27 dezembro 2005

a music of chance


Sob o efeito alucinogéneo das rabanadas descobri semelhanças entre a notação musical e a notação da sueca. Talvez por não perceber nada de música e muito pouco de sueca, os traços e bolas com que se registam ambas as artes parecem-me ter uma base comum, com origens longínquas no cálculo combinatório e nas teorias do caos. Talvez por não perceber nada de cálculo combinatório ou de teorias do caos. Podemos assim conceber uma música do acaso, minimalista, construída através da interacção inconsciente de quatro pessoas que jogam às cartas num jardim. Um conceito digno de Borges e credível apenas enquanto durar o efeito do vinho do Porto.

12 dezembro 2005

«Proibido estudar neste estabelecimento»

Dos cinco elementos definidores que George Steiner descreve em A Ideia de Europa, há um que me faz sentir verdadeiramente europeu: a cultura de café. O espaço, não a planta. «Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia.» Em Lisboa são o último recurso ou refúgio de quem quer ler e precisa de fugir de alguma coisa. O hábito teve como consequência não intencional o desenvolvimento de estratégias de consumo comuns à espécie. A escolha sábia das bebidas e o ritmo de substituição das chávenas vazias pode prolongar a utilização do espaço por vários capítulos.

10 dezembro 2005

Segundo o Oxford Companion to Philosophy, o riso sofístico (risus sophisticus) é a técnica, identificada por Górgias de Leontini, de destruir a seriedade de um adversário com o riso e o seu riso com a seriedade. É uma técnica bastante eficaz, especialmente se a utilizarmos contra nós próprios. Não nos conseguirmos levar a sério e não nos acharmos grande piada.

06 dezembro 2005

Livro de cabeceira da semana

JEPHSON GARDENS

Agora és estrangeiro em sentido
próprio, com os nervos toldados
por demasiada música. Sentado
na erva de Maio, junto à estufa
das carnívoras – Dragão Vermelho,
Sarracenia flava – a tua Primavera
tortuosa, transplantada.

Enrolas tabaco holandês, procuras
na memória um verso que melhor
explique o lastro das circunstâncias,
uma Inglaterra mais funda, deitada
à sombra da experiência
das palavras. E tal como esse
pequeno, quase imponderado
esforço, não terá sido afinal inútil
tudo o que fizeste na vida?

Rodas e repetições, é assim o tempo
na carne. Mas o que aprendeste
com o primeiro desengano não te preparou
para o segundo, o terceiro e todos
os que se seguiram. Entretanto faz sol
e o mundo existe, é quase uma pintura
de inocente intenção.

Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005

05 dezembro 2005

A ocupação do espaço

A conceito mais brilhante inventado por Jeremy Bentham não está em An Introduction to the Principles of Law and Legislation, o livro em que expôs as bases do seu sistema utilitarista. Auto-ícone, a ideia de uma pessoa se representar a si própria com o seu corpo, depois de morta. O conceito é o da estátua, sem a mediação do granito, e representa um meio termo entre as múmias dos faraós e as estátuas humanas das ruas movimentadas das grandes cidades europeias. Mais interessante ainda é Bentham ter aplicado o conceito a si próprio e poder ser visitado no University College de Londres, na caixa de madeira onde permanece sentado há anos, talvez a pensar nas frases com que iniciou o seu grande livro e que já não regem a sua (não-)existência:

Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will serve but to demonstrate and confirm it. In words a man may pretend to abjure their empire: but in reality he will remain subject to it all the while.

01 dezembro 2005

À borla

«Artigo 31º - O direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada postumamente.» [Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos]

«Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.» [Livro do Desassossego de Bernardo Soares]

Aforismos, empirismo

Ainda não percebo totalmente o conceito de gravata de Inverno, mas ando com o esterno mais quente.
Farto de ter de ceder os louros pelos presentes a São Nicolau, um amigo contou-me que este ano decidiu ter uma conversa com a filha e explicar-lhe que, como se podia ver pelas longas barbas brancas, o senhor já estava muito velhinho, teve um enfarte do miocárdio e morreu, paz à sua alma. Um século depois de Nietzsche ter decretado a morte de deus, alguém declara o óbito do Pai Natal. Não sei se a filosofia ocidental estará preparada para mais este abalo.

23 novembro 2005

Ando a ouvir tanta música de embalar que este blogue adormeceu. O tempo que gastava a escrever, emprego-o agora a mudar fraldas. Sou um homem moderno, qualquer dia vou aí para as manifestações a reclamar o regresso à velha desigualdade entre os sexos e exigir uma quota de tempo diário para mandar umas larachas. Tiaaaagoooo! Acoooorda! Dá aqui uma mãoziiiinha!

Estamos em estado de reanimação. Por favor incomode o doente.

01 novembro 2005

O censor prévio


Rui Rio é um democrata, ninguém duvida. Desde que a democracia satisfaça plenamente a sua vontade, é um democrata. Com maioria na câmara, mais democrata se torna, e ganha contornos de déspota iluminado, que decide o que é de interesse público, e sobretudo aquilo que é do seu interesse próprio. Assim, ontem, no Porto, ele mesmo provou como a democracia é uma coisa frágil e como dentro de um político com fama de sério e honesto pode abrigar-se um pequeno ditador.

Da última vez que entrevistei Rui Rio (para a "Sábado"), antes das autárquicas, ele próprio e elementos do seu stafe tentaram evitar que a entrevista fosse publicada. Rio não gostou de ser confrontado com aquilo que Paulo Morais tinha dito numa entrevista anterior à Visão, não gostou de ser confrontado com algumas das suas contradições, não gostou que a entrevista não tivesse sido aquilo que ele desejaria que fosse. Mas uma entrevista é uma entrevista, não é um tempo de antena.
É pena que ele não compreenda que os titulares de cargos públicos, por melhores intenções que guardem, devem ser confrontados com as suas acções, palavras, intenções. Devem esclarecer, ser claros, e perceber que os jornalistas não devem resignar-se quando os políticos não querem responder às perguntas incómodas. A nossa função é inquirir, duvidar, querer saber mais e garantir que as respostas são reproduzidas tal como foram dadas.

Mas ontem Rui Rio anunciou estas fabulosas e democráticas regras, numa declaração pública, que pode ser consultada no site da SIC:

- ”restringir o seu relacionamento [da Câmara] com os media exclusivamente às matérias de inegável interesse público e evitar todas as que visem objectivos de interesse privado, corporativo ou editorial”;
- ”fazer depender qualquer declaração para a comunicação social sobre matérias do Executivo, de prévio contacto do jornalista com o Gabinete de Comunicação da Câmara”;
- ”acordar com a imprensa apenas entrevistas por escrito, mediante critérios de oportunidade, com regras previamente definidas, evitando ou minimizando assim interpretações especulativas, ou a pura manipulação das respostas”;
- ”o Gabinete de Comunicação da Câmara recorrerá, preferencialmente, à mensagem escrita, através de publicação no site oficial da Câmara e de difusão pelos media”.

28 outubro 2005

Lisboa-Porto num shot


Diz a assitente de bordo:
- Quer um TGV ou uma OTA?
Responde o passageiro:
- Pode ser um TGV, sim, nunca bebi uma OTA...
- eeeerr, é uma Orange+Tequilla+Aniz! - explica ela.
- Hum, prefiro um TGV. A viagem passa mais depressa. Traga-me dois. E um absinto, por favor.

27 outubro 2005

Recordando...


Com Cavaco a concorrer, agora discute-se a presidencialização do regime. Tem piada, porque em 2001, como Sampaio era pouco interventivo, o debate análogo sobre os poderes presidenciais era sobre se o Presidente da República devia ser eleito por sufrágio universal ou por via indirecta. Ele há coisas neste país que mudam com uma facilidade... e ninguém se lembra?

25 outubro 2005

Coincidências

Os ex-PRD Carlos Beato (presidente da câmara de Grândola eleito pelo PS) e Pedro Cannavarro, que foi presidente do defunto partido renovador (para não falar em Ramalho Eanes), apoiam Cavaco Silva. Lembram-se qual foi o partido que, em 1987, apresentou uma moção de censura para derrubar o Governo minoritário do PSD? Sim, foi o PRD. E logo a seguir Cavaco teve a primeira maioria absoluta...

24 outubro 2005

Lembrando, comparando...


"Convocaria eleições no momento em que estivessem esgotadas as hipóteses de obtenção do necessário apoio parlamentar à constituição de um governo. Contraria a minha experiência para avaliar as condições de governabilidade", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial: DN - 11 de Janeiro de 1996.Lembremo-nos de que Guterres não tinha maioria absoluta.

"Eu sou um defensor da estabilidade política. Não se conseguem ultrapassar as dificuldades sem estabilidade. [A dissolução] Só deve ser utilizada em situações muito extraordinárias", disse Cavaco Silva, na apresentação da campanha presidencial II: 20 de Outubro de 2005. Ligeiramente diferente da opinião da década anterior. Para não assustar os socialistas nem os sociais-democratas traumatizados.

"O senhor [dirigindo-se a Jorge Sampaio], não esteve na Alameda politicamete. E sempre esteve nos antípodas de Mário Soares", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial, no debate com Jorge Sampaio e Jerónimo de Sousa na Prova Oral da RTP, a 15 de Dezembro de 1995. Tecerá hoje louvores a Jorge Sampaio para atacar Mário Soares? Ficamos à espera, porque a política tem coisas destas.

"[O Rendimento Mínimo Garantido] gera muitos problemas: desincentiva a procura de trabalho, requer mecanismos administrativos complexos para o seu controlo, dá origem a grandes fraudes e provoca injustiças. Não resolve os problemas da pobreza", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial à Revista do Expresso, 12 de Janeiro de 1996. Manterá a mesma opinião agora?

"Com o poder todo concentrado num só quadrante ideológico, não vejo nada um futuro cor-de-rosa (...). Com tudo cor-de-rosa não antecipo nada de bom para Portugal", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial na mesma entrevista à Revista do Expresso, em 12 de Janeiro de 1996, a dois dias das eleições. Poderá hoje dizer a mesma coisa, quando ainda há mais poder concentrado nas mãos dos socialistas? É claro que não voltará a usar este argumento.

Dez anos é muito tempo...

20 outubro 2005

Adivinhando


Hoje, dentro de uma das suas obras emblemáticas e à hora dos telejornias, Aníbal Cavaco Silva vai dizer que é candidato a Presidente da República.

1 - A sua declaração será curta e incisiva, ao contrário da de Mário Soares que foi longa, fastidiosa, e vazia de conteúdo;
2 - Não vai ter a sala cheia de convidados, mas sim de jornalistas, para evitar colagens excessivas a partidos (ao PSD) e Marques Mendes não deverá lá estar; Mário Soares tinha a sua sala no Altis cheia de notáveis e de gente do PS para mostrar que tinha uma data de apoios;
3 - Vai responder a perguntas dos jornalistas para mostrar que não é aquela figura fechada e antipática de outros tempos, ao contrário de Soares que não quis ser questionado a seguir à sua apresentação (e que toda a vida falou aos jornalistas);
4 - Para já, não fará grandes avisos à navegação socialista e até há-de elogiar o esforço de contenção deste Orçamento do Estado, para não hostilizar os socialistas;
5 - Voltará a apresentar-se como homem providencial que regressa com sacrifício da sua vida pessoal para endireitar as coisas (aliás, tal como Soares);

Quem há 10 ano pensou que o Acabado Silva estava mesmo acabado...

15 outubro 2005

Arquitecto no saco


Meteram o arquitecto no saco. Que será dos meus sábados, a partir de agora, sem aquelas ironias tão finas que quando estão de frente parece que estão de lado e é preciso explicá-las na semana a seguir? Em que sacos hei-de procurar agora prosas saraivadas? Heeelp! Preciso da minha dose semanal de Saraiva.

13 outubro 2005

Ao largo na Graça


Pode. Tire lá a fotografia. Assim 'tá bem? Deixe-m' ajeitar o boné… E o cigarrinho? Vou dar uma passa no cigarrinho. Ficou bem? Sou aqui da Graça, pois, sou daqui. Agora isto há prá’qui muita gente. É a esplanada há uns dois anos. Dois anos? Se calhar há mais... Já custo a andar. Só com a bengala. E devagar. São os anos. Uma data deles. Bailei muito nesses Sant' Antónios. Agora tod'á gente vem p'ráqui. Acho bem. A malta tem de se divertir, não é? Vou andando devagarinho, assim, 'tá a ver. Visto o fatinho, já tá velho, e dou uma volta, vejo a vista, as camones, até assobio a elas, dou pão aos pombos, bato uma manilha ali no largo, quando calha. Já não posso dar no tinto, mas às vezes vai um gole no branco, eh, eh. É assim. Saudinha da boa!

12 outubro 2005

Arqueologia das palavras


Se a Odisseia é a precursora dos Indiana Jones e demais histórias de aventuras, a Ilíada inaugurou os Apocalipse Now de todos os tempos e demais contos de guerra. O Senhor dos Anéis, porém, mistura tanto aspectos homéricos da Odisseia como da Ilíada. É uma guerra e uma busca, uma ida e um regresso. Mas para lá da narrativa, há detalhes que me impressionam na leitura das traduções de Frederico Lourenço para a Cotovia. Como esta arqueologia das palavas, numa história com três mil anos, em que Nestor fala a Diomedes:

"Pois agora para todos se coloca no fio da navalha".

Ou então, pouco mais adiante:

"Hão-de ficar onde estão [os troianos], afastados das naus, ou hão-de regressar à cidade, uma vez que já deixaram os Aqueus na mó de baixo."

Na "mó de baixo" e no "fio da navalha". Há três milénios que usamos estas expressões e eu não sabia. Na Introdução, o tradutor explica que este é o mais antigo registo da frase "no fio da navalha". E há outras coisas tão parecidas às dos nossos tempos...

Relativismo

Sou um puericultor. Mudo fraldas com chichis e cocós, dou banhinhos relaxantes todas as noites, penso em estratégias de embalo, estudo a semiótica do choro, faço massagens na barriguinha para o piqueno aliviar as dores, acordo ao de leve de noite quando a Carla dá de mamar... Não, não vou escrever sobre as autárquicas. Tanto me faz. E dá-me ideia que a consistência do cocó de ontem seria um tema de conversa mais interessante.

06 outubro 2005


"Há, em Veneza, três lugares mágicos e secretos: um na rua do Amor dos Amigos; um segundo nas proximidades da ponte das maravilhas, e um terceiro na calle dei Marrani, perto de San Geremia, no velho ghetto. Quando os venezianos - por vezes malteses - se cansam das autoridades, dirigem-se a estes lugares e, abrindo as portas ao fundo desses pátios, partem para sempre para países fantásticos e outras histórias". - Fábula de Veneza, Hugo Pratt
Tiago e Joana: já têm aqui a cartografia dos portais fantásticos; se os atravessarem para o outro lado, podem prolongar por mais uma horas este dia especial.

04 outubro 2005



De Veneza regressa numa vinheta de 35 mm diante do leão antigo do Arsenal como Corto na Fábula.

02 outubro 2005

«Para Veneza!», exclamou, repetindo o pedido de Aschenbach e estendendo o braço para mergulhar a pena no líquido pastoso que mal cobria o fundo de um tinteiro inclinado na sua frente. «Uma primeira para Veneza! Aqui tem, cavalheiro!» Rabiscou uns gatafunhos largos, polvilhando-os com uma areia azulada contida numa caixa, que escorreu para uma taça de barro, dobrou o papel com os dedos amarelados e nodosos e escreveu do lado de fora. «Que escolha feliz para a sua viagem!», aventurou entretanto. «Ah! Veneza! Que cidade maravilhosa! É fonte de atracção irresistível para a pessoa instruída, tanto pela sua história como pelos seus encantos de hoje!» A fluência e a rapidez dos seus gestos e as frases vazias com que os acompanhava tinham algo de envolvente e distractivo, como se suspeitasse que o viajante pudesse ainda vacilar na sua decisão de partir para Veneza.

Thomas Mann, Morte em Veneza

(Até p'rá semana.)

01 outubro 2005

Washington «Post»


Está a passar no Quarteto o documentário Dentro de Garganta Funda. Apesar de gostar de conhecer a fundo os escândalos da política mundial, não vejo qual é o interesse de assistir a uma endoscopia ao Mark Felt.

25 setembro 2005

A criação do mundo



Para o Miguel, ao quarto dia

Assim como quando uma pessoa morre o mundo acaba, quando alguém nasce o mundo é criado. Para quem tem poucos momentos de vida, não interessa se o universo foi criado há milhões de anos e continua a expandir-se ou se o seu próprio nascimento foi produto de uma evolução a partir de aminoácidos, da substituição de seres estranhos por seres estranhos e de uma longa sucessão de relações sociais determinadas, no fundamental, pelo acaso. Para o Miguel o mundo foi criado na última quinta-feira. E, em certo sentido, também para a Carla e o Vítor.

Tudo foi criado em simultâneo, mas não pode ser conhecido em simultâneo. Todos os povos têm mitos fundadores e, no nosso, ao quarto dia foram criados as estrelas, o Sol e a Lua. «Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra». É um dia importante e está a chegar ao fim. O de amanhã também vai ser comprido: são criados os seres marinhos e as aves. Dorme bem.

23 setembro 2005

O Equinócio da minha vida



Aqui, nesta hora indizível, a cabecita do Miguel assomava-se ao mundo e estreava os pulmoezitos novos. Aqui, neste minuto feliz, às 17h56, no momento do Equinócio de Outono, quando o dia tem exactamente a mesma duração da noite, a 22 de Setembro do ano da graça de 2005, senti aquilo. E isso não se descreve. No primeiro segundo, parece que olhamos para nós mesmos às avessas, como uma personagem de Borges que encontra o seu sósia. Ontem, da primeira vez que o vi em cima da barriga da mãe, umbilicalmente ligado ainda, tudo fez sentido com uma limpidez cristalina mas inexplicável. Todos os pontos do cosmos convergiram ali, enquanto reconhecia o meu filho. Enchi-me de ar, de perfumes de jardins e de rosas e de quatro ventos frescos cardeais e de todos os lugares mágicos e de fantasia do mundo. Viver até agora valeu a pena para ser atravessado por estes segundos de alegria e perplexidade.

20 setembro 2005

A vida d.f.

Em criança, intrigava-me a existência dos meus pais antes de eu ter nascido. Como era possível?Agora mudei de posto. Intriga-me a minha existência depois de o Miguel nascer, daqui a umas horas - o que significa durante esta semana. Dizia-me o meu médico: "Olhe que isso é um corte epistemológico na vida de um homem". Como nunca ouvi dizer que cortes epistemológicos precisassem de anestesia, deve ser porque não doem, mas esta coisa de estar quase a ser pai (e a Carla mãe) deixa-me nervoso, pelo menos um bocadinho, pois. Aí vem a vida d.f. (depois de filhos). Este é um dos meus últimos dias a.f. (antes de filhos). E não serão dias fáceis, que tenho muito que fazer. Apetecia-me andar por aí a apanhar sol e a pensar na vida. Mas, por agora, se tenho saudades é do futuro.

19 setembro 2005

O duelo: Carmona vs Carrilho


Aquilo foi a prova de que afinal eles são como nós, como a gente, piores que o pessoal, a malta, a maralha, a canalha. O duelo Carmona vs Carrilho refuta o argumento de que os políticos estão longe das pessoas, dos eleitores, enfim, do povão. Eles são povo, interpretam na perfeição a atitude discursiva alfamista ou madragoeira, são verdadeiras varinas, naifistas do Cais do Sodré, rufiões da baixaria. Interpretam aquilo que a condição humana tem de mais genuino: o instinto do ataque e o reflexo da defesa, a fúria, o olho-por-olho-dente-por-dente. Ah gandas homens, pá!

Aquilo não devia ter ficado por ali. Se eles fossem cavalheiros... Se aqueles dois rufiões fossem cavalheiros à séria, nunca tinham aplicado tantos golpes abaixo da cintura. Se fossem cavalheiros, no final, quando Carrilho recusou o cavalheiresco aperto de mão, Carmona havia de ter pegado na bengala e quebrado a dita na cabeça dura de Dom Manuel Maria; quando Dom Manuel Maria ouvisse Dom António Pedro a chamar-lhe "ah grande ordinário", havia de lhe dar dois ou três sopapos, já que ele dá a Cara Por Lisboa, e depois marcavam um duelo nas traseiras da Sé e, assim, com sorte, víamo-nos livres de ambos.

Há mínimos a cumprir em política: não basta ser sério, ter ideias e boas intenções, é preciso saber estar, porque é no domínio público que a política decorre. Como é que estes dois homens tratariam um munícipe reclamante? Ao pontapé? O que o debate nos mostrou é que Lisboa será governada por um dos dois, infelizmente.

18 setembro 2005

O nosso blogue foi pela primeira vez bloqueado por um firewall, com a mensagem: The site atraves-dos-espelhos.blogspot.com was blocked, it is in the Restricted Pornography category. É uma grande vitória para nós, mas também é um sinal de que talvez precisemos de elevar a qualidade dos temas e dos textos. Peço-vos por isso que reflictam agora sobre este excerto de um texto de Cícero, que transcrevo na língua em que soa melhor, a original.

Cum enim saepe mecum ageres ut de amicitia scriberem aliquid, digna mihi res cum omnium cognitione tum nostra familiaritate visa est. Itaque feci non invitus ut prodessem multis rogatu tuo. Sed ut in Catone Maiore, qui est scriptus ad te de senectute, Catonem induxi senem disputantem, quia nulla videbatur aptior persona quae de illa aetate loqueretur quam eius qui et diutissime senex fuisset et in ipsa senectute praeter ceteros floruisset, sic cum accepissemus a patribus maxime memorabilem C. Laeli et P. Scipionis familiaritatem fuisse, idonea mihi Laeli persona visa est quae de amicitia ea ipsa dissereret quae disputata ab eo meminisset Scaevola. Genus autem hoc sermonum positum in hominum veterum auctoritate, et eorum inlustrium, plus nescio quo pacto videtur habere gravitatis; itaque ipse mea legens sic afficior interdum ut Catonem, non me loqui existimem.

17 setembro 2005

Inspiração em Sade


Meu caro Tiago,

Tenho uma solução para o problema enunciado por ti no post anterior: há 200 anos, a solução foi encontrada pelo Marquês de Sade. Ele escreveu coisas tão criminosas que conseguiu ir parar à cadeia onde encontrou inspiração para escrever outras ainda mais criminosas.

Ora Sade, frustrado que estava com os prazeres finitos da tortura, assassinato e traição, procura em cada personagem um um crime tão hediondo cujos efeitos sejam eternos, de modo a causar, nas suas palavras: "Um caos de tais proporções que provocasse a corrupção geral ou um distúrbio tão formal que, mesmo depois da minha morte, os seus efeitos ainda se sentissem".

Juliette, uma das suas personagens mais vis, chega a enunciar esse objectivo do autor, Sade. O de cometer "um crime moral, o crime que se comete a escrever". Sendo assim, o crime que pode cometer-se a escrever, ao contrário do que desejarias, Tiago, teria de ser absolutamente inaceitável do ponto de vista moral. Até inacessível, difícil de igualar, por assim dizer, do ponto de vista da maldade.

Mas creio que o Marquês de Sade não levantou a questão dos funcionário públicos. Não era preciso. O Conde José Sócrates já os faz sentir tão culpados por existirem que o melhor era mesmo optarem entre o suicídio ou a escrita de um romance. E um romance faz menos mal à saúde que um suicídio, daí ser mais aconselhável. De preferência, um romance moralmente inaceitável. Talvez seja mais fácil ir parar à prisão sendo funcionário público, por autopunição imposta, do que escrevendo o livro mais execrável que possa ter existido. Mas são os dias que correm. Pelo menos tu és funcionário público: eu não sou isso nem suficientemente malévolo para escrever um romance que valha a pena ser lido...

12 setembro 2005

É sabido que uma boa parte dos grandes escritores do passado passou pela prisão em alguma altura da vida. E nem todos injustamente. Alguns escreveram mesmo as obras que os celebrizaram em celas frias e húmidas percorridas por insectos, com traças a rodearem a chama da vela e o resto das tretas que costumamos associar ao encarceramento no nosso imaginário. Este dado não prova a existência de uma relação entre a mente criminosa e a escrita que tenha escapado a Cesare Lombroso, mas apenas entre esta e a disponibilidade de tempo. Com esta teoria na cabeça tenho folheado o Código Civil em busca de um crime moralmente aceitável e punido com uma pena adequada a um romance. Nada muito extenso, trezentas ou quatrocentas páginas (ou um ou dois anos, se preferirem). Como vivemos em democracia, os únicos que se poderiam adequar não estão lá, os crimes que garantem o estatuto de prisioneiro político.

A acreditar numa reportagem que vi há algum tempo existe uma alternativa mais moderna à prisão: o funcionalismo público. Era sobre o modernismo brasileiro e o estudioso tinha chegado à conclusão de que a maior parte dos grandes poetas e escritores do movimento, como Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto, eram funcionários públicos. A relação escapa-me mas parece-me um bom argumento para uso dos sindicatos e contra a diminuição do peso do estado.

09 setembro 2005

Para a Isabel e o Ruca

Juliet: Three words dear Romeo, and good night indeed:
If that thy bent of love be honourable,
Thy purpose marriage, send me word to-morrow,
By one that I'll procure to come to thee,
Where and what time thou wilt perform the rite,
And all my fortunes at thy foot I'll lay,
And follow thee my Lord throughout the world.

William Shakespeare, Romeo and Juliet

07 setembro 2005

Por falar em brindes de publicações periódicas, acho que desde o Restaurador Olex que nenhum anúncio televisivo contribuiu tanto para a manutenção de um estereótipo como o novo do Jornal 24 Horas. O Jornal está a fazer uma promoção em que oferece, periodicamente, um azulejo. Colecciona-se e, no final, como um puzzle, fica-se com um tabuleiro com o símbolo do Benfica. O estereótipo está na imagem final. Aparece o tabuleiro já completo junto a uma imperial e a um prato de tremoços, como que para demonstrar a utilidade do objecto. Quanto a mim, acho que seria muito melhor se pintassem os azulejos, mas isso já trata de outro vício sobre o qual não vou escrever aqui.
Bernard Mandeville escreveu, na passagem para o século XVIII, Fable of the Bees, um poema filosófico em que procurava demonstrar que os vícios privados podem constituir virtudes públicas. O livro deve ter servido de amparo a muitas gerações de fumadores, opiómanos, coleccionadores de brindes de publicações periódicas mas, tenho que confessar, deixa-me bastante preocupado com a minha fraca contribuição para o bem comum. O problema acaba por ser mais de tradução do que de contribuição. Mandeville fala em vícios (vices) no sentido de defeitos pessoais. Segundo ele, por exemplo, a avareza contribuiria para a prodigalidade, a cobardia para o cumprimento da lei, a luxúria para o desenvolvimento da indústria, a vaidade e futilidade para o comércio, etc. Não sei se isto me deixa mais descansado mas, pelo sim pelo não, vou dirigir-me à repartição das finanças mais próxima e pedir uma redução de impostos.

05 setembro 2005

Discurso de rentrée

While you were gone... arderam muitos campos de futebol de pinhal, caíram alguns aviões de maduro, nasceu o Pedro, o filho da Mafalda, um fenómeno meteorológico com nome de mulher arrasou vários estados norte-americanos, uma cidade foi submersa, Cavaco Silva não se assumiu como candidato à Presidência, o ajudante de Ferreira Torres tentou suicidar-se por ter medo de ser morto e falhou, cientistas descobriram que as vacas britânicas andaram a comer cinza de rituais de cremação hindus, não tive férias.

Lisboa aos meus pés

Entre uma chávena de café de saco e eu, o Castelo, ou o miradouro de S. Pedro de Alcântara, ou a Graça, e os edifícios das Amoreiras, ou o rio lá em baixo, e tanto telhado ondulando até Almada. Ainda bem que há lugares em Lisboa por descobrir. Neste caso, trata-se do 4º andar de um hotel fora de moda na Graça - a Albergaria Senhora do Monte, mais conhecida por estrangeiros que frequentada por lisboetas. Pode tomar-se um pequeno alomoço ou beber um copo à noite com a melhor de todas as vistas sobre Lisboa. Recomendo.

01 setembro 2005

A bochecha da República


Há Repúblicas que têm bustos. Portugal tem bochechas.

Mais providencial que isto era difícil. "Como poderia eu abster-me de participar, neste momento de crise, de desorientação e de indiferença, quando amplos sectores da sociedade civil e da política me pediram tão insistentemente para avançar?", disse ontem Mário Soares quando apresentou a candidatura a Belém.

Primeiro: não podia abster-se de participar. Porque não pode a República viver sem Soares? Os cemitérios estão cheios de gente insubstituível e de homens providenciais. D. Sebastião nunca chegou a aparecer, houve um dia que Salazar morreu, Sá Carneiro desapareceu, Cunhal foi-se e o país por aí continua. Caso Soares se abstivesse de participar, que desgraça se abateria sobre nós?
Segundo: a crise e a desorientação. Imaginamos que contributos poderá Mário Soares trazer para afastar esta crise que nos sufoca? Que norte nos apontará, para orientar a nossa deriva e para combater a nossa indiferença? A indiferença acentua-se quando as pessoas se deparam sempre com a mesma coisa, as mesmas caras ao longo dos anos...
Terceiro: os apelos da sociedade civil e política. Ao desespero de Sócrates, Soares respondeu: vamos lá dar cabo do Cavaco. Vamos ver como correm os debates, vamos ver... Todos os "basta!" que Soares disse nos últimos tempos vão ser-lhe atirados à cara durante a campanha e alguém dirá: com esta história recente, quem vai acreditar numa palavra do que o senhor diz?

Porém, se todos os Guterres e Vitorinos desta vida fossem menos egoístas e tivessem a disponibilidade viril para o combate que este homem de 80 anos mostra, não haveria cromos repetidos na nossa colecção.

Foto: Jean Gaumy, Magnum Photos, 1975

31 agosto 2005

A política e as sombras

Manuel Alegre abandonou o quadrado. O homem que não se rende, rendeu-se. Bravata, bravata. D. Quixote foi traído.

Segundo a Lusa, afirmou ter recebido "palavras de estímulo" de José Sócrates para se candidatar à Presidência da República, mas ressalvou: "É melhor não contar o resto". Mesmo assim, contou um bocadinho: "Como ninguém avançava para enfrentar Cavaco Silva, o secretário-geral do partido pediu-me para reflectir, e quando fiz essa reflexão apareceu outra solução". Não é bonito, não. Basta! basta!, já ninguém acredita nesses bastas nem nos vou lá eu!, vou lá eu! Não resta grande coisa em que acreditar.

A política é cada vez mais um jogo de sombras, onde ao movimento de um corpo corresponde na sombra a sensação do movimento contrário.

30 agosto 2005

O fósforo da Europa

O artigo da página 26 da Economist desta semana começa assim:

"To your right, you can see Portugal burning." On a flight leaving Lisbon this week, passengers heard that gloomy advice as they gazed down at the smoke bilowing up from the pines and eucaliptus trees".

Isto visto pelos olhos dos outros ainda soa pior.

29 agosto 2005

Mentiras

A historiadora Maria de Fátima Bonifácio disse numa entrevista à "Pública" de domingo que o sistema político está baseado numa mentira desde que Durão Barroso prometeu o choque fiscal e depois aumentou o IVA. Sócrates faz parte do retrato. "De que serve ter uma maioria absoluta, como Sócrates tem, quando ela foi conquistada através de uma mentira qualificada?". Outra vez a promessa de não aumentar os impostos e a acção em sentido contrário. O problema é mais grave do que uma promessa não cumprida. A questão é das promessas que são cumpridas ao contrário. Prometo descer e depois aumento. Prometo não aumentar e depois a primeira coisa que faço é o inverso.

Desta vez, Fátima Bonifácio tem razão. O sistema está minado. Os votantes não têm razões para acreditar no seu próprio voto. O futuro é uma lotaria. A campanha eleitoral é uma farsa. Está caducado o contrato entre eleitos e eleitores. A situação do país não me impressiona: um político honesto, que prometeu não aumentar os impostos, devia arranjar outros recursos para não comprometer o compromisso eleitoral. E logo os impostos, um dos aspectos mais centrais à relação entre os cidadãos e o Estado.

"[A moral] em política é fundamental. As pessoas podem ser ignorantes mas não são estúpidas", diz Fátima Bonifácio. O actual regime está ou não esgotado?

24 agosto 2005

Dia do padroeiro


Hoje, 24 de Agosto, é o dia do nosso padroeiro aqui no blogue, o que devia ser evidente, tendo em conta a frase que escolhemos como citação inaugural. O próprio nome, Através dos Espelhos, é muito inspirado nas leituras de Jorge Luís Borges (não é Tiago?), que faria hoje 106 anos a contar-nos coisas extraordinárias.

Para comemorar o dia, mesmo com uma enxaqueca terrível, arrastei-me até à estante, escolhi um volume das Obras Completas, da Teorema, ao acaso (saiu-me o segundo), e abri uma página do livro ao acaso (foi a 249): Estavam lá três versos propositados e adequados à efeméride.

Onde está a memória dos dias
que foram teus na terra e que teceram
fortuna e dor e foram para ti o universo?

21 agosto 2005

Madrugadas à minha porta


Um tipo preto de cabelo assim meio à rasta perguntou-nos que horas eram. Eu disse: "Seis e um quarto". O polícia à paisana, ao meu lado, respondeu-lhe mais alto: "É meidia". Ainda não tinha nascido o sol.
- Foi este homem que você viu, está a reconhecê-lo? - interrogou-me o agente.
Uns três ou quatro polícias dominavam o ladrão, um branco cheio de agilidade, que tinha acabado de assaltar o externato do meu prédio, fugindo com um salto directo do primeiro andar para o chão. Chorava baba e ranho e, ao que parece, tinha a mochila cheia de máquinas de calcular. Afinal, um pobre diabo de quem não vale a pena ter pena. Todas as noites deve fazer o seu servicinho. Fui eu que chamei a polícia, depois de ouvir o barulho dos vidros partidos. Foram rápidos a chegar e eficientes a actuar. Não fosse...
- É esse mesmo. Com a t-shirt branca, o boné e a mochila cinzenta - disse eu, apontando o gatuno.
No meio da confusão, o negro das horas não desarmou e voltou à carga, direito ao polícia - os vapores e madrugadas do Cais do Sodré são maus conselheiros. "Eu só queria saber as horas, meu, por que é que tás a dizer que é meidia?"
Levou um estalo. Dois estalos, três estalos. Ou mais. Com força.
- Já vi a matrícula do carro, o meu pai é advogado, moçambicano! - berrou, atordoado.
- E o meu filho é juiz! - respondeu o agente.
Não cheguei a perceber se o mano estava a ver que os paisanos eram da polícia. Voltei para casa. Ainda dormi, apesar de tudo. E ainda estou a pensar o que levou o chui a esbofetear um desgraçado cujo único crime foi embebedar-se, perguntar as horas e tornar-se num chato.

20 agosto 2005

Lembro-me vagamente de estar com a minha prima Guida a arrrancar pernas a carochas no quintal da minha avó Mariana; lembro-me vagamente de aprender a andar e bicicleta na casa da minha avó Maria; lembro-me vagamente de ter morado em Ferreira do Alentejo e um dia ia sendo atropelado à porta de casa; lembro-me vagamente do meu primeiro dia de aulas da primeira classe, eu, o Gerardo, o Alberto e o João Gabriel, todos sentados na mesma carteira, das antigas, inclinadas, com lugar para tinteiro, enquanto a D. Lucinda Neves e a D. Maria Augusta, as professores, dividiam a aula... lembro-me de muitas coisas desgarradas, vagamente...

De que é feita a nossa memória? Recordamo-nos mal de coisas que adoraríamos lembrar, e fazemos um esforço danado para esquecermos outras memórias que não deixam de nos assombrar.

Acabei de ver o filme O Despertar da Mente em DVD, com Jim Carrey e Kate Winslet, lamentavelmente perdido no cinema. Quem o viu, sabe do que estou a falar. Decididamente, um dos filmes da minha vida. Pelo menos hoje é.

18 agosto 2005

O acto poético

É bonito ver quem hoje ainda olhe para estas coisas da política com romantismo. O proto-candidato presidencial Manuel Alegre lança espinhos em redor, qual D. Quixote de rosa em punho a caminho de Belém. Sem o sentido da amizade, diz ele, pensando em Soares, "corre-se o risco de se perder a alma ou o próprio sentido da política".

A ideia de se ter alma ou de se ser um desalmado é interessante na boca de um socialista que fala de um suposto amigo.

Proclama ainda Alegre, pensando em Soares mas também em Cavaco, que "não há salvadores da pátria nem homens providenciais". Pois não. Por acaso já tínhamos reparado: ninguém tem salvo a pátria nos últimos tempos, antes pelo contrário; e todos os homens que Providência nos legou se revelaram um desastre.

Afinal quem é Alegre? Nem salvador nem enviado pela Providência, é o poeta irredutível no seu quadrado que traz a alma à política. É bonito, mas não se percebe muito bem para que serve.

14 agosto 2005

Um mês

Nos últimos dias o Miguel tem-se esticado muito, já lhe falta o espaço. Mexe-se, soluça, espeta os pés no diafragma da Carla. Às vezes sossega quando pomos os auscultadores na barriga e um disco de Vivaldi no leitor. Outras vezes mexe-se ao som da música, mas com mais suavidade. Imagino como será ouvir uma sinfonia dentro de uma piscina aquecida. Falta um mês.

12 agosto 2005

OTArios (adenda)

Afinal, há artigos de opinião de ministros que revelam mais sobre os seus autores do que sobre as políticas do Governo. A argumentação baixa de Mário Lino ontem, no Diário Económico, e a tentativa de iludir - com omissões - aqueles que mais não fazem do que pedir responsabilidades ao Governo, mostra a qualidade da gente que nos governa. (ler o editorial de José Manuel Fernandes, no Público - sem link)

Decoro

Obrigatório apreciar a fina ironia do artigo de Sérgio Figueiredo, no Jornal de Negócios de hoje, sobre o "Haja de Decoro!" com que Mário Lino, ministro das Obras Públicas, pontuou o seu texto de opinião que ontem foi manchete no Diário Económico. (ainda não há link)

OTArios

Ser contra ou a favor da Ota ou do TGV pode revelar o partidarismo de alguém, mas pouco ou nada diz do que pensa politicamente. Podem discutir-se os pressupostos da decisão do Governo: se está bem fundamentada, quais serão as consequências para os cidadãos, para as contas públicas, etc. Se a política se resume a discutir sim ou não à Ota, então mais vale contratar uma consultora internacional e pôr os seus diligentes colaboradores em S. Bento, a tomarem decisões racionais, fazendo tempos de antena explicativos na TV em Power Point. Aos políticos exige-se mais do que esse positivismo: que tenham por detrás um conjunto de valores perceptíveis que justifiquem ser contra ou a favor das Otas e dos TGV. Mas isso não se vê nem no PS nem no PSD: desde os ministros que escrevem artigos a explicar essas opções e que nem nesses artigos as conseguem justificar, aos detractores que se ficam pela argumentação instrumental, tudo não passa de mero tacticismo.

11 agosto 2005

Entrevista com o Diabo

Quando entrei no elevador o Diabo já lá estava. Fingi que não dei por ele, apesar dos cornos vermelhos, do tridente, da cara toda encarnada, queimada das temperaturas infernais, e pior: tinha um ar normal o que, como todos sabemos, é o maior truque usado para nos enganar. O Demónio parecia fazer de conta que era um dos executivos do outro andar. Mas não: eu ia carregar no botão do sexto andar, mas a luz já estava acesa. Hesitei. Nunca tinha encontrado um anjo. E ia partilhar um metro quadrado com o Diabo. Serei eu Fausto, pensei? Vai querer comprar-me a alma, mas desta vez o jackpot do Euromilhões é só de 25 milhões, e isso não compensa. Vai simular uma queda do elevador - como aliás costuma acontecer a péssimos ascensores que passam a vida a cair para o piso menos cinco - e entretanto corromper-me para o resto da vida? Não. Ele há Diabos bons, ou tão só pobres Diabos. Saiu antes de mim. Dei-lhe passagem, sou um cavalheiro. E perguntou ao pessoal que estava na máquina do café: "O Miguel está? Tenho isto para lhe entregar." E estendeu a mão com o novo detergente de sanita da Sonasol, "para acabar com o cheiro infernal". O pessoal riu. "E você tem de se vestir assim só para entregar isto?" Ele há gente que para ganhar a vida já faz o que for preciso.

10 agosto 2005

Lisboa entre as 7 e as 8

Ao amanhecer no Miradouro de S. Pedro de Alcântara viam-se as colinas da cidade morraçadas de humidade e de luz. Lisboa é transparente ao sol e opaca à sombra.

No Príncipe Real, já para os lados de S. Bento, há uma ervanária que dá pelo nome de Sô Zé, que tem uns azulejos com o número 666 por cima da porta. Ora Sô Zé, ao que sabemos, é o nome de um bruxo que já foi José Esteves, antigo bombista nos anos quentes e que guarda um segredo sobre Camarate....

Na Rua António Maria Cardoso, um vagabundo dava pontapés nas coisas e gritava makeké!, makeké!, pensam que isto é tudo deles!.

Um pouco mais abaixo, as obras na antiga sede da PIDE estão avançadas na direcção de um empreendimento de luxo. Uma parte do terceiro andar onde ficavam os presos políticos já foi abaixo. Um país sem memória não é uma nação. Makeké!

09 agosto 2005

Contradição maciça

Yellowcake não é uma sobremesa de limão. Ontem os iranianos, à vista de toda a gente, deitaram um barril de pó de urânio nos centrifugadores da fábrica de Ispahan, para produzirem urânio enriquecido, o que possivelmente um dia lhes permitirá ter "a bomba". A administração dos EUA, ao que parece, concorda com um recurso para as Nações Unidas. Os falcões que tiveram de inventar provas para invadir o Iraque estão subitamente umas pombinhas brancas de raminho de oliveira no bico. É bonito...

05 agosto 2005

Contributo para uma referência a PSL

Ele disse ao Expresso ser o político português com mais hits no Goolgle. Todos os dias, pela manhã, Pedro Santana Lopes faz esta pergunta ao seu computador:

"Google meu, google meu, existe algum político português com mais referências na Internet do que eu?"

"Não, mas cuidado, meu lindo, porque as referências são muitas mas nem todas são boas, nem nos blogues de direita... Agora há outro primeiro-ministro, jovem, belo e grisalho, chamam-lhe cabeça branca de neve, e só ele poderá destronar-te, tal é o caminho que as coisas levam", responder-lhe-ia o computador...

Ar condicionado

Como a ventoinha perde utilidade a mais de 35º, fomos à procura de uma sala com ar condicionado para passarmos algumas horas da noite mais quente do ano. Encontrámos uma que estava a passar o Faces de John Cassavetes. Já se devem ter escrito muitas crónicas sobre o filme, por isso escrevo apenas sobre o que me pareceu mais surpreendente: as mudanças inesperadas de humor em pessoas que tentam voltar a ser felizes nas suas vidas convencionais e condicionadas. Estamos de volta à ventoinha.

03 agosto 2005

Vi, perto do Calvário, dois rapazes a comentarem em língua gestual o corpo de duas raparigas bronzeadas, de regresso da praia. Não sei se eram mudos ou se ficaram simplesmente sem palavras.

31 julho 2005

Escala de Glasgow

Percebemos que o verão está a ser anormalmente seco quando um dos nossos cactos entra em coma e definha. Só não consigo avaliar a gravidade da situação porque é difícil tentar aplicar a Escala de Glasgow a uma planta. Embora já anteriormente parecesse estar em estado vegetativo, sempre atribui esse facto a uma personalidade introspectiva e a leituras de Schopenhauer nos tempos de juventude na estufa.
Voltando a Alfred Jarry, o escritor francês precursor dos surrealistas, diz-se que gostava de contrariar os costumes burgueses e por isso comia muitas vezes a refeição por ordem inversa, começando pela sobremesa, e usava uma camisa feita de papel onde desenhava uma gravata. Este último aspecto parece-me, nesta fase da vida, bastante interessante. A função social da gravata como alicerce da sociedade Ocidental ainda é algo que me custa a aceitar. Infelizmente, nunca tive jeito para o desenho.
Conta Arthur I. Miller (Einstein, Picasso. Space, Time and the Beauty that Causes Havoc) que, sob influência de Alfred Jarry, Pablo Picasso passou a usar um revólver Browning com cartuchos de pólvora seca, que disparava na direcção de admiradores que o inquiriam sobre o significado dos seus quadros, da sua teoria estética, ou de pessoas que simplesmente o aborreciam. O meu lado pacifista não gosta do conceito. O meu lado de animador cultural acha que faria maravilhas pelo Chiado.

«9 Songs», Michael Winterbottom

Há filmes que é desconfortável ver numa sala de cinema lotada. Especialmente se durante uma cena explícita de sexo oral temos de um lado um senhor de 50 anos com ar de quem se enganou no filme e do outro um casal que veio só pela música. A impressão geral é a de que algumas cenas foram filmadas apenas para chocar e de que há filmes pornográficos com enredo mais elaborado. As letras das canções contam a história que os actores estão demasiado ocupados para contar e há boas imagens da Antártida. No final, ficaram mais pessoas a ler os créditos finais do que é habitual.

29 julho 2005

Chuva na areia do deserto

Entre informação realmente importante, um artigo da revista Ler refere que existiu uma cidade no norte do Egipto devotada ao culto do falo do corpo desmembrado do deus Osíris, nunca encontrado por Ísis. Há muitas cidades antigas soterradas pela areia dos desertos e das praias, mas não conheço muitas com estas características. O Egipto tem Per-Medjed, Portugal tem Tróia e o falo perdido do Caniço.
(Também seria interessante saber se se faziam procissões no Antigo Egipto e quem é que carregava o andor, mas não me parece que o problema esteja entre as prioridades da comunidade arqueológica.)

28 julho 2005

Soares e Cavaco: uma história

O primeiro encontro político entre os dois homens correu mal: começou com um toque humorístico de gosto duvidoso e acabou num acesso de fúria de Mário Soares, que Cavaco Silva nunca esqueceu. No dia 24 de Maio de 1985, o professor recém-eleito líder do PSD, entrou na sede do PS, na Rua da Emenda, a desviar-se de vasos de flores e arbustos colocados estrategicamente para lhe dificultar a passagem. Era uma brincadeira dos socialistas, por Cavaco Silva ter dito aos jornalistas que aquela ia ser uma reunião de trabalho sobre o futuro da coligação PS/PSD, e não uma “cimeira de flores”. Apesar de ter ficado conhecida exactamente como a “cimeira das flores”, a reunião foi um passo para a queda do Governo do Bloco Central. Durante a conversa, em vez de usar da sua habitual bonomia, o secretário-geral socialista encolerizou-se, falou alto, perdeu as estribeiras… Claramente, Soares subestimou Cavaco, como voltou a fazer de outras vezes. Não se adivinha o futuro.

Mais tarde, no segundo livro das entrevistas a Maria João Avillez, Mário Soares chegou a reconhecer que foi “totalmente desagradável” para com Cavaco naquela reunião. “ A questão das flores foi apenas um simples toque de humor em resposta a uma alusão que Cavaco fez”, justificou Soares à jornalista. E descreveu-o: “Mas o professor, nessa altura, apresentava-se muito rígido e contraído – ao dar os primeiros passos na grande política e não aparentava grande sentido de humor”. Aliás, nunca o teve.

Mas não havia razões para rir, naquela época. E a conversa deve ter sido tão feia que o próprio Cavaco Silva recorda este episódio sempre que descreve os momentos de maior tensão vividos com Mário Soares ao longo dos 10 anos de coabitação. A propósito de um desentendimento ocorrido em 1991 – por causa dos acordos de paz para Angola -, Cavaco descreveu assim, no segundo volume da sua Autobiografia Política, outro ataque de cólera de Soares: “A minha argumentação de que deveria ser eu a fazê-lo [a presidir ao acto de assinatura dos acordos entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi], como chefe do Governo, não só não o convenceu como o irritou profundamente. Levantou a voz, zangadíssimo e ameaçador e quase não me deixou falar. Era uma táctica que utilizava quando queria impor os seus pontos de vista ao interlocutor, e que eu conhecera a primeira vez na célebre cimeira das flores (…). Descarregou sobre mim a sua fúria e voltou a avisar-me para ter cuidado”. De cada vez que Soares fazia uma cena, Cavaco punha “uma cara séria”. Respondia-lhe como diz ter feito da primeira vez que se desentenderam enquanto Presidente da República e primeiro-ministro. Nas suas memórias, Cavaco conta que mantinha a fleuma: “Delicadamente, mas com firmeza, disse-lhe que não valia a pena falar alto porque eu ouvia bem, que não era por isso que me convencia e que eu não saía dali sem lhe expor os meus argumentos”.

Soares e Cavaco tiveram 310 reuniões semanais a sós, habitualmente às cinco da tarde, no Palácio de Belém, durante 10 anos de convivência mais ou menos forçada. Portanto, os dois homens que devem confrontar-se em Janeiro conhecem-se bem, apesar das desconfianças mútuas. “Em geral, [Mário Soares] apresentava-se nas nossas reuniões com o ar afável e simpático que fazia e faz parte do seu estilo político”, conta Cavaco na Autobiografia. Antes de começar a expor os assuntos em agenda, o professor “observava o Presidente para tentar descortinar a sua boa ou má disposição”. Na entrevista a Maria João Avillez, Soares contradiz o ex-primeiro-ministro: “Nunca levantámos a voz”. E classifica as suas relações com Cavaco como “cordiais, embora talvez um pouco distantes e – digamos – impessoais”.

Andaram quase sempre de candeias às avessas. Sobretudo na segunda maioria absoluta do PSD (1991-1995). Soares fartou-se de vetar diplomas de Cavaco, sem o avisar previamente nas reuniões semanais; mas Cavaco também decidiu apoiar a recandidatura de Soares a Belém (em 1990/91) sem antes o informar; Soares abria as portas do Palácio de Belém a todos os críticos do Governo do PSD e promovia Presidências Abertas devastadoras para o Governo; e Cavaco incluía-o naquilo a que chamava “forças de bloqueio”; já no fim do cavaquismo, o Presidente chegou a ponderar a dissolução da maioria do PSD no Parlamento e a convocação eleições antecipadas, ao mesmo tempo que patrocinava o congresso "Portugal que Futuro!"; quase em simultâneo, o primeiro-ministro ironizava que era preciso ajudar Soares a acabar o mandato com dignidade.

Geralmente, em momentos de discórdia, o Presidente soltava umas ameaças veladas ao primeiro-ministro. “Olhe que a sua posição vai voltar-se contra si”, avisava. A desconfiança era mútua e durou uma década. É muito tempo.

A campanha das presidenciais promete.

27 julho 2005

Como Deus dispõe deste laico...

Em 1997, Mário Soares deu a resposta que se segue a Maria João Avillez (no 3º volume das entrevistas - O Presidente), que lhe perguntou se ele tinha pensado em não recandidatar-se a um segundo mandato em Belém:

«Como o primeiro mandato correu francamente bem, pensava não ter qualquer interesse pessoal em renovar a experiência.
Depois, 10 anos é um longo período. Para o que pensava fazer depois de ser presidente com algumas legítimas ambições intelectuais que me falta concretizar e ainda outros projectos, considerava que abandonar a vida política com 66 anos era, para mim, o mais indicado, ficando com algum tempo para o que imagino ter ainda que fazer: escrever, reflectir, agir no plano cultural e cívico, sem responsabilidades político-partidárias ou de Governo; viajar, conviver com pessoas interessantes, transmitir experiência que adquiri em termos de poder ser comunicado aos outros. Mas o homem põe – como diz o Povo – e Deus dispõe…

Felizmente que a Constituição não permite um terceiro mandato – sábia disposição legal!»
(ver pág. 210)


Se a Constituição é tão sábia, haverá quem seja menos avisado...

26 julho 2005

O engodo

Com esta conversa de Mário Soares à Presidência (MASP III), acabou-se a discussão sobre a demissão do ministro de Estado e das Finanças e sobre a crise em Portugal. Já tinham reparado, não?

25 julho 2005

A loucura do geronte

No mês seguinte [em Maio, Mário Soares] voltou à carga para garantir que apoiaria Alegre se ele fosse candidato e recusou a sua própria candidatura "Nem numa situação-limite." Soares explicou, há dois meses, que a sua candidatura "seria uma loucura" porque "a vida política tem de se renovar e não pode estar sempre ligada às mesmas pessoas". DN de hoje.

Nem mais.

19 julho 2005

«[E]m tempos li muitos livros, hoje raramente leio. os livros cansaram-me, devoraram-me a pouco e pouco o prazer de ler.» Durante os últimos anos revi-me neste verso do Al Berto. Ou pelo menos na última parte, porque o ritmo de leitura não diminuiu, aumentou. Mas, lidos vários ao mesmo tempo ou com a urgência de não poder perder tempo a não ler, muitos sabiam apenas a papel. Não sei qual foi o livro que me curou ou se os livros são a cura para alguma coisa. Sei que uma vez restabelecido da minha moléstia aproveitei para ler alguns livros adiados. Nunca mais voltarei ao prazer das tardes de leitura no meu quarto suburbano ou das férias grandes transmontanas, mas estou bastante próximo. Para testar a minha condição decidi ler um livro que a generalidade dos meus amigos me aconselhou a não ler, A Sibila da Agustina Bessa Luís. Corri o risco de uma recaída em plena convalescença, mas cheguei à última página. Reconheço o génio, a densidade das personagens, o conhecimento da natureza humana e das relações humanas, a utilização ampla do vocabulário da língua. Mas não é o meu tipo de história.

Momento Raul Brandão

As manhãs da praia de Espinho, no Verão, parecem-se com as das corridas para reclamar terras do antigo Oeste. As pessoas vão chegando e reclamando a sua parcela de areia com os marcadores geométricos dos tapa-ventos. Criam quintais ou hortas provisórios com estacas que mantêm os panos grossos e coloridos esticados, preparados para o vento que não sopra. A paisagem parece uma versão pós-moderna do emparcelamento de terras transmontano de muros de pedra a separarem leiras verdes. A posse caduca com o dia.

Depois da sabática

Agora que já consigo fazer o nó da gravata em menos de cinco tentativas sobra-me finalmente tempo para escrever alguns textos. Mas não muito longos que ainda tenho de aprender a passar o vinco das calças.

O senhor dez por cento

Do alto do seu pobre vencimento, não tendo problemas em ficar sem aquela parte que lhe paga o clube de golfe, mais os serviços do caddy, o presidente do BPI, Fernando Ulrich, defende que os portugueses deviam aceitar prescindir de 10% dos seus salários. Isto é que é um incentivo, hã. Ganda homem, a apelar à coragem do povo e ao sacrifício pela nação. O sacrifício como ideal de vida. Terá lido Nietzsche? Valha-nos estes, que dão o exemplo... Olha: Toma!

18 julho 2005

Zero e absoluto

Six Feet Under terminou agora mesmo na 2:, com um morto a recomendar a um vivo aquilo de que devíamos lembrar-nos todas as manhãs ao olharmos a imagem devolvida no espelho: estás vivo, por isso tens toda a liberdade.

Entre o zero e o absoluto, há nada. Deste lado, onde tudo pode acontecer, convém que coisa alguma seja vista como uma fatalidade. O destino só existe quando resta o escuro, o silêncio e o apagamento eterno. De resto, até ao dia zero, todas as possiblidades são infinitas.

17 julho 2005

Cabriolices

Estes país está preso por arames. Quando em 2006 o crescimento das exportações e parte da economia estão dependentes do Cabrio, um novo modelo produzido na AutoEuropa, percebemos a fragilidade deste país liliputiano. O ICEP devia fazer um anúncio por todo o mundo, assim do género: Compre o Cabrio. Apanhar vento na moleirinha faz bem. Por tugal precisa de si!

16 julho 2005

Gentis e perigosos

"Ele era um homem realmente gentil, ensinava miúdos realmente mauzinhos e todos gostavam dele", disse uma das crianças de Hillside ao Guardian. Um dos pais, falando à BBC à porta da escola de Hillside, disse que Khan "era um bom homem". "Quando contei à minha filha que ele era um dos bombistas ela não acreditou. Tive de comprar um jornal e mostrar-lhe". in Público de sexta-feira, dia 15 de Julho. Depoimento sobre um dos bombistas londrinos

Já vi gente indignada com estas descrições sobre os terroristas, mas o problema não é novo. Ouvi um colega a argumentar que estes filhos da puta são filhos da puta sobre os quais todos se deviam recusar a fazer descrições simpáticas. Mas temo que as coisas sejam um pouco mais complicadas. Aqueles que praticam o mal contemporâneo, mesmo o mal mais profundo, não andam por aí como demónios, de chifres e cauda. Antes pelo contrário.

O livro Eichmann em Jerusalém, de Arendt coloca o mesmo problema, entre o mal e a malícia, embora no caso dos terroristas islâmicos a questão da intencionalidade seja bastante clara. Depois de analisado por um grupo de psicólogos e psiquiatras, Eichmann, um dos arquitectos das Solução Final, foi considerado absolutamete normal, assustadoramente normal, um pai de família comum. Isto é que é assustador.

Arendt entendia o tribunal se devia ter dirigido a Eichmann assim:
"Estamos apenas preocupados com o que você fez, e não com a possível natureza não criminosa da sua vida interior e dos seus motivos, ou com as potencialidades criminosas dos que o rodearam".

Há muito tempo que devíamos saber que homens gentis são capazes das maiores barbaridades.

13 julho 2005

Terrorismo em Portugal


"Portugal contabiliza 479 militares mortos no Iraque só nos últimos seis meses"
ou
"Ataque terrorista provoca 479 mortos em Lisboa"

Imaginemos que um destes dois títulos fazia manchete nos jornais portugueses. Conseguimos imaginar as discussões que haviam de seguir-se, toda a barafunda de opiniões, análises, medidas do Governo, protestos e manifestações, emissões em directo, emissões especiais, a nossa vida quotidiana em suspenso...

A citação que se segue é a verdadeira:

"Entre 1 de janeiro e 12 de Julho de 2005, morreram nas estradas portuguesas 479 pessoas".

A frase faz parte de um texto notável do Hugo Gonçalves na revista Atlântico, com o título "Relatório de um acidente", onde uma mãe fala de um filho que morreu num acidente de automóvel. Li o texto ontem, e consternou-me.

Hoje, a minha consternação disparou. O meu pai telefonou-me e deu-me a noticía. A noite passada, em Grândola, mais um acidente, choque frontal, três mortos, dois feridos, um deles grave. Eu conhecia-os a todos. Tanto ao bêbado que saiu fora de mão, como aos outros que iam sossegadamente na sua viagem. São mais três, a juntar a todos os casos que testemunhei, todos em Grândola, os da minha família, os meus amigos, os meus conhecidos...

Este terrorismo silencioso devia revoltar-nos. Mas nada acontece. Esta vergonha devia pesar na consciência da nação, como se todas as catástrofes que sobre nós se abatem fossem culpa nossa enquanto não resolvêssemos esta doença civilizacional.

Este terrorismo negligente explode todos os dias. Nenhum Governo teve a coragem de impor o grau zero de alcoolémia ao volante. Em 2001, Guterres quis baixar o limite de 0,5 e recuou, na mais clara demonstração de fraqueza de um Governo. Uma infâmia. Vende-se álcool nas bombas de gasolina. Tudo se tolera. A morte tolera-se. Em Portugal, quando se circula devagar é por medo da multa, não por medo da morte. Pode-se apoiar a invasão do Iraque, tomar medidas anti-terroristas, dar meios aos serviços de informações, falar até a exaustão sobre isto tudo, os pobres nos países pobres revoltados contra os ricos nos países ricos, mas fecha-se os olhos ao que se passa debaixo do nosso nariz.

É estranho. O combate à sinistralidade devia estar à frente da luta contra o défice. Nem deputados nem Governos assumem esta bandeira. Por quê?

Só mais esta frase da Atlântico: "Segundo um estudo da Universidade Nova de Lisboa, mais de metade dos condenados por homicídio por negligência, em casos de desastres de automóvel, continuam a conduzir. Em 2001, 51 por cento dos crimes contra a vida humana forma cometidos em acidentes de viação".

Os bárbaros acham sempre que são civilizados.

12 julho 2005

Mais uma resposta provável

"[Gijs] de Vries [o senhor terrorismo da UE] não é responsável por uma CIA europeia, não tem agentes no terreno. Antes cumpre o papel de observador atento às ameaçs terroristas que pesam sobre a Europa. (...)
A UE carece, de facto, de uma agência de segurança europeia credível, dotada de um corpo de análise e de operações. E porquê? Porque a União é, hoje, uma área política e economicamente integrada. O espaço Schengen permite que os cidadãos viajem sem passaporte e as deslocações para zonas da UE exteriores a Schengen foram, igualmente simplificadas. Aliás, seria absurdo implementar padrões de segurança ou sistemas nacionais distintos para proteger as fronteiras externas da UE.
"

Excerto de um texto de Wolfgang Munchau, colunista do Financial Times, publicado hoje no Diário Económico.

11 julho 2005

Outras respostas possíveis

O Público de domingo publicou um artigo de Timothy Garton Ash sobre os atentados. Tem mais algumas repostas interessantes.

«Isto não significa que a minha resposta a estas atrocidades seja passiva. Mas a resposta correcta não está - como os comentadores da estação televisiva americana Fox News querem fazer crer - em duplicar os ataques militares para fazer desaparecer "o inimigo" no Iraque ou noutro país qualquer. A resposta está num policiamento especializado e numa política inteligente. Recusando calmamente a metáfora melodramática da guerra, a Polícia Metropolitana de Londres descreveu os locais do metro e autocarro que sofreram os ataques bombistas como "cenas do crime". (...)

Um acordo de paz entre Israel e a Palestina removeria outro grande centro de recrutamento de terroristas islâmicos. E, é claro, unir esforços com vista à modernização, liberalização e eventual democratização do grande Médio Oriente é a única forma certa e duradoura de drenar o pântano onde se reproduzem os mosquitos terroristas. Neste campo, é mais a Europa do que os EUA que precisa de abrir os olhos, urgentemente, para a necessidade de tomar mais medidas. Hoje em dia, os acontecimentos que ocorrem lá longe, em Cartum ou Kandahar, têm um impacto directo sobre nós - por vezes fatalmente, enquanto nos dirigimos para o trabalho, sentados numa carruagem do metropolitano entre as estações de King Cross e Russel Square. Deixou de haver política externa. Talvez seja esta a lição mais profunda a retirar do ataque terrorista de Londres.»

08 julho 2005

Uma resposta possível

"Transformar as condições sob as quais o Islão na Europa é alimentado e mantido abre a possibilidade a que uma nova geração de pensadores muçulmanos possa emergir - homens e mulheres com uma perspectiva universal, livres do apertado autoritarismo e da corrupção, emancipados da subserviência em relação aos seus governantes e da raiva da revolta que promove a jihad, a ausência de comunicação e a violência. A ideia de que os muçulmanos europeus tanto podem transcender a jihad como a fitna não agrada nem aos activistas radicais, nem salafistas nem islamistas - mesmo que os islamistas, uma vez que são actores na arena política europeia, encontrem espaço nos seus princípios rígidos para ceder aos compromissos da democracia. (...)
É imperativo trabalhar no sentido de proporcionar uma completa participação democrática aos jovens de educação muçulmana através das instituições (...), que encoragem a mobilidade social no sentido ascendente e o aparecimento de novas elites"

The War for Muslim Minds, 2004, de Gilles Kepel - professor da cadeira de Estudos sobre o Médio Oriente no Instituto de Estudos Políticos em Paris, um do mais respeitados especialistas em islamismo, autor de outro livro conhecido, Jihad

07 julho 2005

Bloody thursday

Soluções fáceis para um problema tão complexo só o tornam mais difícil de resolver.

Nem as explicações preguiçosas de Soares nem o voluntarismo arriscado de Bush.

A resignação também não nos aproveita.
O que fazer quando o mundo à nossa volta está à beira de entrar em disrupção? - e isso pode acontecer a cada segundo que passa, em qualquer momento podemos morrer num terramoto.

O que fazer quando, a qualquer hora, o nosso pequeno universo, na nossa cidade, pode entrar em colapso num atentado terrorista, tão acidental na maneira como distribui os estragos quanto um desastre natural?

A primeira resposta é viver naturalmente antes. E procurar viver naturalmente depois.

A nossa presumida liberdade e o nosso estilo de vida não podem ser afectados, porque é esse o objectivo de quem nos inocula o medo - medo aos cidadãos, medo injectado nos político porque eles são obrigados a encontrar respostas, mesmo quando não as há.

O desencadear de respostas violentas que justifiquem mais violência é outro fim de organizações como a Al-Qaeda. A invasão do Iraque (não a do Afeganistão) foi um favor aos terroristas islâmicos.

Mas, se não podemos resignar-nos, qual é a forma de agir contra inimigos sem rosto, sem território, sem programa ideológico (e lógico)? As nossas sociedades estão habituadas a ver razões por detrás das acções dos outros. Mas a ausência de racionalismo da parte do inimigo é outra coisa que nos mata. Mata-nos o raciocínio.

O que aconteceu hoje em Londres há-de repetir-se noutro lugar. É uma guerra fácil, minimalista. Com poucos meios produz-se um efeito máximo: a América protegeu-se 40 anos dos mísseis soviéticos e sofreu o maior revés da sua história em território continental por causa de uma dúzia de homens de canivetes. Ironia assassina.

Este mal só é banal por se parecer com a acção dos vilões dos livros de comics. É o mal na sua mais tradicional fórmula malévola: semear destruição sem colher benefícios. Uma equação de onde não resulta qualquer bem para nenhuma das partes.

No dia em que estas coisas acontecem não há respostas. Só perguntas. Dúvidas. As respostas começam a nascer no dia seguinte.

30 junho 2005

Outras curvas

O Público traz hoje em manchete: "Estudo denuncia curvas ilegais no IP4 e no Eixo Norte/Sul".
Sugiro que também se estudem as curvas ilegais na recta de Pegões...

29 junho 2005

First day at the office

Quando começamos num novo emprego podemos pensar que são as grandes mudanças que podem perturbar o frágil equilíbrio dos dias úteis. Para elas temos a adrenalina do desconhecido. São as pequenas alterações do quotidiano, os pormenores, que podem tornar-se inquietantes. Por exemplo, conseguir dominar a técnica de lavar os dentes sem molhar a gravata. À primeira vista é simples. A mão direita maneja a escova de dentes enquanto a esquerda resguarda o pingente de pano mais perto do diafragma. Mas também temos de controlar o fluxo da água e é nesses momentos, em que abrimos e fechamos a torneira, que a gravata corre o risco de se encostar à borda do lavatório. Pode parecer fútil mas é difícil tentar resolver os problemas do mundo com uma gravata molhada.

23 junho 2005

Mr. Dalloway

Henry Perowne disse que ele próprio compraria o peixe. Não é com esta frase mas é com este espírito que começa Sábado, o novo livro de Ian McEwan. A Clarissa Dalloway do século XXI é um homem e guia um Mercedes S 500 pelas ruas da moderna cidade de Londres. Não tem uma festa para preparar, apenas um jantar de família com sopa de peixe-anjo. A acção desenrola-se num único dia – como os livros fundadores do romance moderno (Ulisses, Mrs. Dalloway) – e por isso não é de estranhar que esteja cheio de descrições pormenorizadas de actividades do quotidiano ou que sobre muito espaço para reflexões sobre a condição humana nas sociedades contemporâneas. Escrito cerca de setenta e cinco anos depois do de Virginia Woolf, o livro não está atrasado, é uma actualização.

22 junho 2005

A Rh+

Fui dar sangue. O edifício do Instituto Português do Sangue fica no mesmo complexo hospitalar do Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos. Sempre que vou a sair do portão sinto um calafrio de expectativa. Penso que podem mandar-me parar e que tenho de protestar que não sou maluco. Imagino depois o porteiro a dizer, com voz condescendente , enquanto carrega no botão de alarme: «-Eu sei, eu sei. Mas vista só esta bonita camisa branca para ver se lhe fica bem. Muito bem. Agora cruze os braços para eu poder apertar as correias.»

Durante a vaga de calor

Por ser o dia mais longo do ano e estar muito calor, ontem à noite eu e a Joana não ficámos em casa a disputar o nosso espaço vital frente à ventoinha. Andámos pelas ruas do Bairro Alto e acabámos na Eterno Retorno, uma livraria especializada em obras de filosofia e teatro. Folheámos o jornal e alguns dos bons livros em segunda mão e observámos os movimentos do gato da casa. Esteve deitado em cima do piano, deambulou entre as mesas e subiu para cima do balcão. Apesar de não podermos ser caracterizados propriamente como cat lovers, gostámos deste. Achámos que tinha um ar inteligente. Talvez seja inevitável num gato que passa todo o dia entre livros de filosofia.

21 junho 2005

Poucaterra não há calha

Com a mesma velha locomotiva a fazer força, o comboio europeu, agora de 25 carruagens atulhadas de ambições, anda forçosamente mais devagar. E com vagões pesados como o francês, o holandês e o britânico a meterem travões a fundo, a composição é forçada a parar num apeadeiro a meio de nenhures.

Numa metáfora feliz, o Durão Barroso primeiro-ministro disse uma vez que a União Europeia era um grande avião sem piloto. Onde é que pára agora o maquinista? Talvez haja maquinista, mas acabou-se a ferrovia...

18 junho 2005

"O orgulho que resta à nódoa", no Barnabé

O megafone racista

Foi um mau espectáculo, qualquer um dos directos da manifestação de skins nas televisões. Se os directos por vezes são bons, às vezes encerram perigos. Apenas cinquenta nazis sem qualquer peso na sociedade conseguiram hoje ter uma audiência de milhões de portugueses e passar uma mensagem perigosa de forma gratuita, através do megafone hertziano (o jornalismo trata da recolha, selecção, hierarquização e tratamento da informação, daí que a forma preferível de cobertura da manif fosse a da peça trabalhada em diferido). De qualquer forma, os directos são inevitáveis, e assim os organizadores conseguiram o que desejavam: propaganda nazi e xenófoba à hora do almoço familiar do fim-de-semana.

Mas há coincidências tramadas. Minutos depois de um cabeça-rapada perorar sobre a expulsão dos imigrantes com o exemplo da expulsão de mouros - junto à Mouraria onde tantos anos os muçulmanos conviveram com os cristãos -, uma nova peça do telejornal devolvia a estes sabujos um espelho ao qual não gostariam de se ver.

A polícia britânica montou alarmes na casa dos emigrantes portugueses que vivem numa vilória inglesa para os proteger de ataques racistas e xenófobos (por parte de outros brancos), na sequência dos protestos por causa de um homicídio alegadamente cometido por um português. O problema é o mesmo, nem vale a pena dizê-lo, posto ao contrário.

Dar voz e ouvidos a esta gente é abrir o caminho a males que repousavam fechados na nossa caixa de Pandora. O que eles dizem é tão ridículo, irracional, e brutal que parecem inofensivos aos seres dotados de razão. O perigo é o que eles representam. As esquerdas e as direitas democráticas têm de ter um discurso claro sobre segurança, apresentar medidas viáveis, e uma ideia sobre como lidar com a imigração, os bairros degradados e a integração. Se não ocupam o espaço vazio, esta gente aproveitará as brechas.

17 junho 2005

O que diz Immanuel

Diz Kant que «a felicidade não é um ideal da razão, mas da imaginação, que assenta somente em princípios empíricos dos quais é vão esperar que determinem uma conduta necessária para alcançar a totalidade de uma série de consequências de facto infinita.» (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1785) A felicidade é um bem subjectivo, que cada indivíduo constrói de modo diferente, a cada momento, a partir de elementos infinitos. É por isso que, segundo Kant, não pode ser erigida como padrão de moralidade. Está calor, as venezianas estão fechadas e na sombra da sala o sopro da ventoinha incide directamente sobre o meu corpo inerte no sofá. Talvez isto seja de algum modo a felicidade, mas não me passaria pela cabeça tentar torná-lo lei universal.

13 junho 2005

Um vida bem vivida

Ficou-me na memória uma frase de Álvaro Cunhal numa entrevista em que ele disse ter vivido uma vida bem vivida, qualquer coisa assim, ou que só vale a pena a vida se for para ser bem vivida. A dele viveu-se ao sabor de um ideal derrotado. Talvez o tenha percebido de 1989 para cá, mas não é isso que importa agora, porque os bolcheviques em Portugal foram definitivamente derrotados há 30 anos. O que é de invejar na vida desse homem é tê-la vivido bem, mesmo com os piores sacrifícios por que passou. Como seria o mundo se nos dedicássemos assim àquilo em que acreditados, ou apenas se acreditássemos nalguma coisa? Como seria o mundo se todos levássemos vidas que valem a pena viver-se?

Bom dia! Declaro este blogue reaberto.

11 junho 2005

Leitura de férias

Tirando as próprias ilhas gregas, não deve haver melhor lugar para ler a Odisseia que as praias de baías rochosas da costa Vicentina. Parece que conseguimos compreender melhor os infortúnios de Ulisses e dos seus companheiros deitados na areia, que depois trazemos connosco entre as páginas do livro em pequenas ilhas. Estou mais bronzeado, mais descansado e, como Ulisses, estou de regresso a casa.

04 junho 2005

O Vítor foi para Norte. Eu sigo para Sul. Durante mais ou menos uma semana este estabelecimento fica Encerrado para descanso do pessoal. Gostaria de prometer um diário de viagem, com descrições da costa alentejana e do nosso repouso num monte corticeiro, mas é difícil escrever quando nos estamos a divertir. Talvez seja por isso que a maior parte dos romances são depressivos, mas esse é um tema que fica para outro post.

31 maio 2005

As notícias do défice português e as do "não" francês eu ainda aguentava. Agora... a prática do sexo provocar cegueira e eu ser surdo... essa deixou-me de rastos. Vou-me embora, em direcção ao Norte, para o Minho e para a Galiza. Está tudo nas tuas mãos, Tiago.

28 maio 2005

Ensaio sobre a cegueira

A relação entre o sexo e a perda de visão é um mito urbano que ganhou novos desenvolvimentos. Segundo o Expresso desta semana, investigadores americanos estão a estudar «50 casos de cegueira (total ou parcial) supostamente relacionados com o uso do Viagra». Na Idade Média era a masturbação, razão pela qual lhe terão chamado Idade das Trevas – e que a confirmar-se teria provocado uma epidemia de cegueira mais fulminante que a peste negra. Nas últimas décadas seria a pornografia a contribuir para a perda de visão nos adolescentes, pela dificuldade em lerem (verem) revistas com pouca luz ou por cansarem a vista a tentar perceber cenas de filmes caseiros de má qualidade. A relação entre o sexo e a perda de visão pode ser apenas um mito, mas sempre me deixa mais orgulhoso das minhas dioptrias.

27 maio 2005

A nossa lepra incurável

A Dona Ema foi ao baú do sótão desencantar esta maravilhosa antiguidade mais actual do que nunca:

"Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação económica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.(...)

Temos um déficit de 5.000 contos. Esta é a negra, a terrível, a assustadora verdade. Quem o promoveu? Quem o criou? De que desperdícios incalculáveis se formou? Como cresceu? Quem o alarga? É o governo? Foram estes homens que combatem, foram aqueles que defendem, foram aqueles que estão mudos? Não. Não foi ninguém. Foram as necessidades, as incúrias consecutivas, os maus métodos consolidados, a péssima administração de todos, o desperdício de todos. Depois, as necessidades da vida moderna, de terrível dispêndio para as nações. Como na vida particular, cresceram as superfluidades, o vão luxo, o aparato consumidor, mais precisões, mais gastos, a vida internacional tornou-se tão cara que mais ou menos todas as nações estão esfomeadas e magras.(...)

O déficit tornou-se um vício nacional, profundamente arraigado, indissoluvelmente preso ao solo, como uma lepra incurável."

Eça de Queiroz, 1867

26 maio 2005

António das Pêgas, o manageiro



A este veterano do montado, de olho azul e 72 anos, chamam-lhe António das Pêgas. É manageiro para os lados de Santiago do Cacém, o que significa comandar um rancho de homens e mulheres que fazem trabalho sazonal para os lavradores lá da zona. Aqui apanhei-o a beber pelo cocharro, durante uma tirada de cortiça serrana, para os lados das Vendas do Roncão. Vê-se pela maneira como olha a objectiva que é um tipo vaidoso, do género velho gaiteiro. Meneia as ancas como o John Wayne, mas no lugar da pistola leva um machadinho.

O ofício exige saber popular misturado com ditâmes de Bruxelas: ao lado da machada transporta uma corda com os centímetros exactos do diâmetro legal mínimo do tronco dos sobreiros que tiram a primeira cortiça virgem. Abraça um chaparrinho com o cordel e diz este já pode ser. Depois toca num frondoso com a palma da mão e conclui que foi maltratado numa época antiga, por tiradores brutos, sem sensibilidade no machadar, que feriram a carne da árvore em dia de chuva. É preciso muito ouvido para sentir a lâmina entrar sem castigar o tronco. O prémio do bom tirador - para além do prémio do fim do dia, os dezasseis contos da jorna -, é quando a cortiça "arrota" ao descolar do tronco num canudo perfeitinho, a bela prancha que há-de dar com que enrolhar uma pinga da melhor.

O António das Pêgas não havia de gostar de saber dos conluios entre os nossos governantes e os interesses privados para abater sobreiros em troca de campos de golfe. Ele não teria jeito para caddy, mesmo com aquele menear de ancas à cowboy.

25 maio 2005

Admirável leveza do ser

Sinto-me livre, leve, feliz, sintonizado com os astros, ansioso por ler livros que acumulei, por ver coisas que nunca vi, por fazer o que nunca fiz, por viver estes quinze dias como se fossem anos. Estou de fériiiaaas!

Este monstro imposto

Não quero pagar mais impostos porque os últimos governos não governaram. É como dar cada vez mais comida a um bicho cada vez mais gordo, que precisa de cada vez mais de comida porque está cada vez mais gordo. Não é preciso matá-lo. Basta obrigá-lo a uma dieta rigorosa, fazer umas lipoaspirações, e, se for preciso, meter-lhe uma banda gástrica: acabar com o emprego para toda a vida na função pública, com serviços supérfluos e ineficazes, com as prestações para quem não precisa, e despedir os comprovadamente incompetentes. Eliminar os benefícios fiscais da banca e da construção civil, ser implacável para qualquer restaurante que não passe a factura, para qualquer empresa que fuja aos impostos. A doer. De cabo a rabo.

23 maio 2005

Notas marginais

Dependendo do ponto de vista, sublinhar livros de bibliotecas públicas pode ser encarado como um acto de egoísmo ou de altruísmo. Pode sublinhar-se sem pensar nos leitores seguintes ou a pensar nos leitores seguintes. Neste segundo caso, sublinhar é um acto exploratório de procura das frases ou dos pensamentos mais importantes, empreendido para poupar trabalho aos leitores futuros. Poderíamos chamar a estes sublinhadores fazedores de mapas, não fosse o perigo de tornar sedutora uma actividade tão irritante. Por vezes os riscos são complementados com extensas anotações na margem lateral da mancha impressa, oferecendo o texto e a sua exegese na mesma página. O que apetece, nestes casos, é comentar o comentário do leitor anterior, iniciando uma espiral infinita de notas marginais.

22 maio 2005

Viva o Porto e as equipas que festejam longe daqui

Percebe-se assim a razão de um alentejano que vive em Lisboa ser do FC Porto: o sossego. Das duas vezes em que o Sporting foi campeão nacional não dormi com os gritos dos que não tinham ficado "em casa", amontoados aos berros na Praça do Município. Agora, estas coisas vermelhuscas vá de lhe darem com o S - L - B à pressão do ar pulmunar, as apitadelas dos carros, os piões das motas, os raters. Mas pior é a barulheira que para aqui vai de uns altifalantes a darem música pimba e trash metal com letras à Benfica, decerto com o patrocínio de alguma entidade oficial esquecida de uns quantos miseráveis que ainda vivem na Baixa. Quero dormir. E bibó Porto! , que quando faz a festa, festeja longe daqui e me deixa duplamente feliz.
O futebol é mesmo assim.

21 maio 2005

Cunhas

Isaltino Morais contou que Marques Mendes lhe meteu uma cunha para o comandante Azevedo Soares (hoje vice-presidente do PSD) ser administrador da Águas de Portugal. Ele, que era ministro do Ambiente, acedeu ao pedido e agora denuncia a sua própria conivência nesta história de conluio. Quem muito atira pedras ao ar... Quem é que deu guarida a Marques Mendes na Universidade Atlântica, cuja maioria do capital é da câmara de Oeiras, quando o actual presidente do PSD era apenas deputado?

20 maio 2005

Dilemas

A primeira grande decisão de um pai e de uma mãe: escolher o nome do filho, aquela tatuagem entranhada, cerzida ao ser, que nunca sai e o vai acompanhar toda a vida. Acho que estou a acusar o peso da responsabilidade.

18 maio 2005

O défice de felicidade e as contas públicas

Grande novidade, o défice das contas públicas portuguesas é preocupante: chegará aos sete por cento? Depois da derrota do Sporting e da expectativa em torno do Boavista-Benfica, é esta a maior preocupação do nosso honesto povo. Contabilizamos o nosso desenvolvimento a partir de dados absolutamente mensuráveis, mas eu cá, nos dias de total irresponsabilidade, estou-me nas tintas para o défice.

Há coisas na vida que não se medem. Um dia perguntei a um historiador estrangeiro, que tinha escrito um livro sobre o desenvolvimento das nações, se ele sabia se as pessoas eram mais ou menos felizes antigamente, quando eram mais pobres e menos desenvolvidas, ou hoje, rodeadas de tecnologia. Ora ele encolheu os ombros e disse que não fazia ideia. Tinha escrito no dito livro que a felicidade era um subproduto do desenvolvimento.

Ora, vamos lá teorizar um bocadinho sobre isto: um povo que canta fado mas nunca ganhou o festival da canção, que foi à final do Euro e perdeu logo com os gregos, que vai aos magotes pagar promessas a Fátima agradecendo qualquer ponta de felicidade como um favor da divina providência, que bate recordes de boletins do euromilhões na esperança de enriquecer, e que consome cada vez mais antidepressivos, precisa de muito mais que de ultrapassar o défice.

O défice está no meio de nós, omnipresente, a escutar atrás das portas e tolher-nos os movimentos porque não estamos contentes porque não somos felizes e não somos felizes porque não estamos contentes. Nós somos o défice. Erradicá-lo era como deitar os Jerónimos a baixo. Não podíamos ser pobres e desgovernados, até tolos, mas ao mesmo tempo evoluirmos nos critérios de convergência da máxima felicidade?

Patinagem artística

O Sporting fez coisas bonitas, como diria o do bigode. Mas infelizmente, como notava o comentador, isto não é patinagem artística. É patinagem.
O meu amigo Luís Miguel Afonso escreveu este comentário ao post sobre o "Fundamentalista Medieval":

Todas estas palavras deixam-me com a certeza que algo não vai bem com esta sociedade. Ao ouvir as opiniões de uns e de outro, pergunto-me a mim mesmo se estará alguém a usar a razão naquilo que diz ou se apenas se decidiu dar voz à inquietação que sobressalta da alma de cada um. De um lado, o Padre de Lordelo, que longe do politicamente incorrecto, mostrou antes uma falta de sensibilidade (e presença de espírito) extrema. Errou no tempo e no modo como quis marcar a sua posição. Do outro, os indignados da sociedade... A estes, sinceramente, não consegui ainda perceber a causa da indignação. Terá sido pelas circunstâncias em que o disse? Será por o clérigo ter dado a entender que é pior morrer uma criança no seio da mãe do que uma criança de cinco anos? Terá sido por ter tido a ousadia de considerar que um bébé no seio materno é realmente um bébé? Qual destas razões (ou outras...) terá causado a indignação de cada um?Tudo me leva crer que não terá sido pela primeira razão que apontei. Pelo menos, na maioria dos indignados. A esses gostava de deixar aqui as seguintes questões: Qual é a diferença entre a morte de um adulto e a de uma criança? Qual a diferença entre a morte de uma criança de 5 anos e a de um bébé de 6 meses? E depois de responderem com a razão a estas questões, tentem aplicar a vossa resposta a esta derradeira questão: qual será a diferença entre a morte de um bébé no seio materno e a de um adulto? Apenas um testemunho para aqueles que nunca ouviram o coração do seu filho a bater e as suas pequenas mãos a dizer adeus enquanto se aconchegam dentro do ventre da sua mãe: um bébé com 12 semanas através de uma máquina de ecografia parece mesmo um bébé...

Não, meu caro Afonso, neste caso o problema não está em saber se um bebé no seio da mãe é realmente um bebé. Aqui a coisa não é preto ou branco. O problema é a graduação que é feita pelo padre, ao considerar que a vida de uma criança de cinco anos, brutalmente assassinada, vale menos do que um feto na barriga de uma mãe. Eu respeito a opinião das pessoas que são contra o aborto. Eu votei sim no referendo, mas dificilmente apoiaria a realização de um aborto que me dissesse respeito. A questão em debate é outra: o fundamentalismo a que me referi reside no facto de o padre valorar mais aquilo que são os ditâmes gerais da Igreja em relação ao aborto do que a vida daquela criança em concreto. Mais: ele não valorizou a vida daquela família que teve de o ouvir a dizer tamanho disparate, e que foi à Igreja buscar algum consolo.

PS: a resposta do Afonso pode ser lida aqui nos comentários

14 maio 2005

O Fundamentalista medieval

«Matar uma pessoa no seio materno é mais grave do que matar uma pessoa que não se pode defender. Uma menina de cinco anos pode reagir, pode chorar, queixar-se»", disse à TSF o padre do Lordelo, Domingos Oliveira, assumindo assim o que já tinha afirmado na homilia da missa de sétimo dia em nome da Vanessa, a menina assassinada por familiares no Porto.

Se o Papa Bento XVI é um homem contra os relativismos modernos, que diria ele do relativismo medieval defendido por este obscuro padre? Mais vale um homicídio tardio que um aborto precoce? Um homem que diz isto numa casa onde há quem acredite haver uma presença Deus está do lado do bem ou do lado do mal?

Qual a diferença entre o padre Domingos e os apedrejadores de mulheres islâmicos? O que fará a hierarquia da Igreja em relação a ele? Com que consolo saíram daquela missa as almas dos familiares da criança? As palavras do padre Domingos são um segundo crime contra aquela criança: a profanação de uma alma inocente.

13 maio 2005

Linha

As diferenças entre o centro de saúde e o Estádio de Alvalade, por estes dias, são de escala e não de substância. É tão difícil arranjar uma consulta para o médico de família como para o final da Taça EUFA. Em ambos, há pessoas que vão acampar para lá com dias de antecedência. Mas o que é um acontecimento raro para os adeptos de futebol, tornou-se num desporto regular para grande parte da terceira idade com insónia. Muitos é certamente pelo vício do jogo, uma alternativa grátis ao bingo. A expectativa e o prazer de saber se o número da senha tem prémio. Hoje não me saiu nada.

12 maio 2005

Abater sobreiros: o crime de traição à pátria de Nobre Guedes e Costa Neves



Quando no fim do Verão o meu avô Hermes me oferecia uma nota de cinco contos, era porque tinha vendido a cortiça lá do brejo. Toda a vida olhei para os sobreiros com respeito, sinal de riqueza e posses na terra de onde venho. Os homens destas fotografias tiradas em 2002 na Serra de Grândola ganham 16 contos por dia na recolha do petróleo alentejano. Toda a gente ganha alguma coisa, neste negócio. A produção portuguesa de cortiça domina o mercado mundial, mas não chega para todas as encomendas. O bem é escasso para uma produção mundial cada vez maior de garrafas de vinho a precisarem de ser rolhadas...

Por isso fico tão irritado quando me abatem os chaparros, é uma coisa de pele. Este caso da Portucale em Benavente deixa-me danado, e não é só por causa da falta de sombra para bater umas sornas: um ministro do ambiente (Nobre Guedes) e outro da Agricultura (Costa Neves) a mandarem abater mais de dois mil sobreiros para fazerem um empreendimento turístico só mostra que ainda não ultrapassámos o velho modelo de (sub)desenvolvimento. Se dantes era só betão, agora é betão mais relva para o golfe. O Grupo Espírito Santo fez um comunicado ridículo a dizer que tinha plantado cinco mil sobreiros noutro local. Só que desses, poucos vingarão. E a primeira tirada de cortiça virgem é feita só aos primeiros 40 ou 50 anos da árvore. E a segunda tirada aos 60 anos ainda não é da maior qualidade. Não é preciso haver tráfico de influências para eles serem culpados de um crime lesa-pátria.
A mente humana é selectiva, mas também é inconstante. Não é incomum, numa segunda leitura de um texto, não compreender porque é que sublinhei determinadas passagens, que na altura me terão parecido importantes. Um exemplo: «Os poetas, dos órficos gregos aos nossos contemporâneos, vivem em culturas de culpa, em que o formalismo mágico da sabedoria poética viconiana é necessariamente inaceitával.» Agora me lembro, não sublinho apenas o que me parece importante. Por vezes, sublinho para tentar compreender mais tarde. A combinação entre beleza e incompreensão do fragmento também é um factor relevante para o acto.

A morte de Vítor Hermes

Hermes pode não ser bonito mas é um nome alado. Era o nome do meu avô, Hermes Rodrigues da Silva, e sempre gostei dele sobretudo pelo significado. Hermes, para os gregos, era o filho de Zeus e de Maia, neto de Atlas. Nasceu numa caverna no monte Cilene, na Arcádia e manifestou imediatamente uma admirável maturidade precoce e qualidades de inteligência extraordinárias. Era um recém nascido quando fugiu do berço para a Piéria. Adorava travessuras. Era um deus divertido. Roubou os bois de Apolo. Na Odisseia, Homero refere-se sempre a ele como Hermes, o matador de Argos. É o deus dos ladrões e o seu mensageiro, músico e encantador. Um belo nome. A sua pior tarefa era conduzir as almas do mundo dos vivos ao reino das Sombras. Um deus ocupado, portanto.

O meu primo, da minha idade, chamava-se Tito Hermes. Morreu aos 25 anos num desastre de mota. Esta era uma pequena homenagem. O pai dele chama-se Joaquim Hermes. A minha mãe não recebeu o nome, mas é conhecida como a Maria José Hermes. Durante muito tempo o meu irmão assinou Rui Hemes. Na minha terra ninguém sabe quem é o Vítor Matos. Seria preciso acrescentar: é um dos Hermes. Mas esta semi-clandestinidade durante um ano e tal de blogue incomoda-me. Devolvo-me ao mundo dos mortais com o meu nome de mortal: passo a assinar os posts com o meu nome verdadeiro: Vítor Matos.