cinzento, contorcia-se um pouco, manchando o chão com uma ligeira nódoa sanguínea. Não levei a minha tarefa até ao fim. Tirei dois papéis de rolo branco de cozinha e preparei-lhe uma mortalha alva na qual o embrulhei antes de o deitar para o lixo e fechar o saco. Nojo.
Durante o processo de extermínio, a Carla estava na casa-de-banho. Estava e continuará na ignorância, pelo menos até ler este post. Até lá não se preocupa com isto. Dizem que basta matar-se o primeiro. Alguém precisa de uma desratização aí em casa?
As barbas da vassoura devem picar suficientemente a carne de qualquer pequeno mamífero, mas uma esfregona molhada é mais compacta, deve ser como chumbo, e o facto de estar ensopada ajuda a uma sufocação mais conveniente. Seria uma morte piedosa. Mas não. Calquei-o bem calcado, mas a cauda nunca deixou de abanar, não de felicidade, talvez como que dizendo - "Ainda estou vivo, despacha-te, não sabes matar depressa, vá!..." Pelo menos não chiava como a osga que matei, ainda vivia na outra casa.
Quando levantei a esfregona, o pequeno, muito pequeno, peludo cinzento, contorcia-se um pouco, manchando o chão com uma ligeira nódoa sanguínea. Não levei a minha tarefa até ao fim. Tirei dois papéis de rolo branco de cozinha e preparei-lhe uma mortalha alva na qual o embrulhei antes de o deitar para o lixo e fechar o saco. Nojo.
Durante o processo de extermínio, a Carla estava na casa-de-banho. Estava e continuará na ignorância, pelo menos até ler este post. Até lá não se preocupa com isto. Dizem que basta matar-se o primeiro. Alguém precisa de uma desratização aí em casa?
20 outubro 2004
Antes do Anoitecer, Richard Linklater
Não sei se é o melhor filme do ano, pode ser apenas o filme que mais gostei de ver este ano (desde Lost in Translation). Parece impossível que eles saibam que estão a ser transportados por uma câmara de filmar pelas ruas de Paris, por uma escadas velhas até um quarto. Sei que a arte não é apenas a imitação da natureza, mas o longo diálogo entre Ethan Hawke e Julie Delpi também é mais do que apenas uma imitação de naturalidade. Ou parece ser, o que, em cinema, é quase a mesma coisa. No final sei claramente onde me encontro na divisão entre românticos e cínicos.
Não sei se é o melhor filme do ano, pode ser apenas o filme que mais gostei de ver este ano (desde Lost in Translation). Parece impossível que eles saibam que estão a ser transportados por uma câmara de filmar pelas ruas de Paris, por uma escadas velhas até um quarto. Sei que a arte não é apenas a imitação da natureza, mas o longo diálogo entre Ethan Hawke e Julie Delpi também é mais do que apenas uma imitação de naturalidade. Ou parece ser, o que, em cinema, é quase a mesma coisa. No final sei claramente onde me encontro na divisão entre românticos e cínicos.
O cabaleiro importa-se de repetir?
No mesmo dia em que Gomes da Silva aproveitou para se enterrar mais um bocadinho, Morais Sarmento disse que há "limites à independência" dos operadores públicos de televisão. Ora isto cheira a mais uma cabala. Mas uma cabala dependente ou independente da vontade dos cabaleiros? Resposta: ou está tudo doido, ou uma pessoa normal, neste contexto, tudo faria para não dizer o que Sarmento disse. A não ser que ele quisesse dizer mesmo aquilo, e isso não se pode levar a mal, porque afinal os doidos somos nós por nos deixamos governar por sujeitos como ele. Isto cheira a fim de regime. Está por aí alguém disponível para organizar uma cabala para ver se "isto" acaba de vez?
O triângulo cabalista
O Expresso, o Público e Marcelo Rebelo de Sousa fazem parte de um estranho conluio anti-santanista, sugeriu o ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, ao prestar declarações à Alta Autoridade para a Comunicação Social. E disse que "as cabalas existem, independentemente da vontade subjectiva de as constituir".
São estranhas, porém, as forças invocadas pelo minstro, já que é difícil provar a existência de conspirações que se desenvolvem independentemente da vontade dos conspiradores. Se é um triângulo cabalista, de forças que congeminam uma cabala independente da vontade dos cabaleiros, isso cheira a maçonaria. Mas, nesse caso, o sr.ministro não devia ter mais qualquer coisinha para nos contar?
São estranhas, porém, as forças invocadas pelo minstro, já que é difícil provar a existência de conspirações que se desenvolvem independentemente da vontade dos conspiradores. Se é um triângulo cabalista, de forças que congeminam uma cabala independente da vontade dos cabaleiros, isso cheira a maçonaria. Mas, nesse caso, o sr.ministro não devia ter mais qualquer coisinha para nos contar?
18 outubro 2004
Entrada no diário: Nasceu a Luísa. Sexta-Feira, quinze de Outubro de dois mil e quatro. Fomos vê-la hoje pela primeira vez. Mama com frequência, dorme muito. A primeira impressão é muito importante; espero que tenha gostado de nós. Depois de nove meses de escuridão, vultos coloridos com vozes de professora do Charlie Brown podem ser muito traumáticos para um recém-nascido. Vamos ter de a indemnizar com presentes e chocolates pelos possíveis danos psicológicos. A Sónia e o Gonçalo estão cansados e felizes. Parabéns aos dois.
Como a Luísa não precisa de histórias para adormecer, termino a entrada antes de inventar uma.
Como a Luísa não precisa de histórias para adormecer, termino a entrada antes de inventar uma.
Será que se comermos uma madalena e nos arrependermos logo de seguida lhe podemos chamar uma madalena arrependida? A transferência da culpa para o que é inimputável (a madalena) é um problema não suficientemente estudado pela psicologia contemporânea. Colocou-se-me pela primeira e única vez ao ler Proust; culpar uma madalena embebida em chá de tília pelas oito ou nove páginas de descrição do campanário da igreja de Combray e a recordação que as emoções do campanário da igreja de Combray provocaram num pobre miúdo a quem a mãe não beijava suficientemente ao deitar. No primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, o narrador descreve-nos como esse sabor esquecido (madalena/chá de tília) lhe despertou as recordações da infância, da adolescência e da vida adulta, que passa esse e os outros seis volumes a narrar pormenorizadamente. Tudo isto para dizer que, quando viajava no Domingo no Alfa-Pendular de regresso a Lisboa, um Compal de Tutti-Frutti, sabor que já não devia beber há muitos anos, me transportou imediatamente para uma viagem de estudo que fiz na primária. Deve ter sido a isso que Tocqueville se referia quando alertava para o perigo do declínio dos padrões de excelência nas sociedades democráticas. A madalena e o chá de tília aristocráticos foram substituídos pelo Compal de Tutti-Frutti suburbano. Mas, ao contrário de Proust, não me apetece escrever um romance a partir disto, o que apenas revela outro índicio do declínio.
15 outubro 2004
O empate.
Ontem fui ao Parlamento como quem vai ver um jogo de futebol, ver a reedição de um "derby". Este saiu empatado. José Sócrates não esteve mal para estreante no debate mensal, mas, na sessão sobre o programa do Governo António José Seguro fizera melhor do que o novo líder. Depois de dizer com arrogância que o primeiro-ministro não pensava antes de falar - porque Santana disse que Ferro Rodrigues também não tinha sido eleito secretário-geral do PS -, Sócrates afirmou que o seu antecessor tinha sido eleito por voto directo. Mas também ele falou antes de pensar porque depois atrapalhou-se. Ferro foi eleito por voto directo antes das legislativas e depois foi confirmado numa convenção o PS. O engenheiro estava nervoso? Veremos como se sairá daqui a dois ou três meses.
Santana, que esteve muito melhor ontem do que no debate do programa do Governo, não pode ser atacado com base em questões pessoais, porque o homem nisso é bom a responder. Até Francisco Louçã teve de mudar o tom, porque já viu que não o consegue irritar como irritava Durão Barroso. Esperemos pelas coisas sérias, o Orçamento do Estado, para ver como se dispõem as novas peças do xadrez político nacional.
Santana, que esteve muito melhor ontem do que no debate do programa do Governo, não pode ser atacado com base em questões pessoais, porque o homem nisso é bom a responder. Até Francisco Louçã teve de mudar o tom, porque já viu que não o consegue irritar como irritava Durão Barroso. Esperemos pelas coisas sérias, o Orçamento do Estado, para ver como se dispõem as novas peças do xadrez político nacional.
O debate na churrasqueira: Kerry vs Bush
Nos três plasmas enormes daquele restaurante em Georgetown, Washington, o jogo de futebol americano entre a equipa da Marinha e a do Exército, concentrava as atenções de toda a gente. Éramos oito jornalistas, cada um do seu país europeu, e o negócio foi o seguinte: OK, jantamos aqui, mas dentro de uma hora vocês mudam de canal para vermos o debate das presidenciais. E assim foi. Ainda estávamos a comer os bifes enormes, suculentos, as batatas fritas e os molhos, e o jogo mudou, mesmo em cima da hora. O Kerry atirou-se ao Bush e o Bush placou o Kerry, o embate durou 90 minutos, mas antes de chegar a meio foi-se levantando um burburinho, depois um barulho enorme, até que olhámos em volta e éramos os únicos a ouvir os dois homens. Bem, a ouvir não, porque não ouvíamos nada. E nós a pensar que estas eleições eram importantes. Só metade dos americanos vota. Eu também queria votar, como cidadão do mundo. Só para usar aquele "pin" no meu casaco: "When Clinton lied nobody died. Vote 4 Kerry!"
14 outubro 2004
Se uma desconhecida lhe oferecer livros... está na América
Na América acontecem as coisas mais estranhas. Quando aterrei no aeroporto de Norfolk, Virgínia, ainda fiquei sentado uns minutos. Tinha ao meu lado um americano aflito, com dimensões XXL, a quem deviam ter reservado dois lugares no avião em vez de um. O homem era tão grande que fazia aflição. Por isso decidi levantar-me, libertá-o o mais depressa possível daquele aperto de seis horas e meia. Mal fiquei de pé (como metade dos passageiros), um homem, no banco da frente berrou: "Está assim com tanta pressa? Não sabe as regras? Porque é que não espera a sua vez e não deixa as outras pessoas sair primeiro!" Estarreci. Parecia que me queria bater. Ainda argumentei que não lhe tinha feito mal nenhum, blá-blá-blá, mas esperei que ele saísse primeiro.
Uns dias depois, em Washington, fui a uma livraria perto de Dupont Circle que está aberta toda a noite, e tem um belíssimo restaurante, um bar e música ao vivo. Escolhi dois livros que talvez não tivessem desconto na Barnes & Noble e dirigi-me ao balcão para pagar ao mesmo tempo de uma rapariga. Ela hesitou. E eu disse qualquer coisa como "faça favor". E ela fez. A empregada passou a pilha de livros dela no leitor óptico e os que estavam ao lado. Eu ainda disse, "esses livros são meus", a funcionária disse "eu sei", e fiquei a pensar que estava a fazer as contas separadas. Mas não. A moça tinha pago os meus livros. Saí porta fora e pedi explicações: "Por que carga de água é que pagou os meus livros?" Ela disse que tinha sido muito mal educada por ter passado à minha frente e que por isso tinha decidido pagar a conta. "Deixe lá, ela é assim", acrescentou a amiga que estava com ela. Ainda argumentei, blá-blá-blá, eu é que lhe tinha cedido a minha vez e tal, mas não funcionou. Voltei à livraria, perguntei quanto custavam os livros: 50 dólares, quase dez contos de réis. Corri para a rua. Tinha desaparecido.
Este é um episódio que jamais teria lugar em Portugal, fosse com livros ou rebuçados. E olha, fiquei a pensar nisso.
A propósito, os livros são: "The Irak War", do jornalista e historiador inglês John Keegan; e "The War for Muslim Minds", do académico francês Gilles Kepel.
Uns dias depois, em Washington, fui a uma livraria perto de Dupont Circle que está aberta toda a noite, e tem um belíssimo restaurante, um bar e música ao vivo. Escolhi dois livros que talvez não tivessem desconto na Barnes & Noble e dirigi-me ao balcão para pagar ao mesmo tempo de uma rapariga. Ela hesitou. E eu disse qualquer coisa como "faça favor". E ela fez. A empregada passou a pilha de livros dela no leitor óptico e os que estavam ao lado. Eu ainda disse, "esses livros são meus", a funcionária disse "eu sei", e fiquei a pensar que estava a fazer as contas separadas. Mas não. A moça tinha pago os meus livros. Saí porta fora e pedi explicações: "Por que carga de água é que pagou os meus livros?" Ela disse que tinha sido muito mal educada por ter passado à minha frente e que por isso tinha decidido pagar a conta. "Deixe lá, ela é assim", acrescentou a amiga que estava com ela. Ainda argumentei, blá-blá-blá, eu é que lhe tinha cedido a minha vez e tal, mas não funcionou. Voltei à livraria, perguntei quanto custavam os livros: 50 dólares, quase dez contos de réis. Corri para a rua. Tinha desaparecido.
Este é um episódio que jamais teria lugar em Portugal, fosse com livros ou rebuçados. E olha, fiquei a pensar nisso.
A propósito, os livros são: "The Irak War", do jornalista e historiador inglês John Keegan; e "The War for Muslim Minds", do académico francês Gilles Kepel.
13 outubro 2004
12 outubro 2004
Santana, o curandeiro da sado-maso-obsessão de Durão
O IRS vai baixar, as pensões vão subir, os funcionários públicos vão ter um aumento acima da inflação, e o défice não passará dos 3%: o primeiro-ministro, sem direito ao contraditório domingueiro do professor Marcelo, em cada uma das três televisões, e a horas diferentes, contradisse o que andámos a ouvir dois anos e meio, e até as palavras do seu próprio ministro das Finanças. Ou Durão e Manuela tinham mesmo um problema sado-maso-obsessivo com as contas do Estado, ou somos todos uns totós (e o Bagão também), e andámos a ser enganados por gente doida até ontem.
Temos de agradecer ao Senhor Presidente da República, que nos deu esta bela prenda, porque se não fosse ele ainda podia haver quem votasse enganado no Conde da Figueira e lhe desse um mandato para quatro anos. Mas na pior das hipóteses isto não dura mais do que dois anos (o que é muito pouco tempo no tempo cósmico). E como o povo não é parvo e não estamos na Venezuela, o populismo desbragado chegará ao fim.
Olá. Estou de volta às postas.
Temos de agradecer ao Senhor Presidente da República, que nos deu esta bela prenda, porque se não fosse ele ainda podia haver quem votasse enganado no Conde da Figueira e lhe desse um mandato para quatro anos. Mas na pior das hipóteses isto não dura mais do que dois anos (o que é muito pouco tempo no tempo cósmico). E como o povo não é parvo e não estamos na Venezuela, o populismo desbragado chegará ao fim.
Olá. Estou de volta às postas.
05 outubro 2004
Fomos para sul. Na Ilha de Tavira há uma praia com âncoras cravadas na areia, como se uma tribo de gigantes se tivesse arrastado para fora do mar com o auxílio delas. Passámos lá os três melhores dias de praia deste ano, sem a visão de quaisquer seres mitológicos, que há muito se devem ter embrenhado na Ria Formosa e desaparecido. Já regressámos: a Joana prepara a mala para partir novamente, para Frankfurt; eu escrevo o diário mínimo das nossas mini-férias de comemoração.
27 setembro 2004
146 - Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.
90 - Os homens graves e melancólicos ficam mais leves graças ao que torna os outros pesados, o ódio e o amor, e assim surgem de vez em quando à sua superfície.
74 - Um homem de génio é insuportável se, além disso, não possuir pelo menos duas outras qualidades: gratidão e asseio.
98 - Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde. (Nietzsche, Para Além de Bem e Mal)
São frases como estas que justificam o meu interesse por Nietzsche. Um interesse mais estético do que intelectual. As frases perfeitas são tão verdadeiras ou falsas como as outras. Não luto com monstros nem olho para abismos, por precaução, só venho à superfície respirar, tomo banho todos os dias. Já só me falta o génio e cicatrizante para os lábios.
90 - Os homens graves e melancólicos ficam mais leves graças ao que torna os outros pesados, o ódio e o amor, e assim surgem de vez em quando à sua superfície.
74 - Um homem de génio é insuportável se, além disso, não possuir pelo menos duas outras qualidades: gratidão e asseio.
98 - Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde. (Nietzsche, Para Além de Bem e Mal)
São frases como estas que justificam o meu interesse por Nietzsche. Um interesse mais estético do que intelectual. As frases perfeitas são tão verdadeiras ou falsas como as outras. Não luto com monstros nem olho para abismos, por precaução, só venho à superfície respirar, tomo banho todos os dias. Já só me falta o génio e cicatrizante para os lábios.
22 setembro 2004
Battlestar Galactica na Rua de São Pedro
Somos a geração mais melancólica ou estamos com a idade mais melancólica. Recomeçou ontem à noite a Galactica (SIC Radical). Quando acabou a reposição do primeiro episódio tive vontade de ir tocar às campainhas do Armando, do Pedro, do Paulinho, do Eduardo, do Paulo Sérgio,... para descerem à rua e começarmos a decidir quem é o Apollo e quem é o Starbuck. Mas o Eduardo mudou-se para o Porto, o Paulo Sérgio para o Algarve, o Paulinho regressou há pouco do Brasil e não sei onde está, muitos dos outros vivem em Alfa de Centauro, Aldebarã ou outros lugares longínquos com nomes suburbanos e a nossa rua é a de uma cidade-fantasma, por onde rolam aquelas plantas redondas dos westerns. Só o Armando e o Pedro é que continuam mais perto, mas somos poucos para formarmos uma esquadrilha de caças inter-galácticos.
O grau de sofisticação da tecnologia e dos efeitos especiais não é tão elevado e a ingenuidade da história e dos diálogos é maior do que me lembrava, mas não deixa de ser a melhor série de ficção científica de sempre.
(Armando, está bem, como és louro podes ser o Starbuck. Eu fico com qualquer outro, desde de acabe com a irmã do Apollo.)
O grau de sofisticação da tecnologia e dos efeitos especiais não é tão elevado e a ingenuidade da história e dos diálogos é maior do que me lembrava, mas não deixa de ser a melhor série de ficção científica de sempre.
(Armando, está bem, como és louro podes ser o Starbuck. Eu fico com qualquer outro, desde de acabe com a irmã do Apollo.)
16 setembro 2004
(Blood), Sweat and Tears
Foi com surpresa que acordei hoje de manhã, pois julgava ter assistido ao fim do mundo ontem à noite, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém. Cerca de vinte actores-bailarinos apresentaram o resultado final de um estágio orientado por Jan Fabre, com uma coreografia intitulada (Blood), Sweat and Tears. E houve de facto muitas lágrimas, muito suor e, provavelmente, muito sangue nas múltiplas hemorragias internas que os espectadores iam adivinhando nos corpos contorcidos e maltratados dos actores. (Talvez essa a razão para o Blood estar entre (), por o sangue ser interno.)
Há um fenómeno psicológico qualquer em que as vítimas começam a sentir simpatia pelos seus raptores. Só consigo encontrar essa justificação para o facto de ter gostado muito do espectáculo, apesar da prova psicológica a que fui submetido nos primeiros vinte minutos de corpos contorcidos, de choros e de gritos. Depois, corpos vestidos de negro, semi-vestidos de negro e nús; com muito suor e lágrimas e a utilização inteligente de um texto escasso. Sentia-se que a coreografia conseguia despertar emoções extremas não só nos bailarinos mas também nos espectadores que, a julgar por mim, começaram a sentir-se fisicamente extenuados. No final, não houve standing ouvation, mas apenas porque uns, como eu, estavam demasiado cansados para se levantarem, e outros queriam esconder possíveis erecções.
(Obrigado Nuno Moura, vai-nos mantendo informados.)
Há um fenómeno psicológico qualquer em que as vítimas começam a sentir simpatia pelos seus raptores. Só consigo encontrar essa justificação para o facto de ter gostado muito do espectáculo, apesar da prova psicológica a que fui submetido nos primeiros vinte minutos de corpos contorcidos, de choros e de gritos. Depois, corpos vestidos de negro, semi-vestidos de negro e nús; com muito suor e lágrimas e a utilização inteligente de um texto escasso. Sentia-se que a coreografia conseguia despertar emoções extremas não só nos bailarinos mas também nos espectadores que, a julgar por mim, começaram a sentir-se fisicamente extenuados. No final, não houve standing ouvation, mas apenas porque uns, como eu, estavam demasiado cansados para se levantarem, e outros queriam esconder possíveis erecções.
(Obrigado Nuno Moura, vai-nos mantendo informados.)
15 setembro 2004
Quando se começa a instalar um silêncio constrangedor, é habitual falar-se do tempo. Segundo o Instituto de Meteorologia, a previsão do estado do tempo no continente para amanhã é de céu geralmente limpo, com vento fraco (inferior a 15 Km/h) soprando moderado (15 a 25 km/h) de noroeste no litoral oeste durante a tarde. Pequena subida da temperatura, em especial nas regiões do interior. Neblina ou nevoeiro matinal. Para os dias seguintes, espero que o Vítor suba à superfície ou que caia uma boa trovoada, para manter o interesse.
12 setembro 2004
A nova biografia de Eichmann faz de nós genocidas
O historiador David Cesarini acabou de publicar uma nova biografia de Eichmann, onde contraria alguns argumentos de Hannah Arendt no famoso livro "Eichmann em Jerusalém", escrito nos anos 60 (traduzido em Portugal pela Tenacitas o ano passado). Em "Eichmann: His Life and Crimes", Cesarini diz que o nazi burocrata que concretizou a Solução Final à secretária, não só distinguia o bem do mal, como, apesar de não ser um psicopata, "aprendeu a odiar os judeus". Com isto ele conclui que uma pessoa à partida normal pode transformar-se num genocida, uma teoria que, aliás, não choca com a de Arendt, pelo contrário.
Numa entrevista ao Público, por Cláudia Monteiro (28 Agosto 04), Cesarini diz:
"A maioria das pessoas pensa que nunca poderia estar neste papel, que indivíduos perfeitamente normais nunca cometeriam este tipo de crime. O que Eichmann nos ensina é precisamente o contrário, que um ser humano normal pode tornar-se naquilo que os franceses chamam 'genocidaire', fora do quadro das explicações psicológicas e das explicações políticas sobre os regimes totalitários" - vejamos a Bósnia, Ruanda, Sudão: todos os assassinos são psicopatas ou robôts às ordens de um governo ou ideologia? Onde é que está a linha que separa a guerra do genocídio?
"Existem pessoas em Portugal que lutaram em guerras coloniais brutais e que não são psicopatas" - quem conhece antigos combatentes sabe o que fizeram esses jovens na guerra e o que eles não teriam feito se para lá não os tivessem levado. Mas aí, mais uma vez sobrepõe-se o colectivo ao individual, que é uma ordem do governo que condiciona a experiência dessas pessoas. Nunca tivessem ido à guerra, e nunca teriam matado um ser humano.
"A terrível verdade é que os seres humanos em situações de conflito são capazes de cometer genocídio" - será que a nossa espécie está assim tão condenada como diz Cesarini?
Ver artigo no Guardian sobre o livro.
Numa entrevista ao Público, por Cláudia Monteiro (28 Agosto 04), Cesarini diz:
"A maioria das pessoas pensa que nunca poderia estar neste papel, que indivíduos perfeitamente normais nunca cometeriam este tipo de crime. O que Eichmann nos ensina é precisamente o contrário, que um ser humano normal pode tornar-se naquilo que os franceses chamam 'genocidaire', fora do quadro das explicações psicológicas e das explicações políticas sobre os regimes totalitários" - vejamos a Bósnia, Ruanda, Sudão: todos os assassinos são psicopatas ou robôts às ordens de um governo ou ideologia? Onde é que está a linha que separa a guerra do genocídio?
"Existem pessoas em Portugal que lutaram em guerras coloniais brutais e que não são psicopatas" - quem conhece antigos combatentes sabe o que fizeram esses jovens na guerra e o que eles não teriam feito se para lá não os tivessem levado. Mas aí, mais uma vez sobrepõe-se o colectivo ao individual, que é uma ordem do governo que condiciona a experiência dessas pessoas. Nunca tivessem ido à guerra, e nunca teriam matado um ser humano.
"A terrível verdade é que os seres humanos em situações de conflito são capazes de cometer genocídio" - será que a nossa espécie está assim tão condenada como diz Cesarini?
Ver artigo no Guardian sobre o livro.
Há vezes em que triunfa o bem: uma lição do 11 de Setembro
As torres caíram há três anos. E o mundo mudou mesmo, como previram os comentadores, poucas horas depois dos atentados. A propósito do último post, sobre Hitler e por que o bem não triunfa no mundo, uma correcção: os passageiros do voo que se dirigia para Washington e que fizeram despenhar o avião numa zona sem perigo para terceiros, deviam ser os ícones do triunfo do bem moderno. Morreram. Morreriam de qualquer forma. Mas não morreram em vão. Há gente que está viva e nem sabe estar em dívida para com eles. O mal absoluto também foi derrotado pelo bem nesse dia.
10 setembro 2004
O lado humano de Adolf Hitler
O filme sobre os últimos 12 dias de Hitler, "Der Untergang" (O Crepúsculo), do realizador Oliver Hirchbiegel, só estreia no dia 16 na Alemanha, mas já está a criar polémica. Porque a figura do líder nazi aparece humanizada, e por depois de Auschwitz não ser aceitável mostrar o lado humano de um ser assim.
Mas é bom que se mostre o lado humano de Hitler.
Para que vejamos como um ser humano, de carne e osso, como outro qualquer, consegue tornar o mal ao mesmo tempo mais absoluto do que uma catástrofe natural, e tão banal que toda uma sociedade o aceitou e seguiu ao longo de anos. O pior que o monstro pode encerrar é essa humanidade, essa semelhança com cada um de nós, no beijo a uma amante, na festa a um animal doméstico, na fragilidade quando se aproxima do fim. É muito fácil defendermo-nos da impossibilidade de erradicar o mal do mundo concentrando toda a culpa numa aberração da natureza como pensamos que Hitler foi. Realçar o lado humano dele é espalhar por todos nós a culpa de o bem não triunfar em definitivo, que é o retrato do mundo em que vivemos...
Helena Ferro Gouveia, correspondente do Público em Berlim escreve (na quinta-feira, dia 09 de Setembro) que o "'Die Welt' recorda que cada vez que a Alemanha se confronta com o III Reich isso é ocasião para debater sobre o trauma alemão e a 'normalidade'". Jornais britânicos acusaram os alemães de estarem a fazer o papel de vítimas. É uma polémica a seguir com atenção.
Mas é bom que se mostre o lado humano de Hitler.
Para que vejamos como um ser humano, de carne e osso, como outro qualquer, consegue tornar o mal ao mesmo tempo mais absoluto do que uma catástrofe natural, e tão banal que toda uma sociedade o aceitou e seguiu ao longo de anos. O pior que o monstro pode encerrar é essa humanidade, essa semelhança com cada um de nós, no beijo a uma amante, na festa a um animal doméstico, na fragilidade quando se aproxima do fim. É muito fácil defendermo-nos da impossibilidade de erradicar o mal do mundo concentrando toda a culpa numa aberração da natureza como pensamos que Hitler foi. Realçar o lado humano dele é espalhar por todos nós a culpa de o bem não triunfar em definitivo, que é o retrato do mundo em que vivemos...
Helena Ferro Gouveia, correspondente do Público em Berlim escreve (na quinta-feira, dia 09 de Setembro) que o "'Die Welt' recorda que cada vez que a Alemanha se confronta com o III Reich isso é ocasião para debater sobre o trauma alemão e a 'normalidade'". Jornais britânicos acusaram os alemães de estarem a fazer o papel de vítimas. É uma polémica a seguir com atenção.
08 setembro 2004
A Sonda Caída
Tentámos capturar raios de sol para investigação mas, como tem acontecido nos últimos milhões de anos, eles despenharam-se sobre a Terra. Mais intacto do que a sonda, também eu estou de regresso à Terra depois de umas férias sem diário.
06 setembro 2004
Viver com a loucura da realidade
Passaram quatro dias. Os mortos quadriplicaram naquela escola. Porquê a loucura? Ou o horror... o horror, como repetia Marlon Brando em Apocalypse Now. Sempre que perguntamos porquê e não há respostas (porque a razão não encontra razões para certos tipos de mal), damos com algo em que não conseguimos pensar. Como é que, como seres humanos, nos podemos reconciliar com esta realidade, com todas as realidades do que não devia ser mas é? Hannah Arendt dá uma das respostas possíveis em Essays in Understanding 1930-1954. Para sobrevivermos a tudo isto, e ao resto, é preciso encontrarmos o nosso lugar na realidade sem nos resignarmos a ela:
(...) to find my way around in reality without selling my soul to it the way people in earlier times sold their souls to the devil. (citado em Evil in Modern Thought, de Susan Neiman, Princeton University Press)
Menos loucos do que os sãos são os loucos. A loucura está ali na esquina à nossa espera, basta ligar a TV, tão palpável como esta mão. A loucura alienada de quem vê o que não existe é uma benção divina que protege uns eleitos daquilo que é real. Não vender a alma à realidade pode ser tão alienante como viver do outro lado do espelho.
(...) to find my way around in reality without selling my soul to it the way people in earlier times sold their souls to the devil. (citado em Evil in Modern Thought, de Susan Neiman, Princeton University Press)
Menos loucos do que os sãos são os loucos. A loucura está ali na esquina à nossa espera, basta ligar a TV, tão palpável como esta mão. A loucura alienada de quem vê o que não existe é uma benção divina que protege uns eleitos daquilo que é real. Não vender a alma à realidade pode ser tão alienante como viver do outro lado do espelho.
03 setembro 2004
A loucura...
...mais recente vai em 150 mortos e 550 feridos. Na Ossétia. O mundo existe para nos enlouquecer.
O espelho da loucura
Mês e meio depois do terramoto de 1755, Voltaire escreveu esta carta a um pastor protestante:
"Tenho pena dos portugueses, como vós, mas os homens continuam a fazer mais mal uns aos outros no seu pequeno montículo de terra do que a natureza lhes faz. As nossas guerras massacram mais homens do que a terra engole em terramotos. Se neste mundo apenas tivéssemos de temer o inesperado acontecimento de Lisboa, ainda devíamos estar numa situação tolerável".
Avançamos 250 anos. O mundo está o mesmo. Pensamos naquilo de que vivamente melhor nos lembramos dos noticiários mais recentes, e a conclusão não é diferente do que o mesmo Voltaire pôs na boca de um dos seus personagens em Cândido: Martin concluiu que o mundo existe para nos enlouquecer. Vivemos do lado real do espelho, onde habitam os corpos, mas tudo o que é verdadeiro é cada vez menos tolerável.
"Tenho pena dos portugueses, como vós, mas os homens continuam a fazer mais mal uns aos outros no seu pequeno montículo de terra do que a natureza lhes faz. As nossas guerras massacram mais homens do que a terra engole em terramotos. Se neste mundo apenas tivéssemos de temer o inesperado acontecimento de Lisboa, ainda devíamos estar numa situação tolerável".
Avançamos 250 anos. O mundo está o mesmo. Pensamos naquilo de que vivamente melhor nos lembramos dos noticiários mais recentes, e a conclusão não é diferente do que o mesmo Voltaire pôs na boca de um dos seus personagens em Cândido: Martin concluiu que o mundo existe para nos enlouquecer. Vivemos do lado real do espelho, onde habitam os corpos, mas tudo o que é verdadeiro é cada vez menos tolerável.
01 setembro 2004
A sobrevivência ao mal segundo Mefistófeles
Diz Mefistófeles a Fausto:
Deste mundo tosco que estás a ver
Por mais que faça, e pouco não é
Não vejo jeito de nele tomar pé;
Ondas, borrascas, fogos, terramotos -
E terra e mar continuam intactos!
E os homens e os bichos, essa raça maldita?
A esses nem consigo chegar:
Quantos não levei já a enterrar!
E sempre sangue fresco gera nova vida.
Fausto, de Goethe, trad. João Barrento, Relógio d'Água
Pois por pior que tudo esteja, tudo vai seguindo.
Como escreveu Cesariny no poema Pastelaria: Afinal o que importa não é haver gente com fome/porque assim como assim ainda há muita gente que come
Deste mundo tosco que estás a ver
Por mais que faça, e pouco não é
Não vejo jeito de nele tomar pé;
Ondas, borrascas, fogos, terramotos -
E terra e mar continuam intactos!
E os homens e os bichos, essa raça maldita?
A esses nem consigo chegar:
Quantos não levei já a enterrar!
E sempre sangue fresco gera nova vida.
Fausto, de Goethe, trad. João Barrento, Relógio d'Água
Pois por pior que tudo esteja, tudo vai seguindo.
Como escreveu Cesariny no poema Pastelaria: Afinal o que importa não é haver gente com fome/porque assim como assim ainda há muita gente que come
31 agosto 2004
Zero e infinito no Olimpo
Penso nos Jogos Olímpicos, em dois tipos de modalidades: nas que tendem para o zero e nas que tendem para o infinito, e na possibilidade de podermos ser cada vez melhores.
Nas que tendem para o zero (como em todas as corridas de atletismo), quando mais próximo do zero chega um atleta, melhor. Um dia que chegue a zero, o mundo acaba, porque essa é uma façanha impossível. Mas se o desporto não é finito, e se as melhores marcas caem todos os anos, porque razão não há ninguém que se ultrapasse tanto a si mesmo de uma só vez, que nenhum outro humano consiga vencer aquele espaço em tão pouco tempo?
O mesmo se passa nas modalidades que tendem para o infinito (como nos saltos em altura, à vara, em comprimento, no lançamento do peso ou do dardo, etc): não há ninguém que consiga uma marca tão impossível de alcançar, por estar tão perto do infinito, que mate qualquer futura tentativa de superação?
Penso que só há uma resposta possível, embora bifurcada: os humanos são tão imperfeitos que é sempre possível aparecer alguém com um maior grau de perfeição; e é verdade que podemos ser sempre melhores do que no nosso momento anterior, de modo a nos superarmos a nós mesmos nas circuntâncias mais difíceis.
Nas que tendem para o zero (como em todas as corridas de atletismo), quando mais próximo do zero chega um atleta, melhor. Um dia que chegue a zero, o mundo acaba, porque essa é uma façanha impossível. Mas se o desporto não é finito, e se as melhores marcas caem todos os anos, porque razão não há ninguém que se ultrapasse tanto a si mesmo de uma só vez, que nenhum outro humano consiga vencer aquele espaço em tão pouco tempo?
O mesmo se passa nas modalidades que tendem para o infinito (como nos saltos em altura, à vara, em comprimento, no lançamento do peso ou do dardo, etc): não há ninguém que consiga uma marca tão impossível de alcançar, por estar tão perto do infinito, que mate qualquer futura tentativa de superação?
Penso que só há uma resposta possível, embora bifurcada: os humanos são tão imperfeitos que é sempre possível aparecer alguém com um maior grau de perfeição; e é verdade que podemos ser sempre melhores do que no nosso momento anterior, de modo a nos superarmos a nós mesmos nas circuntâncias mais difíceis.
30 agosto 2004
Missão aborto, missão abortada
O facto da Marinha de Guerra controlar o barco do aborto que navega em águas internacionais até seria uma boa medida se o ministro da Defesa também fizesse o Exército avançar com tropas para a fronteira com Espanha, de modo a impedir as portuguesas grávidas de irem a Badajoz fazer abortos nas clínicas da cidade.
Mais eficaz seria até, se, no regresso delas a território nacional, a tropa examinasse as referidas portuguesas, de molde ao Estado aplicar a lei tal como ela está redigida, entregando as mulheres que tivessem de facto abortado em Espanha às autoridades judiciais, pois o que temos diante de nós é uma violenta e deliberada violação da lei que rege esta abençoada Nação.
(Sejamos corajosos. Vamos até ao fim, contra essa gente estrangeira que nos conspurca os costumes. Qualquer dia até aparece por aí outro barco holandês chamado "Grass on the Waves" a levar os nossos jovens a fumar charros no mar alto, ou, pior do que isso, até me arrepia de pensar nisto, um barco com uma lanterna vermelha chamado "Red Light Boat", com profissionais sexuais que satisfazem legalmente qualquer passageiro desde que seja no mar alto e balanceante.)
Ora, como as clínicas de Badajoz não navegam em águas internacionais para se deslocarem de motu próprio até Elvas ou à Figueira da Foz - porque estão presas ao chão -, para aí praticarem a abortiva ilegalidade, e como a inexistência de fronteiras não impede as portuguesas praticarem esse crime em Espanha, então o ministro da Defesa devia mandar a Força Aérea bombardear as referidas clínicas espanholas por incitarem ao ilícito (legal e moral) deste lado do Tratado de Tordesilhas. (Como seríamos virtuosos se não fossem esses desavergonhados estrangeiros).
Nas Forças Armadas, comandadas por um líder iluminado, reside a salvação nacional. O POVO ESTÁ COM O MFA! Até já estamos a ver os raides das Forças Especiais às clínicas clandestinas onde se pratica o aborto ilegal nas más condições sanitárias que tanto preocupam o ministro. Esta preocupação com as condições sanitárias ainda vai desgraçar o dr. Portas, pois, como todos sabemos, é um dos argumentos a favor da legalização.
A vinda do barco é, de facto, uma operação propagandística, e isto é inegável, mas, como defende Pacheco Pereira no Abrupto, a posição do ministro da Defesa (aliás, do Governo) é simetricamente um espelho da outra: "Agora que o governo português resolva actuar como um espelho do Bloco, como um grupo radical de sentido contrário, com todos os tiques do radicalismo ideológico, com a agravante de abusar dos meios do Estado, é que coloca uma questão muito mais grave do que o folclore do barco. Se o barco foi uma provocação, este governo respondeu-lhe ao mesmo nível".
Mais eficaz seria até, se, no regresso delas a território nacional, a tropa examinasse as referidas portuguesas, de molde ao Estado aplicar a lei tal como ela está redigida, entregando as mulheres que tivessem de facto abortado em Espanha às autoridades judiciais, pois o que temos diante de nós é uma violenta e deliberada violação da lei que rege esta abençoada Nação.
(Sejamos corajosos. Vamos até ao fim, contra essa gente estrangeira que nos conspurca os costumes. Qualquer dia até aparece por aí outro barco holandês chamado "Grass on the Waves" a levar os nossos jovens a fumar charros no mar alto, ou, pior do que isso, até me arrepia de pensar nisto, um barco com uma lanterna vermelha chamado "Red Light Boat", com profissionais sexuais que satisfazem legalmente qualquer passageiro desde que seja no mar alto e balanceante.)
Ora, como as clínicas de Badajoz não navegam em águas internacionais para se deslocarem de motu próprio até Elvas ou à Figueira da Foz - porque estão presas ao chão -, para aí praticarem a abortiva ilegalidade, e como a inexistência de fronteiras não impede as portuguesas praticarem esse crime em Espanha, então o ministro da Defesa devia mandar a Força Aérea bombardear as referidas clínicas espanholas por incitarem ao ilícito (legal e moral) deste lado do Tratado de Tordesilhas. (Como seríamos virtuosos se não fossem esses desavergonhados estrangeiros).
Nas Forças Armadas, comandadas por um líder iluminado, reside a salvação nacional. O POVO ESTÁ COM O MFA! Até já estamos a ver os raides das Forças Especiais às clínicas clandestinas onde se pratica o aborto ilegal nas más condições sanitárias que tanto preocupam o ministro. Esta preocupação com as condições sanitárias ainda vai desgraçar o dr. Portas, pois, como todos sabemos, é um dos argumentos a favor da legalização.
A vinda do barco é, de facto, uma operação propagandística, e isto é inegável, mas, como defende Pacheco Pereira no Abrupto, a posição do ministro da Defesa (aliás, do Governo) é simetricamente um espelho da outra: "Agora que o governo português resolva actuar como um espelho do Bloco, como um grupo radical de sentido contrário, com todos os tiques do radicalismo ideológico, com a agravante de abusar dos meios do Estado, é que coloca uma questão muito mais grave do que o folclore do barco. Se o barco foi uma provocação, este governo respondeu-lhe ao mesmo nível".
28 agosto 2004
O jornalista vai à fonte e parte o cantarinho...
Todos aqueles que foram a favor da revelação das gravações (imprudentes ou ilegais, conforme a opinião) do jornalista do Correio da Manhã, Octávio Lopes, deviam ler com atenção dois artigos na revista The Economist do dia 21 de Agosto (artigo em editorial e peça jornalística).
Enquanto em Portugal são os próprios jornalistas que honram os leitores com a revelação das fontes dos outros jornalistas, nos Estados Unidos, um jornalista da Time, de seu nome Matthew Cooper, foi condenado a prisão efectiva de 18 meses (ou multa de mil dólares por dia) por não revelar uma fonte sensível da Casa Branca que lhe passou uma história: Copper escreveu, no Verão passado, que Valerie Plame, mulher do ex-embaixador que passou a informação aos media de que o famoso urânio nigeriano nunca tinha sido vendido ao Iraque, era uma agente encoberta da CIA.
Ora, toda esta história é muito complicada do que isto, mas o que importa é reter o seguinte: o jornalista (e outros três repórteres acusados) não revela a fonte porque, embora sendo do interesse público saber quem, na administração Bush, quis "lixar" o embaixador pondo em perigo a agente secreta e as pessoas a ela ligadas, há um valor superior que é o da liberdade de imprensa. O editorialista da Economist, escreve: "If reporters were routinely forced to identify confidential sources, those sources would dry up and the public would lose potentially valuable information. The public should not want the media to be servants of the legal system any more than it wants them servants of government".
No caso português, o mais triste é que não foi um tribunal a forçar um jornalista a revelar as suas fontes - o que, de resto, o transformaria num mártir da classe -, mas terem sido camaradas de profissão a fazê-lo. As consequências de quaisquer erros que tenham sido cometidos deveriam recair directamente sobre o jornalista e seus superiores, por cometerem ou permitirem que se tenham cometidos falhas grosseiras durante o exercício da profissão. Quando as consequências recaem apenas sobre as fontes, como aconteceu - que, caso não mintam, se arriscam pessoal e profissionalmente a passar informações de interesse público -, é a própria democracia a ficar em perigo.
Se o jornalista vai à fonte, tem de trazer o cantarinho inteiro, ou então acaba um dia morto à sede.
Enquanto em Portugal são os próprios jornalistas que honram os leitores com a revelação das fontes dos outros jornalistas, nos Estados Unidos, um jornalista da Time, de seu nome Matthew Cooper, foi condenado a prisão efectiva de 18 meses (ou multa de mil dólares por dia) por não revelar uma fonte sensível da Casa Branca que lhe passou uma história: Copper escreveu, no Verão passado, que Valerie Plame, mulher do ex-embaixador que passou a informação aos media de que o famoso urânio nigeriano nunca tinha sido vendido ao Iraque, era uma agente encoberta da CIA.
Ora, toda esta história é muito complicada do que isto, mas o que importa é reter o seguinte: o jornalista (e outros três repórteres acusados) não revela a fonte porque, embora sendo do interesse público saber quem, na administração Bush, quis "lixar" o embaixador pondo em perigo a agente secreta e as pessoas a ela ligadas, há um valor superior que é o da liberdade de imprensa. O editorialista da Economist, escreve: "If reporters were routinely forced to identify confidential sources, those sources would dry up and the public would lose potentially valuable information. The public should not want the media to be servants of the legal system any more than it wants them servants of government".
No caso português, o mais triste é que não foi um tribunal a forçar um jornalista a revelar as suas fontes - o que, de resto, o transformaria num mártir da classe -, mas terem sido camaradas de profissão a fazê-lo. As consequências de quaisquer erros que tenham sido cometidos deveriam recair directamente sobre o jornalista e seus superiores, por cometerem ou permitirem que se tenham cometidos falhas grosseiras durante o exercício da profissão. Quando as consequências recaem apenas sobre as fontes, como aconteceu - que, caso não mintam, se arriscam pessoal e profissionalmente a passar informações de interesse público -, é a própria democracia a ficar em perigo.
Se o jornalista vai à fonte, tem de trazer o cantarinho inteiro, ou então acaba um dia morto à sede.
24 agosto 2004
A Pepsi e a Coca-Cola
As marcas dominam a nossa mente sem nós o sabermos e se compramos marcas é porque confiamos no rótulo: podemos comer e beber isto ou aquilo e sabemos que não vamos morrer envenenados, ou podemos comprar este ou aquele detergente porque não nos vai dar cabo da roupa. Na política as coisas passam-se mais ou menos assim, sendo que a marca com maior notoriedade não é forçosamente a mais confiável, se é que ainda há marcas absolutamente confiáveis na política.
Ora temos assim duas marcas que vão degladiar-se no futuro próximo: a PSL, dos produtos Pedro Santana Lopes, e a JS, das produções José Sócrates.
A primeira, é uma marca popular com notoriedade firmada, líder de mercado, apesar de todos os que também a detestam. PSL é como a Coca-Cola, que se acha a maior e age como sendo a maior.
A segunda é uma marca que tem uma quota de mercado mais baixa, mas que quer chegar à liderança, e por isso procura posicionar-se de maneira diferente, apesar do seu sabor ser praticamente igual à anterior. JS é como a Pepsi, que não se apresenta como uma igual à Coca-Cola, mas como algo de novo, mesmo sem o ser: "The choice of a New Generation" (a escolha de uma nova geração). A escolha é da nova geração, mas nada sabemos sobre o produto, sobre o que é que o torna diferente da concorrência. José Sócrates já deve ter interiorizado isto de tal maneira que, na entrevista a Maria Henrique Espada, no Diário de Notícias de sexta-feira, dia 20, afirmou: "Sou um candidato de uma nova geração (...)". É o candidato Pepsi...
Ora temos assim duas marcas que vão degladiar-se no futuro próximo: a PSL, dos produtos Pedro Santana Lopes, e a JS, das produções José Sócrates.
A primeira, é uma marca popular com notoriedade firmada, líder de mercado, apesar de todos os que também a detestam. PSL é como a Coca-Cola, que se acha a maior e age como sendo a maior.
A segunda é uma marca que tem uma quota de mercado mais baixa, mas que quer chegar à liderança, e por isso procura posicionar-se de maneira diferente, apesar do seu sabor ser praticamente igual à anterior. JS é como a Pepsi, que não se apresenta como uma igual à Coca-Cola, mas como algo de novo, mesmo sem o ser: "The choice of a New Generation" (a escolha de uma nova geração). A escolha é da nova geração, mas nada sabemos sobre o produto, sobre o que é que o torna diferente da concorrência. José Sócrates já deve ter interiorizado isto de tal maneira que, na entrevista a Maria Henrique Espada, no Diário de Notícias de sexta-feira, dia 20, afirmou: "Sou um candidato de uma nova geração (...)". É o candidato Pepsi...
16 agosto 2004
O jardim dos cactos abandonados
Sábado à tarde, um calor seco no ar, e onde ir evitando os lugares de sempre... Uma ideia: o jardim botânico de Belém, euro e meio a cada um à entrada (a Carla é que pagou), passeio sossegado, jornais de fim-de-semana enfiados no saco do Expresso, lagos, água, gansos, sombra, turistas raros, portugueses ausentes, um abandono. O lugar, partes do lugar, ao desleixo, e um casal de noivos aviado nos Jerónimos em preparos diante do fotógrafo.
Num portão semi-aberto, alguém se esqueceu de pôr a placa "proibido entrar". Lá dentro, um delicioso jardim de cactos continua a ser um jardim de cactos porque os cactos podem ser deixados ao abandono e mantêm-se a cactotuar vida fora. As estufas destruídas, em ruínas, lixo e dejectos de jardinagem pelos cantos do caminho, e os cactos, com os picos ainda mais de fora, assanhados como fazem os cactos zangados, enrodilhados em árvores antigas, ora estrangulando-as ora confortando-as, erguendo-se com braços ameaçadores contra quem ousa profanar o santuário. Há um certo encanto na decadência, como se num lugar antigo e abandonado sedimentassem as memórias esquecidas. Mas o sinal da nossa decadência é deixar que lugares assim não sejam mais do que memórias forçadas ao caminho do esquecimento, a vitória da incúria. Uma vergonha. Alguém se acusa?
Num portão semi-aberto, alguém se esqueceu de pôr a placa "proibido entrar". Lá dentro, um delicioso jardim de cactos continua a ser um jardim de cactos porque os cactos podem ser deixados ao abandono e mantêm-se a cactotuar vida fora. As estufas destruídas, em ruínas, lixo e dejectos de jardinagem pelos cantos do caminho, e os cactos, com os picos ainda mais de fora, assanhados como fazem os cactos zangados, enrodilhados em árvores antigas, ora estrangulando-as ora confortando-as, erguendo-se com braços ameaçadores contra quem ousa profanar o santuário. Há um certo encanto na decadência, como se num lugar antigo e abandonado sedimentassem as memórias esquecidas. Mas o sinal da nossa decadência é deixar que lugares assim não sejam mais do que memórias forçadas ao caminho do esquecimento, a vitória da incúria. Uma vergonha. Alguém se acusa?
08 agosto 2004
Sabonetes ao poder
É injusto dizer que Santana e Sócrates são iguais. Quem olhar com atenção percebe que os dois são diferentes: o primeiro-ministro tem uma personalidade quente, emocional, é um improvisador, um espontâneo movido pelo combustível da reacção às acções dos outros; o candidato a secretário-geral do PS é frio, absolutamente cerebral, e contido ao ponto de avaliar cada gesto e cada palavra.
A zona de intersecção entre ambos é o instrumento para chegar ao mesmo fim: a comunicação social, a fábrica das imagens, e as intervenções cheias de nada.
Há umas semanas li dezenas de entrevistas e artigos de Santana Lopes publicados na imprensa desde os anos 90. A sua capacidade impressiona: é capaz de escrever lençóis de textos sem dizer absolutamente nada, sem deixar trair-se por uma ideia. É preciso peneirar milhares de linhas sobre a vida partidária para encontrar um conceito, um rumo de pensamento sobre o país, ou a defesa de uma medida. Sócrates também provou, nas últimas semanas, que é igual. A entrevista das citações ao Expresso foi um desastre, o artigo sobre o plano tecnológico no Público é um conjunto de generalidades que toda a gente defende, e a página do Diário de Notícias, dirigida à ala esquerda do PS, serviu mais para esconder do que para mostrar o que pensa.
Bem-vindos ao país moderno! Já houve quem quisesse vender Presidentes da República como se fossem sabonetes. Agora temos sabonetes que são ou querem ser primeiros-minstros.
A zona de intersecção entre ambos é o instrumento para chegar ao mesmo fim: a comunicação social, a fábrica das imagens, e as intervenções cheias de nada.
Há umas semanas li dezenas de entrevistas e artigos de Santana Lopes publicados na imprensa desde os anos 90. A sua capacidade impressiona: é capaz de escrever lençóis de textos sem dizer absolutamente nada, sem deixar trair-se por uma ideia. É preciso peneirar milhares de linhas sobre a vida partidária para encontrar um conceito, um rumo de pensamento sobre o país, ou a defesa de uma medida. Sócrates também provou, nas últimas semanas, que é igual. A entrevista das citações ao Expresso foi um desastre, o artigo sobre o plano tecnológico no Público é um conjunto de generalidades que toda a gente defende, e a página do Diário de Notícias, dirigida à ala esquerda do PS, serviu mais para esconder do que para mostrar o que pensa.
Bem-vindos ao país moderno! Já houve quem quisesse vender Presidentes da República como se fossem sabonetes. Agora temos sabonetes que são ou querem ser primeiros-minstros.
07 agosto 2004
Postal atrasado: gelataria acrobática
Este é um daqueles postais que mandamos aos amigos e chegam à caixa do correio muito depois de termos regressado de viagem, e encerra os posts das minhas férias:
Trojir. Croácia.
O Adriático é o mar veneziano. Enquanto percorremos a costa, damos com cidades que são pequenas venezas, embora sem os canais: os palácios, os arcos nas janelas, as ruas labirínticas, as piazzetas, os turistas. E os gelados. Muitos gelados, quase tão bons quanto os italianos. Mas naquela gelataria - não mais do que uma arca congeladora ao ar livre -, na marginal de Trojir, em frente a um dos grandes iates ali atracados, descobri uma daquelas pessoas que faz de um emprego banal um ofício e uma arte.
A arca dos gelados estava cerca por turistas e crianças, de notas na mão, a pedirem uma, duas, três bolas. O rapaz pegava num cone, tirava um sabor bem redondo com a colher e depois atirava o gelado ao ar, uns três ou quatro metros, e apanhava a bola de natas atrás das costas, a de chocolate caía directamente em cima da de natas e, na de morango, dava três voltas sobre si mesmo, para o gelado acabar composto e na mão de quem pagou para ver. Puséssemos nós, assim, em tudo o que fazemos, aquele pedaço de alma que dá encanto às coisas...
Trojir. Croácia.
O Adriático é o mar veneziano. Enquanto percorremos a costa, damos com cidades que são pequenas venezas, embora sem os canais: os palácios, os arcos nas janelas, as ruas labirínticas, as piazzetas, os turistas. E os gelados. Muitos gelados, quase tão bons quanto os italianos. Mas naquela gelataria - não mais do que uma arca congeladora ao ar livre -, na marginal de Trojir, em frente a um dos grandes iates ali atracados, descobri uma daquelas pessoas que faz de um emprego banal um ofício e uma arte.
A arca dos gelados estava cerca por turistas e crianças, de notas na mão, a pedirem uma, duas, três bolas. O rapaz pegava num cone, tirava um sabor bem redondo com a colher e depois atirava o gelado ao ar, uns três ou quatro metros, e apanhava a bola de natas atrás das costas, a de chocolate caía directamente em cima da de natas e, na de morango, dava três voltas sobre si mesmo, para o gelado acabar composto e na mão de quem pagou para ver. Puséssemos nós, assim, em tudo o que fazemos, aquele pedaço de alma que dá encanto às coisas...
30 julho 2004
Miguel Torga, Diário I
Coimbra, 18 de Dezembro de 1937 – Cá estou eu. Sei que estas notas não têm pés nem cabeça, que o dia registado como eu o registo é uma coisa semelhante àquelas pílulas alimentícias, onde o estômago, na sua orgânica necessidade de se sentir cheio e farto, não consegue valorizar os mistérios da concentração.
Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário.
Dito isto, embarco amanhã para a Europa.
Eu também, para Roma. Não sei se vou conseguir ir alimentando um diário nestes próximos doze dias, que são bichos de comem muito. Especialmente os de viagem, de bordo, onde sentimos necessidade de descrever tudo em todo o pormenor para não percebermos que andamos perdidos.
Coimbra, 18 de Dezembro de 1937 – Cá estou eu. Sei que estas notas não têm pés nem cabeça, que o dia registado como eu o registo é uma coisa semelhante àquelas pílulas alimentícias, onde o estômago, na sua orgânica necessidade de se sentir cheio e farto, não consegue valorizar os mistérios da concentração.
Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário.
Dito isto, embarco amanhã para a Europa.
Eu também, para Roma. Não sei se vou conseguir ir alimentando um diário nestes próximos doze dias, que são bichos de comem muito. Especialmente os de viagem, de bordo, onde sentimos necessidade de descrever tudo em todo o pormenor para não percebermos que andamos perdidos.
25 julho 2004
Viagens modernas III: as pessoas
Já falei de Guido, o académico dálmata, descendente de portugueses, que pediu ao presidente da Croácia para deitar ao Tejo as cinzas do seu velho barco português, quando aquele visitou a Expo'98. As pessoas são o conteúdo das viagens, que enchem o espaço que nos é aberto pelos lugares. Lugares com gente lá dentro: assim deviam ser todas as viagens modernas.
Da minha última viagem trago apenas mais duas experiências relevantes com os locais, porque era difícil falar com os croatas, que dominam poucas línguas, porque não saí à noite, o que é excelente para meter conversa, e porque as pessoas com quem falei não queriam responder às minhas perguntas.
E o que quer saber um português numa terra como aquela? Como se vive com a memória de uma guerra tão recente. Perante isto, até o passado comunista da ex-Jugoslávia perde o interesse (uma senhora muito animada e simpática, que falava um alemão macarrónico tinha uma bela biografia de Tito à cabeceira de um dos seus quartos para alugar, e uma prateleira cheia de volumes sobre o ditador, Estaline e o socialismo. Mas a comunicação era impossível).
Um homem, na galeria de arte de Dubrovnic, parecia o interlocutor ideal: afável, talvez culto, jovem e fluente em inglês. Peguntei-lhe de quem eram os quadros e as esculturas. Ele respondeu que eram de artistas croatas, bósnios e macedónios. Tinha ali a minha deixa. Confessei que tinha tido dificuldade em fazer esta pergunta ao longo de quase duas semanas e atirei: "Como é que vocês olham hoje uns para os outros, 10 anos depois da guerra? Como é que convivem com essa memória?". Ele ficou calado. E eu senti-me a devassá-lo. Depois, levantou os olhos e disse, que "agora as coisas estão melhores, mas há sempre quem queira continuar a causar problemas". Fez uma pausa. Tinha os olhos marejados, e não estou a exagerar. E disse: "Falar sobre isso é muito difícil. Procuramos esquecer-nos todos os dias para tentarmos levar uma vida normal". A seguir, pensei no que sentiria se alguém tivesse bombardeado sete meses seguidos a minha cidade natal, destruindo a maior parte dos monumentos e matando os meus amigos. Há feridas abertas que nunca saram.
Guardei outra história, mais pitoresca, mas reveladora. O Afonso ia a conduzir o carro ao lado da Blandina, eu e a Carla íamos atrás, entre Sarajevo e Mostar, na Bósnia. Um polícia mandou-nos parar. Falou um inglês arranhado e disse que íamos a 104 km/h numa zona onde só podíamos ir a 90. Era caso para multa. Pediu os documentos. Mal olhou. Disse que eram 30 unidades da moeda bósnia. Respondemos que não tínhamos, porque só estávamos um dia no país. Quisemos saber se aceitava euros ou kunas croatas. Quis euros: quinze euros. Demos-lhe duas notas de 10, ele pegou numa, deu-se por satisfeito, "assim está bem", e mandou-nos seguir.
Da minha última viagem trago apenas mais duas experiências relevantes com os locais, porque era difícil falar com os croatas, que dominam poucas línguas, porque não saí à noite, o que é excelente para meter conversa, e porque as pessoas com quem falei não queriam responder às minhas perguntas.
E o que quer saber um português numa terra como aquela? Como se vive com a memória de uma guerra tão recente. Perante isto, até o passado comunista da ex-Jugoslávia perde o interesse (uma senhora muito animada e simpática, que falava um alemão macarrónico tinha uma bela biografia de Tito à cabeceira de um dos seus quartos para alugar, e uma prateleira cheia de volumes sobre o ditador, Estaline e o socialismo. Mas a comunicação era impossível).
Um homem, na galeria de arte de Dubrovnic, parecia o interlocutor ideal: afável, talvez culto, jovem e fluente em inglês. Peguntei-lhe de quem eram os quadros e as esculturas. Ele respondeu que eram de artistas croatas, bósnios e macedónios. Tinha ali a minha deixa. Confessei que tinha tido dificuldade em fazer esta pergunta ao longo de quase duas semanas e atirei: "Como é que vocês olham hoje uns para os outros, 10 anos depois da guerra? Como é que convivem com essa memória?". Ele ficou calado. E eu senti-me a devassá-lo. Depois, levantou os olhos e disse, que "agora as coisas estão melhores, mas há sempre quem queira continuar a causar problemas". Fez uma pausa. Tinha os olhos marejados, e não estou a exagerar. E disse: "Falar sobre isso é muito difícil. Procuramos esquecer-nos todos os dias para tentarmos levar uma vida normal". A seguir, pensei no que sentiria se alguém tivesse bombardeado sete meses seguidos a minha cidade natal, destruindo a maior parte dos monumentos e matando os meus amigos. Há feridas abertas que nunca saram.
Guardei outra história, mais pitoresca, mas reveladora. O Afonso ia a conduzir o carro ao lado da Blandina, eu e a Carla íamos atrás, entre Sarajevo e Mostar, na Bósnia. Um polícia mandou-nos parar. Falou um inglês arranhado e disse que íamos a 104 km/h numa zona onde só podíamos ir a 90. Era caso para multa. Pediu os documentos. Mal olhou. Disse que eram 30 unidades da moeda bósnia. Respondemos que não tínhamos, porque só estávamos um dia no país. Quisemos saber se aceitava euros ou kunas croatas. Quis euros: quinze euros. Demos-lhe duas notas de 10, ele pegou numa, deu-se por satisfeito, "assim está bem", e mandou-nos seguir.
Viagens modernas II - riscar coisas da lista
"Uma das coisas que mais me irrita no facto de ser turista é a minha própria cumplicidade no hábito de riscar coisas numa lista. Os Giottos - feito, Igreja dos Eremitas - feito, Piazza dei Signori - feito, e assim por diante. Quem quer saber? como um qualquer peregrino medieval, ali estava eu a acumular pontos junto de... junto de quem, exactamente? A quem iria apresentar a minha caderneta? Há algo de estranhamente religioso, no sentido mais conservador, no turismo moderno."
in Cartas de Veneza, Robert Dessaix
Gótica, pag. 191
Ir de férias é um momento único nestas vidas que levamos. A fuga é tanto mais saborosa quanto para mais longe formos, como catarse de todo um ano a aturar aquela gente no emprego. Ir aos lugares e vê-los é pouco (ver post abaixo). Não saio de uma cidade sem ver aquilo que é obrigatório, mas saio frustrado se me for embora sem perceber o que vi. Percorrer a lista não chega, olhar para pedras antigas é pouco, conhecer as histórias por detrás do que vemos é que é importante. E nem sempre consegui esse equilíbrio nestes 15 dias em Veneza, na Croácia e na Bósnia: Veneza merece uma visita de Inverno para nos embrenharmos nas histórias; Dubrovnic, no sul da Croácia, merece tempo (também em época baixa para fugir do terror do turismo de massas) porque é uma das cidades mais encantadoras que já vi; o mesmo serve para Mostar, na Bósnia, onde ver as diferenças entre os habitantes de uma e outra margem é essencial.
Riscar os lugares que já vimos na nossa lista de sítios obrigatórios, como numa romaria, é fundamental, mas pobre. O que faz os lugares são as pessoas, as falas, os hábitos, as comidas, os cheiros.
Por isso, a pior maneira de se viajar é em pacotes organizados, apesar de um amigo que tem uma agência passar a vida a tentar impingir-mos. Já fiz duas viagens dessas: uma à Turquia, porque era barato, e outra ao Egipto, porque era a melhor maneira de o fazer. Neste estilo de viagem empacotada é tudo automático e pouco mais fazemos do que riscar da lista os lugares que já vimos. Ao fim de uns dias estamos como aqueles turistas americanos que vieram fazer um tour pela Europa. Depois de uma semana e de quatro países, Bill perguntava a Tom: "Onde é que estamos hoje?" E o amigo respondia: "I do not know. But it's friday, it must be Belgium..."
in Cartas de Veneza, Robert Dessaix
Gótica, pag. 191
Ir de férias é um momento único nestas vidas que levamos. A fuga é tanto mais saborosa quanto para mais longe formos, como catarse de todo um ano a aturar aquela gente no emprego. Ir aos lugares e vê-los é pouco (ver post abaixo). Não saio de uma cidade sem ver aquilo que é obrigatório, mas saio frustrado se me for embora sem perceber o que vi. Percorrer a lista não chega, olhar para pedras antigas é pouco, conhecer as histórias por detrás do que vemos é que é importante. E nem sempre consegui esse equilíbrio nestes 15 dias em Veneza, na Croácia e na Bósnia: Veneza merece uma visita de Inverno para nos embrenharmos nas histórias; Dubrovnic, no sul da Croácia, merece tempo (também em época baixa para fugir do terror do turismo de massas) porque é uma das cidades mais encantadoras que já vi; o mesmo serve para Mostar, na Bósnia, onde ver as diferenças entre os habitantes de uma e outra margem é essencial.
Riscar os lugares que já vimos na nossa lista de sítios obrigatórios, como numa romaria, é fundamental, mas pobre. O que faz os lugares são as pessoas, as falas, os hábitos, as comidas, os cheiros.
Por isso, a pior maneira de se viajar é em pacotes organizados, apesar de um amigo que tem uma agência passar a vida a tentar impingir-mos. Já fiz duas viagens dessas: uma à Turquia, porque era barato, e outra ao Egipto, porque era a melhor maneira de o fazer. Neste estilo de viagem empacotada é tudo automático e pouco mais fazemos do que riscar da lista os lugares que já vimos. Ao fim de uns dias estamos como aqueles turistas americanos que vieram fazer um tour pela Europa. Depois de uma semana e de quatro países, Bill perguntava a Tom: "Onde é que estamos hoje?" E o amigo respondia: "I do not know. But it's friday, it must be Belgium..."
Viagens modernas I: ver, ver, e nada acontece
Cheguei! A Joana está mais velha (parabéns mais uma vez!), acompanhando o envelhecimento da fotografia lá de casa, e eu sem poder assisitir ao vivo à transmutação etária anual da minha amiga, e sem ter comido a parte que me cabia no bolo que foi chocolate... Para o ano cá estaremos.
Primeira impressão à chegada: o país está igual, o aeroporto também, só nos jornais se nota que o Santana já é primeiro-ministro. Está muito calor em Lisboa, quase tanto como ontem à noite junto ao Grande Canal em Veneza, pelo que daqui se infere que é verdade a berlusconização da vida portuguesa: quando a temperatura política sobe demais, mau sinal para todos nós. É divertido mas não é bom.
Última impressão à saída: por que viajamos nós? Entro no avião, sento-me, fasten my seat belt, alimento-me de sandes que a TAP agora faz o favor de proporcionar aos que viajam em turística, e recordo as parte do livro Cartas de Veneza, do australiano Robert Dessaix (Ed. Gótica, 2002), em que os personagem se interrogavam sobre o que os levava a viajar. A propósito, é um belo livro para se ler numa viagem, sobretudo se tiver uma paragem em Veneza. É uma sensação de proximidade com o autor olhar para as mesmas coisas que os personagens.
Mas sobre as viagens, dizia o Professor Eschebaum, de Dessaix: "Na verdade, um em cada dois livros que lemos é sobre um qualquer tipo de viagem, não é? E estamos constantemente a falar de caminhos da vida... trilhos, estradas, progresso, etapas e por aí fora... tudo metáforas relacionadas com o viajar, se pensarmos bem nisso".
O narrador, que escrevia as cartas em Veneza, tocava num ponto ainda mais essencial, que mais tarde ou mais cedo todos sentimos, quando o cansaço nos abate: "A verdade é que não há muito que fazer em Veneza, excepto ver. não se vem aqui para fazer o que quer que seja, mas simplesmente para ver coisas. Assim são as viagens modernas. Cheias de movimento, mas nada acontece verdadeiramente. Começo a ansiar por outro tipo de viagem".
Se gastamos todo o dinheiro que poupamos em viagens, não será apenas para ver, mas também para aprender, para viver, para nos sentirmos mais vivos, para encontrarmos "sabedoria e êxtase", também escreveu Dessaix, citando Paul Bowles. E pela procura de um certo encantamento.
Pela minha parte, esta viagem aos Balcãs ajudou-me a encontrar mais uma justificação: viajar ajuda-nos sobretudo a encontrar e a perceber o nosso lugar no mundo. Essa evidência tornou-se quase palpável enquanto passava por bairros residenciais na Bósnia ou na Croácia e via as marcas das balas nas casas onde estava roupa estendida na janela.
Primeira impressão à chegada: o país está igual, o aeroporto também, só nos jornais se nota que o Santana já é primeiro-ministro. Está muito calor em Lisboa, quase tanto como ontem à noite junto ao Grande Canal em Veneza, pelo que daqui se infere que é verdade a berlusconização da vida portuguesa: quando a temperatura política sobe demais, mau sinal para todos nós. É divertido mas não é bom.
Última impressão à saída: por que viajamos nós? Entro no avião, sento-me, fasten my seat belt, alimento-me de sandes que a TAP agora faz o favor de proporcionar aos que viajam em turística, e recordo as parte do livro Cartas de Veneza, do australiano Robert Dessaix (Ed. Gótica, 2002), em que os personagem se interrogavam sobre o que os levava a viajar. A propósito, é um belo livro para se ler numa viagem, sobretudo se tiver uma paragem em Veneza. É uma sensação de proximidade com o autor olhar para as mesmas coisas que os personagens.
Mas sobre as viagens, dizia o Professor Eschebaum, de Dessaix: "Na verdade, um em cada dois livros que lemos é sobre um qualquer tipo de viagem, não é? E estamos constantemente a falar de caminhos da vida... trilhos, estradas, progresso, etapas e por aí fora... tudo metáforas relacionadas com o viajar, se pensarmos bem nisso".
O narrador, que escrevia as cartas em Veneza, tocava num ponto ainda mais essencial, que mais tarde ou mais cedo todos sentimos, quando o cansaço nos abate: "A verdade é que não há muito que fazer em Veneza, excepto ver. não se vem aqui para fazer o que quer que seja, mas simplesmente para ver coisas. Assim são as viagens modernas. Cheias de movimento, mas nada acontece verdadeiramente. Começo a ansiar por outro tipo de viagem".
Se gastamos todo o dinheiro que poupamos em viagens, não será apenas para ver, mas também para aprender, para viver, para nos sentirmos mais vivos, para encontrarmos "sabedoria e êxtase", também escreveu Dessaix, citando Paul Bowles. E pela procura de um certo encantamento.
Pela minha parte, esta viagem aos Balcãs ajudou-me a encontrar mais uma justificação: viajar ajuda-nos sobretudo a encontrar e a perceber o nosso lugar no mundo. Essa evidência tornou-se quase palpável enquanto passava por bairros residenciais na Bósnia ou na Croácia e via as marcas das balas nas casas onde estava roupa estendida na janela.
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