08 novembro 2004

A Avozinha América ou as diferenças genéticas entre a Europa e os EUA

Aquela mulher com mais de 70 anos era um retrato da América. Quando visitei o battleship USS Wisconsin, um navio de guerra fabuloso, da segunda guerra mundial (do Pacífico), que está ancorado em Norfolk, a velhota, que era um dos guias da visita, foi uma surpresa. Falava como um soldado ou um velho marinheiro antigamente embarcado naquele navio. Contava como os mísseis Tomahawk tinham sido ali instalados para a última missão operacional do navio durante a I Guerra do Golfo, na presença do Colin Powell, e onde tinham estado alojadas as ogivas com armamento químico - que, esclarece, graças a Deus, não foram usadas. Explicava como "our boys", os dela, tinham dado cabo dos japoneses na II Grande Guerra. Falava sempre num tom onde separava os bons dos maus com uma naturalidade impressionante. Não tinha, e pelo menos não demonstrava, grande piedade das vítimas dos ataques. Muito menos por iraquianos, por exemplo. Esclarecia que os longos canhões à proa não eram "canons", mas sim "guns", como se fosse um sargento-mor a corrigir recrutas, e descrevia-nos como eram as batalhas navais como se tivesse lá estado.

Quando nos afastámos dela, depois de nos ter falado da neta como se fosse uma doida que agora até andava a aprender japonês (vejam lá, a língua do inimigo), o meu colega alemão, jornalista do Merkur (um semanário nacional de grande tiragem na Alemanha), confessou-se impressionado com a naturalidade ou o orgulho com que a mulher falava da guerra e das armas. Lembrei-lhe que a avó dele, tal como as avozinhas europeias contemporâneas daquela avó americana, nunca poderiam ter um discurso igual porque as consequências das guerras na Europa não são apenas os corpos que chegam dentro dos sacos de plástico à pátria. A avozinha da América não sabe o que é ter a casa destruída em cada 20 anos; não sabe o que é ver a sua cidade completamente arrasada pelos raides aéreos do inimigo; nunca soube o que é ter a sua nação dividida pelas armas (a Guerra da sessessão, onde já vai?), nem conhece o ódio entre vizinhos, nem o medo de um inimigo a quem pode ver-se o rosto. Na Europa a guerra é ao pé de nós e ainda há memória. Ele, o alemão cujos avós conheceram o nazismo, concordou. Para a avó americana a guerra foi sempre lá longe, coisa de heróis.

É por estas e por outras, em coisas simples do quotidiano, que descobrimos que a América e a Europa são terras diferentes com outros códigos genéticos.

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