Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
27 dezembro 2005
a music of chance
Sob o efeito alucinogéneo das rabanadas descobri semelhanças entre a notação musical e a notação da sueca. Talvez por não perceber nada de música e muito pouco de sueca, os traços e bolas com que se registam ambas as artes parecem-me ter uma base comum, com origens longínquas no cálculo combinatório e nas teorias do caos. Talvez por não perceber nada de cálculo combinatório ou de teorias do caos. Podemos assim conceber uma música do acaso, minimalista, construída através da interacção inconsciente de quatro pessoas que jogam às cartas num jardim. Um conceito digno de Borges e credível apenas enquanto durar o efeito do vinho do Porto.
12 dezembro 2005
«Proibido estudar neste estabelecimento»
10 dezembro 2005
06 dezembro 2005
Livro de cabeceira da semana
Agora és estrangeiro em sentido
próprio, com os nervos toldados
por demasiada música. Sentado
na erva de Maio, junto à estufa
das carnívoras – Dragão Vermelho,
Sarracenia flava – a tua Primavera
tortuosa, transplantada.
Enrolas tabaco holandês, procuras
na memória um verso que melhor
explique o lastro das circunstâncias,
uma Inglaterra mais funda, deitada
à sombra da experiência
das palavras. E tal como esse
pequeno, quase imponderado
esforço, não terá sido afinal inútil
tudo o que fizeste na vida?
Rodas e repetições, é assim o tempo
na carne. Mas o que aprendeste
com o primeiro desengano não te preparou
para o segundo, o terceiro e todos
os que se seguiram. Entretanto faz sol
e o mundo existe, é quase uma pintura
de inocente intenção.
Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005
05 dezembro 2005
A ocupação do espaço
Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will serve but to demonstrate and confirm it. In words a man may pretend to abjure their empire: but in reality he will remain subject to it all the while.
01 dezembro 2005
À borla
«Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.» [Livro do Desassossego de Bernardo Soares]
Aforismos, empirismo
23 novembro 2005
Estamos em estado de reanimação. Por favor incomode o doente.
01 novembro 2005
O censor prévio
Rui Rio é um democrata, ninguém duvida. Desde que a democracia satisfaça plenamente a sua vontade, é um democrata. Com maioria na câmara, mais democrata se torna, e ganha contornos de déspota iluminado, que decide o que é de interesse público, e sobretudo aquilo que é do seu interesse próprio. Assim, ontem, no Porto, ele mesmo provou como a democracia é uma coisa frágil e como dentro de um político com fama de sério e honesto pode abrigar-se um pequeno ditador.
Da última vez que entrevistei Rui Rio (para a "Sábado"), antes das autárquicas, ele próprio e elementos do seu stafe tentaram evitar que a entrevista fosse publicada. Rio não gostou de ser confrontado com aquilo que Paulo Morais tinha dito numa entrevista anterior à Visão, não gostou de ser confrontado com algumas das suas contradições, não gostou que a entrevista não tivesse sido aquilo que ele desejaria que fosse. Mas uma entrevista é uma entrevista, não é um tempo de antena.
É pena que ele não compreenda que os titulares de cargos públicos, por melhores intenções que guardem, devem ser confrontados com as suas acções, palavras, intenções. Devem esclarecer, ser claros, e perceber que os jornalistas não devem resignar-se quando os políticos não querem responder às perguntas incómodas. A nossa função é inquirir, duvidar, querer saber mais e garantir que as respostas são reproduzidas tal como foram dadas.
Mas ontem Rui Rio anunciou estas fabulosas e democráticas regras, numa declaração pública, que pode ser consultada no site da SIC:
- ”restringir o seu relacionamento [da Câmara] com os media exclusivamente às matérias de inegável interesse público e evitar todas as que visem objectivos de interesse privado, corporativo ou editorial”;
- ”fazer depender qualquer declaração para a comunicação social sobre matérias do Executivo, de prévio contacto do jornalista com o Gabinete de Comunicação da Câmara”;
- ”acordar com a imprensa apenas entrevistas por escrito, mediante critérios de oportunidade, com regras previamente definidas, evitando ou minimizando assim interpretações especulativas, ou a pura manipulação das respostas”;
- ”o Gabinete de Comunicação da Câmara recorrerá, preferencialmente, à mensagem escrita, através de publicação no site oficial da Câmara e de difusão pelos media”.
28 outubro 2005
Lisboa-Porto num shot
27 outubro 2005
Recordando...
Com Cavaco a concorrer, agora discute-se a presidencialização do regime. Tem piada, porque em 2001, como Sampaio era pouco interventivo, o debate análogo sobre os poderes presidenciais era sobre se o Presidente da República devia ser eleito por sufrágio universal ou por via indirecta. Ele há coisas neste país que mudam com uma facilidade... e ninguém se lembra?
25 outubro 2005
Coincidências
24 outubro 2005
Lembrando, comparando...
"Convocaria eleições no momento em que estivessem esgotadas as hipóteses de obtenção do necessário apoio parlamentar à constituição de um governo. Contraria a minha experiência para avaliar as condições de governabilidade", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial: DN - 11 de Janeiro de 1996.Lembremo-nos de que Guterres não tinha maioria absoluta.
"Eu sou um defensor da estabilidade política. Não se conseguem ultrapassar as dificuldades sem estabilidade. [A dissolução] Só deve ser utilizada em situações muito extraordinárias", disse Cavaco Silva, na apresentação da campanha presidencial II: 20 de Outubro de 2005. Ligeiramente diferente da opinião da década anterior. Para não assustar os socialistas nem os sociais-democratas traumatizados.
"O senhor [dirigindo-se a Jorge Sampaio], não esteve na Alameda politicamete. E sempre esteve nos antípodas de Mário Soares", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial, no debate com Jorge Sampaio e Jerónimo de Sousa na Prova Oral da RTP, a 15 de Dezembro de 1995. Tecerá hoje louvores a Jorge Sampaio para atacar Mário Soares? Ficamos à espera, porque a política tem coisas destas.
"[O Rendimento Mínimo Garantido] gera muitos problemas: desincentiva a procura de trabalho, requer mecanismos administrativos complexos para o seu controlo, dá origem a grandes fraudes e provoca injustiças. Não resolve os problemas da pobreza", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial à Revista do Expresso, 12 de Janeiro de 1996. Manterá a mesma opinião agora?
"Com o poder todo concentrado num só quadrante ideológico, não vejo nada um futuro cor-de-rosa (...). Com tudo cor-de-rosa não antecipo nada de bom para Portugal", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial na mesma entrevista à Revista do Expresso, em 12 de Janeiro de 1996, a dois dias das eleições. Poderá hoje dizer a mesma coisa, quando ainda há mais poder concentrado nas mãos dos socialistas? É claro que não voltará a usar este argumento.
Dez anos é muito tempo...
20 outubro 2005
Adivinhando
Hoje, dentro de uma das suas obras emblemáticas e à hora dos telejornias, Aníbal Cavaco Silva vai dizer que é candidato a Presidente da República.
1 - A sua declaração será curta e incisiva, ao contrário da de Mário Soares que foi longa, fastidiosa, e vazia de conteúdo;
2 - Não vai ter a sala cheia de convidados, mas sim de jornalistas, para evitar colagens excessivas a partidos (ao PSD) e Marques Mendes não deverá lá estar; Mário Soares tinha a sua sala no Altis cheia de notáveis e de gente do PS para mostrar que tinha uma data de apoios;
3 - Vai responder a perguntas dos jornalistas para mostrar que não é aquela figura fechada e antipática de outros tempos, ao contrário de Soares que não quis ser questionado a seguir à sua apresentação (e que toda a vida falou aos jornalistas);
4 - Para já, não fará grandes avisos à navegação socialista e até há-de elogiar o esforço de contenção deste Orçamento do Estado, para não hostilizar os socialistas;
5 - Voltará a apresentar-se como homem providencial que regressa com sacrifício da sua vida pessoal para endireitar as coisas (aliás, tal como Soares);
Quem há 10 ano pensou que o Acabado Silva estava mesmo acabado...
15 outubro 2005
Arquitecto no saco
Meteram o arquitecto no saco. Que será dos meus sábados, a partir de agora, sem aquelas ironias tão finas que quando estão de frente parece que estão de lado e é preciso explicá-las na semana a seguir? Em que sacos hei-de procurar agora prosas saraivadas? Heeelp! Preciso da minha dose semanal de Saraiva.
13 outubro 2005
Ao largo na Graça
Pode. Tire lá a fotografia. Assim 'tá bem? Deixe-m' ajeitar o boné… E o cigarrinho? Vou dar uma passa no cigarrinho. Ficou bem? Sou aqui da Graça, pois, sou daqui. Agora isto há prá’qui muita gente. É a esplanada há uns dois anos. Dois anos? Se calhar há mais... Já custo a andar. Só com a bengala. E devagar. São os anos. Uma data deles. Bailei muito nesses Sant' Antónios. Agora tod'á gente vem p'ráqui. Acho bem. A malta tem de se divertir, não é? Vou andando devagarinho, assim, 'tá a ver. Visto o fatinho, já tá velho, e dou uma volta, vejo a vista, as camones, até assobio a elas, dou pão aos pombos, bato uma manilha ali no largo, quando calha. Já não posso dar no tinto, mas às vezes vai um gole no branco, eh, eh. É assim. Saudinha da boa!
12 outubro 2005
Arqueologia das palavras
Se a Odisseia é a precursora dos Indiana Jones e demais histórias de aventuras, a Ilíada inaugurou os Apocalipse Now de todos os tempos e demais contos de guerra. O Senhor dos Anéis, porém, mistura tanto aspectos homéricos da Odisseia como da Ilíada. É uma guerra e uma busca, uma ida e um regresso. Mas para lá da narrativa, há detalhes que me impressionam na leitura das traduções de Frederico Lourenço para a Cotovia. Como esta arqueologia das palavas, numa história com três mil anos, em que Nestor fala a Diomedes:
"Pois agora para todos se coloca no fio da navalha".
Ou então, pouco mais adiante:
"Hão-de ficar onde estão [os troianos], afastados das naus, ou hão-de regressar à cidade, uma vez que já deixaram os Aqueus na mó de baixo."
Na "mó de baixo" e no "fio da navalha". Há três milénios que usamos estas expressões e eu não sabia. Na Introdução, o tradutor explica que este é o mais antigo registo da frase "no fio da navalha". E há outras coisas tão parecidas às dos nossos tempos...
Relativismo
06 outubro 2005
"Há, em Veneza, três lugares mágicos e secretos: um na rua do Amor dos Amigos; um segundo nas proximidades da ponte das maravilhas, e um terceiro na calle dei Marrani, perto de San Geremia, no velho ghetto. Quando os venezianos - por vezes malteses - se cansam das autoridades, dirigem-se a estes lugares e, abrindo as portas ao fundo desses pátios, partem para sempre para países fantásticos e outras histórias". - Fábula de Veneza, Hugo Pratt
Tiago e Joana: já têm aqui a cartografia dos portais fantásticos; se os atravessarem para o outro lado, podem prolongar por mais uma horas este dia especial.
02 outubro 2005
Thomas Mann, Morte em Veneza
(Até p'rá semana.)
01 outubro 2005
Washington «Post»
25 setembro 2005
A criação do mundo
Para o Miguel, ao quarto dia
Assim como quando uma pessoa morre o mundo acaba, quando alguém nasce o mundo é criado. Para quem tem poucos momentos de vida, não interessa se o universo foi criado há milhões de anos e continua a expandir-se ou se o seu próprio nascimento foi produto de uma evolução a partir de aminoácidos, da substituição de seres estranhos por seres estranhos e de uma longa sucessão de relações sociais determinadas, no fundamental, pelo acaso. Para o Miguel o mundo foi criado na última quinta-feira. E, em certo sentido, também para a Carla e o Vítor.
Tudo foi criado em simultâneo, mas não pode ser conhecido em simultâneo. Todos os povos têm mitos fundadores e, no nosso, ao quarto dia foram criados as estrelas, o Sol e a Lua. «Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra». É um dia importante e está a chegar ao fim. O de amanhã também vai ser comprido: são criados os seres marinhos e as aves. Dorme bem.
23 setembro 2005
O Equinócio da minha vida
Aqui, nesta hora indizível, a cabecita do Miguel assomava-se ao mundo e estreava os pulmoezitos novos. Aqui, neste minuto feliz, às 17h56, no momento do Equinócio de Outono, quando o dia tem exactamente a mesma duração da noite, a 22 de Setembro do ano da graça de 2005, senti aquilo. E isso não se descreve. No primeiro segundo, parece que olhamos para nós mesmos às avessas, como uma personagem de Borges que encontra o seu sósia. Ontem, da primeira vez que o vi em cima da barriga da mãe, umbilicalmente ligado ainda, tudo fez sentido com uma limpidez cristalina mas inexplicável. Todos os pontos do cosmos convergiram ali, enquanto reconhecia o meu filho. Enchi-me de ar, de perfumes de jardins e de rosas e de quatro ventos frescos cardeais e de todos os lugares mágicos e de fantasia do mundo. Viver até agora valeu a pena para ser atravessado por estes segundos de alegria e perplexidade.
20 setembro 2005
A vida d.f.
19 setembro 2005
O duelo: Carmona vs Carrilho
Aquilo foi a prova de que afinal eles são como nós, como a gente, piores que o pessoal, a malta, a maralha, a canalha. O duelo Carmona vs Carrilho refuta o argumento de que os políticos estão longe das pessoas, dos eleitores, enfim, do povão. Eles são povo, interpretam na perfeição a atitude discursiva alfamista ou madragoeira, são verdadeiras varinas, naifistas do Cais do Sodré, rufiões da baixaria. Interpretam aquilo que a condição humana tem de mais genuino: o instinto do ataque e o reflexo da defesa, a fúria, o olho-por-olho-dente-por-dente. Ah gandas homens, pá!
Aquilo não devia ter ficado por ali. Se eles fossem cavalheiros... Se aqueles dois rufiões fossem cavalheiros à séria, nunca tinham aplicado tantos golpes abaixo da cintura. Se fossem cavalheiros, no final, quando Carrilho recusou o cavalheiresco aperto de mão, Carmona havia de ter pegado na bengala e quebrado a dita na cabeça dura de Dom Manuel Maria; quando Dom Manuel Maria ouvisse Dom António Pedro a chamar-lhe "ah grande ordinário", havia de lhe dar dois ou três sopapos, já que ele dá a Cara Por Lisboa, e depois marcavam um duelo nas traseiras da Sé e, assim, com sorte, víamo-nos livres de ambos.
Há mínimos a cumprir em política: não basta ser sério, ter ideias e boas intenções, é preciso saber estar, porque é no domínio público que a política decorre. Como é que estes dois homens tratariam um munícipe reclamante? Ao pontapé? O que o debate nos mostrou é que Lisboa será governada por um dos dois, infelizmente.
18 setembro 2005
Cum enim saepe mecum ageres ut de amicitia scriberem aliquid, digna mihi res cum omnium cognitione tum nostra familiaritate visa est. Itaque feci non invitus ut prodessem multis rogatu tuo. Sed ut in Catone Maiore, qui est scriptus ad te de senectute, Catonem induxi senem disputantem, quia nulla videbatur aptior persona quae de illa aetate loqueretur quam eius qui et diutissime senex fuisset et in ipsa senectute praeter ceteros floruisset, sic cum accepissemus a patribus maxime memorabilem C. Laeli et P. Scipionis familiaritatem fuisse, idonea mihi Laeli persona visa est quae de amicitia ea ipsa dissereret quae disputata ab eo meminisset Scaevola. Genus autem hoc sermonum positum in hominum veterum auctoritate, et eorum inlustrium, plus nescio quo pacto videtur habere gravitatis; itaque ipse mea legens sic afficior interdum ut Catonem, non me loqui existimem.
17 setembro 2005
Inspiração em Sade
Meu caro Tiago,
Tenho uma solução para o problema enunciado por ti no post anterior: há 200 anos, a solução foi encontrada pelo Marquês de Sade. Ele escreveu coisas tão criminosas que conseguiu ir parar à cadeia onde encontrou inspiração para escrever outras ainda mais criminosas.
Ora Sade, frustrado que estava com os prazeres finitos da tortura, assassinato e traição, procura em cada personagem um um crime tão hediondo cujos efeitos sejam eternos, de modo a causar, nas suas palavras: "Um caos de tais proporções que provocasse a corrupção geral ou um distúrbio tão formal que, mesmo depois da minha morte, os seus efeitos ainda se sentissem".
Juliette, uma das suas personagens mais vis, chega a enunciar esse objectivo do autor, Sade. O de cometer "um crime moral, o crime que se comete a escrever". Sendo assim, o crime que pode cometer-se a escrever, ao contrário do que desejarias, Tiago, teria de ser absolutamente inaceitável do ponto de vista moral. Até inacessível, difícil de igualar, por assim dizer, do ponto de vista da maldade.Mas creio que o Marquês de Sade não levantou a questão dos funcionário públicos. Não era preciso. O Conde José Sócrates já os faz sentir tão culpados por existirem que o melhor era mesmo optarem entre o suicídio ou a escrita de um romance. E um romance faz menos mal à saúde que um suicídio, daí ser mais aconselhável. De preferência, um romance moralmente inaceitável. Talvez seja mais fácil ir parar à prisão sendo funcionário público, por autopunição imposta, do que escrevendo o livro mais execrável que possa ter existido. Mas são os dias que correm. Pelo menos tu és funcionário público: eu não sou isso nem suficientemente malévolo para escrever um romance que valha a pena ser lido...
12 setembro 2005
A acreditar numa reportagem que vi há algum tempo existe uma alternativa mais moderna à prisão: o funcionalismo público. Era sobre o modernismo brasileiro e o estudioso tinha chegado à conclusão de que a maior parte dos grandes poetas e escritores do movimento, como Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto, eram funcionários públicos. A relação escapa-me mas parece-me um bom argumento para uso dos sindicatos e contra a diminuição do peso do estado.
09 setembro 2005
Juliet: Three words dear Romeo, and good night indeed:
If that thy bent of love be honourable,
Thy purpose marriage, send me word to-morrow,
By one that I'll procure to come to thee,
Where and what time thou wilt perform the rite,
And all my fortunes at thy foot I'll lay,
And follow thee my Lord throughout the world.
William Shakespeare, Romeo and Juliet
07 setembro 2005
05 setembro 2005
Discurso de rentrée
Lisboa aos meus pés
01 setembro 2005
A bochecha da República
Há Repúblicas que têm bustos. Portugal tem bochechas.
Mais providencial que isto era difícil. "Como poderia eu abster-me de participar, neste momento de crise, de desorientação e de indiferença, quando amplos sectores da sociedade civil e da política me pediram tão insistentemente para avançar?", disse ontem Mário Soares quando apresentou a candidatura a Belém.
Primeiro: não podia abster-se de participar. Porque não pode a República viver sem Soares? Os cemitérios estão cheios de gente insubstituível e de homens providenciais. D. Sebastião nunca chegou a aparecer, houve um dia que Salazar morreu, Sá Carneiro desapareceu, Cunhal foi-se e o país por aí continua. Caso Soares se abstivesse de participar, que desgraça se abateria sobre nós?
Segundo: a crise e a desorientação. Imaginamos que contributos poderá Mário Soares trazer para afastar esta crise que nos sufoca? Que norte nos apontará, para orientar a nossa deriva e para combater a nossa indiferença? A indiferença acentua-se quando as pessoas se deparam sempre com a mesma coisa, as mesmas caras ao longo dos anos...
Terceiro: os apelos da sociedade civil e política. Ao desespero de Sócrates, Soares respondeu: vamos lá dar cabo do Cavaco. Vamos ver como correm os debates, vamos ver... Todos os "basta!" que Soares disse nos últimos tempos vão ser-lhe atirados à cara durante a campanha e alguém dirá: com esta história recente, quem vai acreditar numa palavra do que o senhor diz?
Porém, se todos os Guterres e Vitorinos desta vida fossem menos egoístas e tivessem a disponibilidade viril para o combate que este homem de 80 anos mostra, não haveria cromos repetidos na nossa colecção.
Foto: Jean Gaumy, Magnum Photos, 1975
31 agosto 2005
A política e as sombras
Segundo a Lusa, afirmou ter recebido "palavras de estímulo" de José Sócrates para se candidatar à Presidência da República, mas ressalvou: "É melhor não contar o resto". Mesmo assim, contou um bocadinho: "Como ninguém avançava para enfrentar Cavaco Silva, o secretário-geral do partido pediu-me para reflectir, e quando fiz essa reflexão apareceu outra solução". Não é bonito, não. Basta! basta!, já ninguém acredita nesses bastas nem nos vou lá eu!, vou lá eu! Não resta grande coisa em que acreditar.
A política é cada vez mais um jogo de sombras, onde ao movimento de um corpo corresponde na sombra a sensação do movimento contrário.
30 agosto 2005
O fósforo da Europa
"To your right, you can see Portugal burning." On a flight leaving Lisbon this week, passengers heard that gloomy advice as they gazed down at the smoke bilowing up from the pines and eucaliptus trees".
Isto visto pelos olhos dos outros ainda soa pior.
29 agosto 2005
Mentiras
Desta vez, Fátima Bonifácio tem razão. O sistema está minado. Os votantes não têm razões para acreditar no seu próprio voto. O futuro é uma lotaria. A campanha eleitoral é uma farsa. Está caducado o contrato entre eleitos e eleitores. A situação do país não me impressiona: um político honesto, que prometeu não aumentar os impostos, devia arranjar outros recursos para não comprometer o compromisso eleitoral. E logo os impostos, um dos aspectos mais centrais à relação entre os cidadãos e o Estado.
"[A moral] em política é fundamental. As pessoas podem ser ignorantes mas não são estúpidas", diz Fátima Bonifácio. O actual regime está ou não esgotado?
24 agosto 2005
Dia do padroeiro
Hoje, 24 de Agosto, é o dia do nosso padroeiro aqui no blogue, o que devia ser evidente, tendo em conta a frase que escolhemos como citação inaugural. O próprio nome, Através dos Espelhos, é muito inspirado nas leituras de Jorge Luís Borges (não é Tiago?), que faria hoje 106 anos a contar-nos coisas extraordinárias.
Para comemorar o dia, mesmo com uma enxaqueca terrível, arrastei-me até à estante, escolhi um volume das Obras Completas, da Teorema, ao acaso (saiu-me o segundo), e abri uma página do livro ao acaso (foi a 249): Estavam lá três versos propositados e adequados à efeméride.
Onde está a memória dos dias
que foram teus na terra e que teceram
fortuna e dor e foram para ti o universo?
21 agosto 2005
Madrugadas à minha porta
Um tipo preto de cabelo assim meio à rasta perguntou-nos que horas eram. Eu disse: "Seis e um quarto". O polícia à paisana, ao meu lado, respondeu-lhe mais alto: "É meidia". Ainda não tinha nascido o sol.
- Foi este homem que você viu, está a reconhecê-lo? - interrogou-me o agente.
Uns três ou quatro polícias dominavam o ladrão, um branco cheio de agilidade, que tinha acabado de assaltar o externato do meu prédio, fugindo com um salto directo do primeiro andar para o chão. Chorava baba e ranho e, ao que parece, tinha a mochila cheia de máquinas de calcular. Afinal, um pobre diabo de quem não vale a pena ter pena. Todas as noites deve fazer o seu servicinho. Fui eu que chamei a polícia, depois de ouvir o barulho dos vidros partidos. Foram rápidos a chegar e eficientes a actuar. Não fosse...
- É esse mesmo. Com a t-shirt branca, o boné e a mochila cinzenta - disse eu, apontando o gatuno.
No meio da confusão, o negro das horas não desarmou e voltou à carga, direito ao polícia - os vapores e madrugadas do Cais do Sodré são maus conselheiros. "Eu só queria saber as horas, meu, por que é que tás a dizer que é meidia?"
Levou um estalo. Dois estalos, três estalos. Ou mais. Com força.
- Já vi a matrícula do carro, o meu pai é advogado, moçambicano! - berrou, atordoado.
- E o meu filho é juiz! - respondeu o agente.
Não cheguei a perceber se o mano estava a ver que os paisanos eram da polícia. Voltei para casa. Ainda dormi, apesar de tudo. E ainda estou a pensar o que levou o chui a esbofetear um desgraçado cujo único crime foi embebedar-se, perguntar as horas e tornar-se num chato.
20 agosto 2005
De que é feita a nossa memória? Recordamo-nos mal de coisas que adoraríamos lembrar, e fazemos um esforço danado para esquecermos outras memórias que não deixam de nos assombrar.
Acabei de ver o filme O Despertar da Mente em DVD, com Jim Carrey e Kate Winslet, lamentavelmente perdido no cinema. Quem o viu, sabe do que estou a falar. Decididamente, um dos filmes da minha vida. Pelo menos hoje é.
18 agosto 2005
O acto poético
A ideia de se ter alma ou de se ser um desalmado é interessante na boca de um socialista que fala de um suposto amigo.
Proclama ainda Alegre, pensando em Soares mas também em Cavaco, que "não há salvadores da pátria nem homens providenciais". Pois não. Por acaso já tínhamos reparado: ninguém tem salvo a pátria nos últimos tempos, antes pelo contrário; e todos os homens que Providência nos legou se revelaram um desastre.
Afinal quem é Alegre? Nem salvador nem enviado pela Providência, é o poeta irredutível no seu quadrado que traz a alma à política. É bonito, mas não se percebe muito bem para que serve.
14 agosto 2005
Um mês
12 agosto 2005
OTArios (adenda)
Decoro
OTArios
11 agosto 2005
Entrevista com o Diabo
10 agosto 2005
Lisboa entre as 7 e as 8
No Príncipe Real, já para os lados de S. Bento, há uma ervanária que dá pelo nome de Sô Zé, que tem uns azulejos com o número 666 por cima da porta. Ora Sô Zé, ao que sabemos, é o nome de um bruxo que já foi José Esteves, antigo bombista nos anos quentes e que guarda um segredo sobre Camarate....
Na Rua António Maria Cardoso, um vagabundo dava pontapés nas coisas e gritava makeké!, makeké!, pensam que isto é tudo deles!.
Um pouco mais abaixo, as obras na antiga sede da PIDE estão avançadas na direcção de um empreendimento de luxo. Uma parte do terceiro andar onde ficavam os presos políticos já foi abaixo. Um país sem memória não é uma nação. Makeké!
09 agosto 2005
Contradição maciça
05 agosto 2005
Contributo para uma referência a PSL
"Google meu, google meu, existe algum político português com mais referências na Internet do que eu?"
"Não, mas cuidado, meu lindo, porque as referências são muitas mas nem todas são boas, nem nos blogues de direita... Agora há outro primeiro-ministro, jovem, belo e grisalho, chamam-lhe cabeça branca de neve, e só ele poderá destronar-te, tal é o caminho que as coisas levam", responder-lhe-ia o computador...
Ar condicionado
03 agosto 2005
31 julho 2005
Escala de Glasgow
«9 Songs», Michael Winterbottom
29 julho 2005
Chuva na areia do deserto
(Também seria interessante saber se se faziam procissões no Antigo Egipto e quem é que carregava o andor, mas não me parece que o problema esteja entre as prioridades da comunidade arqueológica.)
28 julho 2005
Soares e Cavaco: uma história
Mais tarde, no segundo livro das entrevistas a Maria João Avillez, Mário Soares chegou a reconhecer que foi “totalmente desagradável” para com Cavaco naquela reunião. “ A questão das flores foi apenas um simples toque de humor em resposta a uma alusão que Cavaco fez”, justificou Soares à jornalista. E descreveu-o: “Mas o professor, nessa altura, apresentava-se muito rígido e contraído – ao dar os primeiros passos na grande política e não aparentava grande sentido de humor”. Aliás, nunca o teve.
Mas não havia razões para rir, naquela época. E a conversa deve ter sido tão feia que o próprio Cavaco Silva recorda este episódio sempre que descreve os momentos de maior tensão vividos com Mário Soares ao longo dos 10 anos de coabitação. A propósito de um desentendimento ocorrido em 1991 – por causa dos acordos de paz para Angola -, Cavaco descreveu assim, no segundo volume da sua Autobiografia Política, outro ataque de cólera de Soares: “A minha argumentação de que deveria ser eu a fazê-lo [a presidir ao acto de assinatura dos acordos entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi], como chefe do Governo, não só não o convenceu como o irritou profundamente. Levantou a voz, zangadíssimo e ameaçador e quase não me deixou falar. Era uma táctica que utilizava quando queria impor os seus pontos de vista ao interlocutor, e que eu conhecera a primeira vez na célebre cimeira das flores (…). Descarregou sobre mim a sua fúria e voltou a avisar-me para ter cuidado”. De cada vez que Soares fazia uma cena, Cavaco punha “uma cara séria”. Respondia-lhe como diz ter feito da primeira vez que se desentenderam enquanto Presidente da República e primeiro-ministro. Nas suas memórias, Cavaco conta que mantinha a fleuma: “Delicadamente, mas com firmeza, disse-lhe que não valia a pena falar alto porque eu ouvia bem, que não era por isso que me convencia e que eu não saía dali sem lhe expor os meus argumentos”.
Soares e Cavaco tiveram 310 reuniões semanais a sós, habitualmente às cinco da tarde, no Palácio de Belém, durante 10 anos de convivência mais ou menos forçada. Portanto, os dois homens que devem confrontar-se em Janeiro conhecem-se bem, apesar das desconfianças mútuas. “Em geral, [Mário Soares] apresentava-se nas nossas reuniões com o ar afável e simpático que fazia e faz parte do seu estilo político”, conta Cavaco na Autobiografia. Antes de começar a expor os assuntos em agenda, o professor “observava o Presidente para tentar descortinar a sua boa ou má disposição”. Na entrevista a Maria João Avillez, Soares contradiz o ex-primeiro-ministro: “Nunca levantámos a voz”. E classifica as suas relações com Cavaco como “cordiais, embora talvez um pouco distantes e – digamos – impessoais”.
Andaram quase sempre de candeias às avessas. Sobretudo na segunda maioria absoluta do PSD (1991-1995). Soares fartou-se de vetar diplomas de Cavaco, sem o avisar previamente nas reuniões semanais; mas Cavaco também decidiu apoiar a recandidatura de Soares a Belém (em 1990/91) sem antes o informar; Soares abria as portas do Palácio de Belém a todos os críticos do Governo do PSD e promovia Presidências Abertas devastadoras para o Governo; e Cavaco incluía-o naquilo a que chamava “forças de bloqueio”; já no fim do cavaquismo, o Presidente chegou a ponderar a dissolução da maioria do PSD no Parlamento e a convocação eleições antecipadas, ao mesmo tempo que patrocinava o congresso "Portugal que Futuro!"; quase em simultâneo, o primeiro-ministro ironizava que era preciso ajudar Soares a acabar o mandato com dignidade.
Geralmente, em momentos de discórdia, o Presidente soltava umas ameaças veladas ao primeiro-ministro. “Olhe que a sua posição vai voltar-se contra si”, avisava. A desconfiança era mútua e durou uma década. É muito tempo.
A campanha das presidenciais promete.
27 julho 2005
Como Deus dispõe deste laico...
«Como o primeiro mandato correu francamente bem, pensava não ter qualquer interesse pessoal em renovar a experiência.
Depois, 10 anos é um longo período. Para o que pensava fazer depois de ser presidente com algumas legítimas ambições intelectuais que me falta concretizar e ainda outros projectos, considerava que abandonar a vida política com 66 anos era, para mim, o mais indicado, ficando com algum tempo para o que imagino ter ainda que fazer: escrever, reflectir, agir no plano cultural e cívico, sem responsabilidades político-partidárias ou de Governo; viajar, conviver com pessoas interessantes, transmitir experiência que adquiri em termos de poder ser comunicado aos outros. Mas o homem põe – como diz o Povo – e Deus dispõe…
Felizmente que a Constituição não permite um terceiro mandato – sábia disposição legal!»
(ver pág. 210)
Se a Constituição é tão sábia, haverá quem seja menos avisado...
26 julho 2005
O engodo
25 julho 2005
A loucura do geronte
Nem mais.
19 julho 2005
Momento Raul Brandão
Depois da sabática
O senhor dez por cento
18 julho 2005
Zero e absoluto
Entre o zero e o absoluto, há nada. Deste lado, onde tudo pode acontecer, convém que coisa alguma seja vista como uma fatalidade. O destino só existe quando resta o escuro, o silêncio e o apagamento eterno. De resto, até ao dia zero, todas as possiblidades são infinitas.
17 julho 2005
Cabriolices
16 julho 2005
Gentis e perigosos
Já vi gente indignada com estas descrições sobre os terroristas, mas o problema não é novo. Ouvi um colega a argumentar que estes filhos da puta são filhos da puta sobre os quais todos se deviam recusar a fazer descrições simpáticas. Mas temo que as coisas sejam um pouco mais complicadas. Aqueles que praticam o mal contemporâneo, mesmo o mal mais profundo, não andam por aí como demónios, de chifres e cauda. Antes pelo contrário.
O livro Eichmann em Jerusalém, de Arendt coloca o mesmo problema, entre o mal e a malícia, embora no caso dos terroristas islâmicos a questão da intencionalidade seja bastante clara. Depois de analisado por um grupo de psicólogos e psiquiatras, Eichmann, um dos arquitectos das Solução Final, foi considerado absolutamete normal, assustadoramente normal, um pai de família comum. Isto é que é assustador.
Arendt entendia o tribunal se devia ter dirigido a Eichmann assim:
"Estamos apenas preocupados com o que você fez, e não com a possível natureza não criminosa da sua vida interior e dos seus motivos, ou com as potencialidades criminosas dos que o rodearam".
Há muito tempo que devíamos saber que homens gentis são capazes das maiores barbaridades.
13 julho 2005
Terrorismo em Portugal
"Portugal contabiliza 479 militares mortos no Iraque só nos últimos seis meses"
ou
"Ataque terrorista provoca 479 mortos em Lisboa"
Imaginemos que um destes dois títulos fazia manchete nos jornais portugueses. Conseguimos imaginar as discussões que haviam de seguir-se, toda a barafunda de opiniões, análises, medidas do Governo, protestos e manifestações, emissões em directo, emissões especiais, a nossa vida quotidiana em suspenso...
A citação que se segue é a verdadeira:
"Entre 1 de janeiro e 12 de Julho de 2005, morreram nas estradas portuguesas 479 pessoas".
A frase faz parte de um texto notável do Hugo Gonçalves na revista Atlântico, com o título "Relatório de um acidente", onde uma mãe fala de um filho que morreu num acidente de automóvel. Li o texto ontem, e consternou-me.
Hoje, a minha consternação disparou. O meu pai telefonou-me e deu-me a noticía. A noite passada, em Grândola, mais um acidente, choque frontal, três mortos, dois feridos, um deles grave. Eu conhecia-os a todos. Tanto ao bêbado que saiu fora de mão, como aos outros que iam sossegadamente na sua viagem. São mais três, a juntar a todos os casos que testemunhei, todos em Grândola, os da minha família, os meus amigos, os meus conhecidos...
Este terrorismo silencioso devia revoltar-nos. Mas nada acontece. Esta vergonha devia pesar na consciência da nação, como se todas as catástrofes que sobre nós se abatem fossem culpa nossa enquanto não resolvêssemos esta doença civilizacional.
Este terrorismo negligente explode todos os dias. Nenhum Governo teve a coragem de impor o grau zero de alcoolémia ao volante. Em 2001, Guterres quis baixar o limite de 0,5 e recuou, na mais clara demonstração de fraqueza de um Governo. Uma infâmia. Vende-se álcool nas bombas de gasolina. Tudo se tolera. A morte tolera-se. Em Portugal, quando se circula devagar é por medo da multa, não por medo da morte. Pode-se apoiar a invasão do Iraque, tomar medidas anti-terroristas, dar meios aos serviços de informações, falar até a exaustão sobre isto tudo, os pobres nos países pobres revoltados contra os ricos nos países ricos, mas fecha-se os olhos ao que se passa debaixo do nosso nariz.
É estranho. O combate à sinistralidade devia estar à frente da luta contra o défice. Nem deputados nem Governos assumem esta bandeira. Por quê?
Só mais esta frase da Atlântico: "Segundo um estudo da Universidade Nova de Lisboa, mais de metade dos condenados por homicídio por negligência, em casos de desastres de automóvel, continuam a conduzir. Em 2001, 51 por cento dos crimes contra a vida humana forma cometidos em acidentes de viação".
Os bárbaros acham sempre que são civilizados.
12 julho 2005
Mais uma resposta provável
A UE carece, de facto, de uma agência de segurança europeia credível, dotada de um corpo de análise e de operações. E porquê? Porque a União é, hoje, uma área política e economicamente integrada. O espaço Schengen permite que os cidadãos viajem sem passaporte e as deslocações para zonas da UE exteriores a Schengen foram, igualmente simplificadas. Aliás, seria absurdo implementar padrões de segurança ou sistemas nacionais distintos para proteger as fronteiras externas da UE."
Excerto de um texto de Wolfgang Munchau, colunista do Financial Times, publicado hoje no Diário Económico.
11 julho 2005
Outras respostas possíveis
«Isto não significa que a minha resposta a estas atrocidades seja passiva. Mas a resposta correcta não está - como os comentadores da estação televisiva americana Fox News querem fazer crer - em duplicar os ataques militares para fazer desaparecer "o inimigo" no Iraque ou noutro país qualquer. A resposta está num policiamento especializado e numa política inteligente. Recusando calmamente a metáfora melodramática da guerra, a Polícia Metropolitana de Londres descreveu os locais do metro e autocarro que sofreram os ataques bombistas como "cenas do crime". (...)
Um acordo de paz entre Israel e a Palestina removeria outro grande centro de recrutamento de terroristas islâmicos. E, é claro, unir esforços com vista à modernização, liberalização e eventual democratização do grande Médio Oriente é a única forma certa e duradoura de drenar o pântano onde se reproduzem os mosquitos terroristas. Neste campo, é mais a Europa do que os EUA que precisa de abrir os olhos, urgentemente, para a necessidade de tomar mais medidas. Hoje em dia, os acontecimentos que ocorrem lá longe, em Cartum ou Kandahar, têm um impacto directo sobre nós - por vezes fatalmente, enquanto nos dirigimos para o trabalho, sentados numa carruagem do metropolitano entre as estações de King Cross e Russel Square. Deixou de haver política externa. Talvez seja esta a lição mais profunda a retirar do ataque terrorista de Londres.»
08 julho 2005
Uma resposta possível
É imperativo trabalhar no sentido de proporcionar uma completa participação democrática aos jovens de educação muçulmana através das instituições (...), que encoragem a mobilidade social no sentido ascendente e o aparecimento de novas elites"
The War for Muslim Minds, 2004, de Gilles Kepel - professor da cadeira de Estudos sobre o Médio Oriente no Instituto de Estudos Políticos em Paris, um do mais respeitados especialistas em islamismo, autor de outro livro conhecido, Jihad
07 julho 2005
Bloody thursday
Nem as explicações preguiçosas de Soares nem o voluntarismo arriscado de Bush.
A resignação também não nos aproveita.
O que fazer quando o mundo à nossa volta está à beira de entrar em disrupção? - e isso pode acontecer a cada segundo que passa, em qualquer momento podemos morrer num terramoto.
O que fazer quando, a qualquer hora, o nosso pequeno universo, na nossa cidade, pode entrar em colapso num atentado terrorista, tão acidental na maneira como distribui os estragos quanto um desastre natural?
A primeira resposta é viver naturalmente antes. E procurar viver naturalmente depois.
A nossa presumida liberdade e o nosso estilo de vida não podem ser afectados, porque é esse o objectivo de quem nos inocula o medo - medo aos cidadãos, medo injectado nos político porque eles são obrigados a encontrar respostas, mesmo quando não as há.
O desencadear de respostas violentas que justifiquem mais violência é outro fim de organizações como a Al-Qaeda. A invasão do Iraque (não a do Afeganistão) foi um favor aos terroristas islâmicos.
Mas, se não podemos resignar-nos, qual é a forma de agir contra inimigos sem rosto, sem território, sem programa ideológico (e lógico)? As nossas sociedades estão habituadas a ver razões por detrás das acções dos outros. Mas a ausência de racionalismo da parte do inimigo é outra coisa que nos mata. Mata-nos o raciocínio.
O que aconteceu hoje em Londres há-de repetir-se noutro lugar. É uma guerra fácil, minimalista. Com poucos meios produz-se um efeito máximo: a América protegeu-se 40 anos dos mísseis soviéticos e sofreu o maior revés da sua história em território continental por causa de uma dúzia de homens de canivetes. Ironia assassina.
Este mal só é banal por se parecer com a acção dos vilões dos livros de comics. É o mal na sua mais tradicional fórmula malévola: semear destruição sem colher benefícios. Uma equação de onde não resulta qualquer bem para nenhuma das partes.
No dia em que estas coisas acontecem não há respostas. Só perguntas. Dúvidas. As respostas começam a nascer no dia seguinte.
30 junho 2005
Outras curvas
Sugiro que também se estudem as curvas ilegais na recta de Pegões...
29 junho 2005
First day at the office
23 junho 2005
Mr. Dalloway
22 junho 2005
A Rh+
Durante a vaga de calor
21 junho 2005
Poucaterra não há calha
Numa metáfora feliz, o Durão Barroso primeiro-ministro disse uma vez que a União Europeia era um grande avião sem piloto. Onde é que pára agora o maquinista? Talvez haja maquinista, mas acabou-se a ferrovia...
18 junho 2005
O megafone racista
Mas há coincidências tramadas. Minutos depois de um cabeça-rapada perorar sobre a expulsão dos imigrantes com o exemplo da expulsão de mouros - junto à Mouraria onde tantos anos os muçulmanos conviveram com os cristãos -, uma nova peça do telejornal devolvia a estes sabujos um espelho ao qual não gostariam de se ver.
A polícia britânica montou alarmes na casa dos emigrantes portugueses que vivem numa vilória inglesa para os proteger de ataques racistas e xenófobos (por parte de outros brancos), na sequência dos protestos por causa de um homicídio alegadamente cometido por um português. O problema é o mesmo, nem vale a pena dizê-lo, posto ao contrário.
Dar voz e ouvidos a esta gente é abrir o caminho a males que repousavam fechados na nossa caixa de Pandora. O que eles dizem é tão ridículo, irracional, e brutal que parecem inofensivos aos seres dotados de razão. O perigo é o que eles representam. As esquerdas e as direitas democráticas têm de ter um discurso claro sobre segurança, apresentar medidas viáveis, e uma ideia sobre como lidar com a imigração, os bairros degradados e a integração. Se não ocupam o espaço vazio, esta gente aproveitará as brechas.
17 junho 2005
O que diz Immanuel
13 junho 2005
Um vida bem vivida
11 junho 2005
Leitura de férias
04 junho 2005
31 maio 2005
28 maio 2005
Ensaio sobre a cegueira
27 maio 2005
A nossa lepra incurável
"Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação económica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.(...)
Temos um déficit de 5.000 contos. Esta é a negra, a terrível, a assustadora verdade. Quem o promoveu? Quem o criou? De que desperdícios incalculáveis se formou? Como cresceu? Quem o alarga? É o governo? Foram estes homens que combatem, foram aqueles que defendem, foram aqueles que estão mudos? Não. Não foi ninguém. Foram as necessidades, as incúrias consecutivas, os maus métodos consolidados, a péssima administração de todos, o desperdício de todos. Depois, as necessidades da vida moderna, de terrível dispêndio para as nações. Como na vida particular, cresceram as superfluidades, o vão luxo, o aparato consumidor, mais precisões, mais gastos, a vida internacional tornou-se tão cara que mais ou menos todas as nações estão esfomeadas e magras.(...)
O déficit tornou-se um vício nacional, profundamente arraigado, indissoluvelmente preso ao solo, como uma lepra incurável."
Eça de Queiroz, 1867
26 maio 2005
António das Pêgas, o manageiro
A este veterano do montado, de olho azul e 72 anos, chamam-lhe António das Pêgas. É manageiro para os lados de Santiago do Cacém, o que significa comandar um rancho de homens e mulheres que fazem trabalho sazonal para os lavradores lá da zona. Aqui apanhei-o a beber pelo cocharro, durante uma tirada de cortiça serrana, para os lados das Vendas do Roncão. Vê-se pela maneira como olha a objectiva que é um tipo vaidoso, do género velho gaiteiro. Meneia as ancas como o John Wayne, mas no lugar da pistola leva um machadinho.
O ofício exige saber popular misturado com ditâmes de Bruxelas: ao lado da machada transporta uma corda com os centímetros exactos do diâmetro legal mínimo do tronco dos sobreiros que tiram a primeira cortiça virgem. Abraça um chaparrinho com o cordel e diz este já pode ser. Depois toca num frondoso com a palma da mão e conclui que foi maltratado numa época antiga, por tiradores brutos, sem sensibilidade no machadar, que feriram a carne da árvore em dia de chuva. É preciso muito ouvido para sentir a lâmina entrar sem castigar o tronco. O prémio do bom tirador - para além do prémio do fim do dia, os dezasseis contos da jorna -, é quando a cortiça "arrota" ao descolar do tronco num canudo perfeitinho, a bela prancha que há-de dar com que enrolhar uma pinga da melhor.
O António das Pêgas não havia de gostar de saber dos conluios entre os nossos governantes e os interesses privados para abater sobreiros em troca de campos de golfe. Ele não teria jeito para caddy, mesmo com aquele menear de ancas à cowboy.
25 maio 2005
Admirável leveza do ser
Este monstro imposto
23 maio 2005
Notas marginais
22 maio 2005
Viva o Porto e as equipas que festejam longe daqui
21 maio 2005
Cunhas
20 maio 2005
Dilemas
18 maio 2005
O défice de felicidade e as contas públicas
Há coisas na vida que não se medem. Um dia perguntei a um historiador estrangeiro, que tinha escrito um livro sobre o desenvolvimento das nações, se ele sabia se as pessoas eram mais ou menos felizes antigamente, quando eram mais pobres e menos desenvolvidas, ou hoje, rodeadas de tecnologia. Ora ele encolheu os ombros e disse que não fazia ideia. Tinha escrito no dito livro que a felicidade era um subproduto do desenvolvimento.
Ora, vamos lá teorizar um bocadinho sobre isto: um povo que canta fado mas nunca ganhou o festival da canção, que foi à final do Euro e perdeu logo com os gregos, que vai aos magotes pagar promessas a Fátima agradecendo qualquer ponta de felicidade como um favor da divina providência, que bate recordes de boletins do euromilhões na esperança de enriquecer, e que consome cada vez mais antidepressivos, precisa de muito mais que de ultrapassar o défice.
O défice está no meio de nós, omnipresente, a escutar atrás das portas e tolher-nos os movimentos porque não estamos contentes porque não somos felizes e não somos felizes porque não estamos contentes. Nós somos o défice. Erradicá-lo era como deitar os Jerónimos a baixo. Não podíamos ser pobres e desgovernados, até tolos, mas ao mesmo tempo evoluirmos nos critérios de convergência da máxima felicidade?
Patinagem artística
Todas estas palavras deixam-me com a certeza que algo não vai bem com esta sociedade. Ao ouvir as opiniões de uns e de outro, pergunto-me a mim mesmo se estará alguém a usar a razão naquilo que diz ou se apenas se decidiu dar voz à inquietação que sobressalta da alma de cada um. De um lado, o Padre de Lordelo, que longe do politicamente incorrecto, mostrou antes uma falta de sensibilidade (e presença de espírito) extrema. Errou no tempo e no modo como quis marcar a sua posição. Do outro, os indignados da sociedade... A estes, sinceramente, não consegui ainda perceber a causa da indignação. Terá sido pelas circunstâncias em que o disse? Será por o clérigo ter dado a entender que é pior morrer uma criança no seio da mãe do que uma criança de cinco anos? Terá sido por ter tido a ousadia de considerar que um bébé no seio materno é realmente um bébé? Qual destas razões (ou outras...) terá causado a indignação de cada um?Tudo me leva crer que não terá sido pela primeira razão que apontei. Pelo menos, na maioria dos indignados. A esses gostava de deixar aqui as seguintes questões: Qual é a diferença entre a morte de um adulto e a de uma criança? Qual a diferença entre a morte de uma criança de 5 anos e a de um bébé de 6 meses? E depois de responderem com a razão a estas questões, tentem aplicar a vossa resposta a esta derradeira questão: qual será a diferença entre a morte de um bébé no seio materno e a de um adulto? Apenas um testemunho para aqueles que nunca ouviram o coração do seu filho a bater e as suas pequenas mãos a dizer adeus enquanto se aconchegam dentro do ventre da sua mãe: um bébé com 12 semanas através de uma máquina de ecografia parece mesmo um bébé...
Não, meu caro Afonso, neste caso o problema não está em saber se um bebé no seio da mãe é realmente um bebé. Aqui a coisa não é preto ou branco. O problema é a graduação que é feita pelo padre, ao considerar que a vida de uma criança de cinco anos, brutalmente assassinada, vale menos do que um feto na barriga de uma mãe. Eu respeito a opinião das pessoas que são contra o aborto. Eu votei sim no referendo, mas dificilmente apoiaria a realização de um aborto que me dissesse respeito. A questão em debate é outra: o fundamentalismo a que me referi reside no facto de o padre valorar mais aquilo que são os ditâmes gerais da Igreja em relação ao aborto do que a vida daquela criança em concreto. Mais: ele não valorizou a vida daquela família que teve de o ouvir a dizer tamanho disparate, e que foi à Igreja buscar algum consolo.
PS: a resposta do Afonso pode ser lida aqui nos comentários
14 maio 2005
O Fundamentalista medieval
Se o Papa Bento XVI é um homem contra os relativismos modernos, que diria ele do relativismo medieval defendido por este obscuro padre? Mais vale um homicídio tardio que um aborto precoce? Um homem que diz isto numa casa onde há quem acredite haver uma presença Deus está do lado do bem ou do lado do mal?
Qual a diferença entre o padre Domingos e os apedrejadores de mulheres islâmicos? O que fará a hierarquia da Igreja em relação a ele? Com que consolo saíram daquela missa as almas dos familiares da criança? As palavras do padre Domingos são um segundo crime contra aquela criança: a profanação de uma alma inocente.
13 maio 2005
Linha
12 maio 2005
Abater sobreiros: o crime de traição à pátria de Nobre Guedes e Costa Neves
Quando no fim do Verão o meu avô Hermes me oferecia uma nota de cinco contos, era porque tinha vendido a cortiça lá do brejo. Toda a vida olhei para os sobreiros com respeito, sinal de riqueza e posses na terra de onde venho. Os homens destas fotografias tiradas em 2002 na Serra de Grândola ganham 16 contos por dia na recolha do petróleo alentejano. Toda a gente ganha alguma coisa, neste negócio. A produção portuguesa de cortiça domina o mercado mundial, mas não chega para todas as encomendas. O bem é escasso para uma produção mundial cada vez maior de garrafas de vinho a precisarem de ser rolhadas...
Por isso fico tão irritado quando me abatem os chaparros, é uma coisa de pele. Este caso da Portucale em Benavente deixa-me danado, e não é só por causa da falta de sombra para bater umas sornas: um ministro do ambiente (Nobre Guedes) e outro da Agricultura (Costa Neves) a mandarem abater mais de dois mil sobreiros para fazerem um empreendimento turístico só mostra que ainda não ultrapassámos o velho modelo de (sub)desenvolvimento. Se dantes era só betão, agora é betão mais relva para o golfe. O Grupo Espírito Santo fez um comunicado ridículo a dizer que tinha plantado cinco mil sobreiros noutro local. Só que desses, poucos vingarão. E a primeira tirada de cortiça virgem é feita só aos primeiros 40 ou 50 anos da árvore. E a segunda tirada aos 60 anos ainda não é da maior qualidade. Não é preciso haver tráfico de influências para eles serem culpados de um crime lesa-pátria.
A morte de Vítor Hermes
O meu primo, da minha idade, chamava-se Tito Hermes. Morreu aos 25 anos num desastre de mota. Esta era uma pequena homenagem. O pai dele chama-se Joaquim Hermes. A minha mãe não recebeu o nome, mas é conhecida como a Maria José Hermes. Durante muito tempo o meu irmão assinou Rui Hemes. Na minha terra ninguém sabe quem é o Vítor Matos. Seria preciso acrescentar: é um dos Hermes. Mas esta semi-clandestinidade durante um ano e tal de blogue incomoda-me. Devolvo-me ao mundo dos mortais com o meu nome de mortal: passo a assinar os posts com o meu nome verdadeiro: Vítor Matos.