13 novembro 2007

Grandes remédios

Quando entrei grogue na sala de operações branca ainda disse Já saltei de páraquedas. No fim depois de me coser empurrando a minha maca um homem de bata ouviu-me perguntar Então sou bonito por dentro? No recobro sozinho quando só máquinas e bips no escuro e uma braçadeira a inchar-se de tempos a tempos no antebraço para apurar números e o peito cheio de tubos com coisas a escorrerem de mim ao perceber que ali a C. pensei Estou vivo.

10 novembro 2007

O génio que cansa

Como ele diz, mais ninguém escreve assim. É verdade. Comprei O Meu Nome é Legião, o último de António Lobo Antunes, à entrada do metro, a metade do preço, mercado negro. Tão negro como os seus livros, onde cada história é contada através de uma trança de pensamentos de personagens, ou como nós, quando estamos a pensar e vem um pensamento atrás do outro, e depois outro, sem nexo ou com nexo, tanto faz, mas ele escreve-o bem. Tão bem que é brilhante. Tão genial que cansa.

08 novembro 2007

Aviso à população

Desapareceram ontem à noite de sua casa dois adolescentes, aparentando cerca de trinta anos. A última vez que foram vistos, no Coliseu, vestiam ganga e tons de preto. O rapaz tinha uma mão no bolso, a outra com uma garrafa de água e abanava muito ligeiramente a cabeça ao som dos Interpol. Não sofrem de perturbações mentais – pelo menos diagnosticadas – , nem são perigosos. Pede-se a quem tenha tido notícias sobre o seu paradeiro o favor de não o comunicar à filha de ambos, para evitar chantagens na futura adolescência.

Novembro no andar de baixo

Chove na casa de banho da minha vizinha. Se ligo o chuveiro, chove. Então, ligo o chuveiro na mesma, mas tapo o ralo da banheira. Depois tiro a água suja à baldada, mas chove na mesma. Já lhe disse: a casa dela é que está bem. Estamos em Novembro e em Novembro, por costume e hábito de muitos anos, chove.

02 novembro 2007

Como o início de um livro, um fim de tarde

As famílias felizes são todas iguais, vão todas para o Jardim da Estrela, as infelizes vão cada uma para seu lado.
Os quartos de hotel são todos iguais, os quartos de hotel são todos iguais. No interior sentimo-nos como se estivéssemos a fugir de alguma coisa, quando só queremos ser encontrados. Os quartos de hotel são quartos de motel, com um carro estacionado frente à porta, pronto para uma fuga através do deserto. Têm bíblias nas gavetas das mesas de cabeceira, marcadas onde o hóspede anterior as abandonou: Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor, estando numa terra estranha? (Sl 137:4). Têm alcatifa e um espelho ao fundo. No quarto escuro, com a luz intermitente da televisão, vê-se nele (o espelho) o reflexo do fugitivo, em cima da cama, o telecomando na mão. Os quartos de hotel são todos iguais. Mesmo quando não são.
Vistas de cima, num voo nocturno, as cidades parecem campos de um incêndio extinto, antes do rescaldo. A iluminação pública alaranjada concentra-se em brasa ou espalha-se em linhas de fractura, mais ou menos geométricas, conforme os bairros a que servem de limite. E depois, pelo meio, os vazios escuros e imensos onde intuímos massas de água, como o Tejo. Endireitar a cadeira, recolher o tabuleiro, apertar o cinto, regressar a casa.

25 outubro 2007

um eléctrico chamado prazeres

Longe de New Orleans, há um eléctrico chamado prazeres, que termina em graça. Para o outro lado, termina no largo em frente ao cemitério. Entrei nele pela primeira vez há pouco tempo, numa visita mais ou menos cultural. Os mortos, passadas várias gerações e estando mortas também as pessoas que os conheceram pessoalmente, são apenas história e antropologia. Podemos passear pelas alamedas de ciprestes sem qualquer sentimento mórbido, como quem passeia ao fim da tarde por um bairro suburbano.
No resto da cidade, a arquitectura é o resultado de um equilíbrio entre demolição e construção. Por isso é nos cemitérios que podemos analisar mais claramente a sucessão dos estilos arquitectónicos. Mausoléus e jazigos neoclássicos, neogóticos, arte nova, modernistas lado a lado, em filas intermináveis, com nomes de famílias que se perpetuam e extinguem do lado de fora dos muros.

15 outubro 2007

Ensopado de enguias

Parta as enguias depois de arranjadas e lavadas e salgue-as. Faça um refogado com duas cebolas às rodelas e três dentes de alho picados, uma folha de louro, uma colher de chá cheia de colorau, um ramo de salsa e um copo de vinho. Deite as enguias no refogado e deixe que apurem bem. Rectifique o sal e quase a terminar a cozedura deite mais meio copo de vinho branco. Sirva as enguias numa travessa sobre fatias de pão torrado ou pão frito.

(Desculpem, mas já tinha vergolha de não publicar nada há tanto tempo. Para os mais sugestionáveis, bom apetite.)

30 setembro 2007

Descrição

É manhã de domingo e chove. Pusemos a tocar o Music for Egon Schiele de Rachel’s. O som do chuveiro da J. reproduz o da chuva no interior da casa. A L. gatinha sobre o soalho de madeira brilhante e clara, brinca com uma das minhas botas. As vidraças têm riscos de bátegas do lado de fora e os nossos rostos encostados do lado de dentro. A água escorre pelos carris inclinados do eléctrico. Seguem paralelos para lá da curva em que os deixamos de os ver.

21 setembro 2007

A biografia de cada dia

"Um dia onde cabe uma vida inteira". Era o que eu escreveria na cinta do "Sábado", do Ian McEwan, se trabalhasse na Gradiva. Finalmente li-o. Num instante. Mas talvez na Odisseia dublinense que andas a ler, Tiago, caiba mais alguma coisa no dia que apenas uma vida inteira. As biografias afligem-me porque resumem as grandes vidas a um livro, a um artigo de jornal, a um obituário, a uma frase. Deviam ser escritas assim: um livro para cada dia de vida dos biografados e cada um de nós seria uma biblioteca imensa.

30 agosto 2007

A primeira coisa parecida com uma palavra da L. foi Olá. Não sei se é um indício de que vai ser muito simpática ou de que vai gostar tanto de gelados como os pais.

29 agosto 2007

Um banho de imersão ao chegar a casa, sem medo de molhar o livro. A marca no capítulo dezassete, onde se fica a saber que L. Bloom admira na água, entre outras coisas, a inquietação das suas ondas e partículas superficiais visitando em turnos todos os pontos do litoral; o seu apaziguamento após a devastação. Andei perdido neste livro durante dez anos ou algumas semanas, de ilha em ilha. Agora estou quase a chegar a Ítaca, no n.º 7 de Eccles Street, Dublin. Regressei a casa e a temperatura da água vai diminuindo gradualmente na banheira, sobre a praia.

23 agosto 2007

Posta de Nicósia - on religion

O Tiago tem razão. Aliás, conta-se uma história que ilustra bem esse exemplo, sobre os irlandeses. Encontravam-se dois e perguntavam-se: és ateu católico ou ateu protestante? É isso, a religião como produtora de uma determinada cultura. Nesse sentido também sou um ateu católico. Não sou, comprovadamente, um ateu muçulmano.

Penso que a religião deve ser absolutamente respeitada. Mas do ponto de vista indivudual. Ninguém tem nada a ver com a confissão que quem quer que seja professa. Isso é uma coisa de cada um para si mesmo. O problema é que as igrejas são comunidades, e as comunidades são fenómenos grupais e os grupos projectam uma mundovisão, e depois há mundovisões que chocam e às vezes isso é o fim do mundo.

Escrevo em Nicósia, capital de Chipre. Cheguei hoje de Beirute. Ora Beirute é um dos muitos exemplos de como uma sociedade em que se a religião não saísse da soleira da porta ou do adro do templo, tudo seria mais fácil para todos. Neste contexto, a religião não tem qualquer utilidade para a política: há cristão, cristãos maronitas, xiitas, sunitas, eu sei lá. Os cristão têm o presidente, os sunitas o primeiro-ministro e os xiitas o presidente do parlamento. Ou seja, para além de todas as confusões, nem sequer falam uns com os outros. acredito nos benefícios individuais da religião em muitos casos, mas duvido muito dos benefícios da religião para a política.

Por que sou cristão

(O texto do Vítor é um bom ponto de partida para uma reflexão que há muito andava para fazer. O título é baseado no de uma palestra proferida por Bertrand Russell em 1927: Why I Am not a Christian.)

Em todos os congressos há alguém na plateia que, depois de o orador ter terminado, se levanta, pede a palavra e começa a descrever uma qualquer ideia excêntrica. Chegou a minha vez de pedir o microfone: sou um ateu católico. Não acredito em qualquer tipo de transcendência, sobrenatural ou misticismo. Acredito que o universo existia antes de nós e que eu não existirei depois de mim. Sou culturalmente católico. Há rituais que cumpro porque sinto que fazem sentido. Se tivesse crescido nas selvas da Amazónia, provavelmente tinha pintado o tronco e jejuado para marcar a puberdade. Assim, fui crismado. O ponto essencial é não me sentir vinculado a nenhuma autoridade. Aceito o que quero e rejeito o resto. Basta-me que Jesus Cristo tenha sido homem. Acredito na tolerância, no perdão com arrependimento e no auxílio aos mais desfavorecidos. Não é uma posição confortável, mas sinto que seria uma hipocrisia maior rejeitar totalmente a minha educação católica sem me apetecer, só por ser mais popular.
A utilidade social da religião é uma ideia que alguns autores foram trazendo para a filosofia política ao longo dos tempos. Não é essa a minha posição. É uma religião meramente pessoal. Aguardo serenamente a excomunhão e o relâmpago.

A mão do Baptista

No Montenegro, o mais jovem país do mundo, há uma mão de São João Baptista, num mosteiro ortodoxo. Na mesma urna, que os monges adoram e abrem para mostrar aos turistas, está um lenho da cruz de Cristo. Olhei para aqueles objectos sagrados a ver se sentia alguma coisa, se me invadia assim um pequeno frisson religioso e nada. Tornei-me ateu e não há nada a fazer.

22 agosto 2007

Uma enorme indolência. Desejar a destino de Hans Castorp, na Montanha Mágica: ir visitar um primo a uma casa de repouso e acabar internado. Uma cadeira longa, uma manta nas pernas, um livro aberto abandonado sobre o peito. Apanhar o comboio que desce para o vale, eventualmente, mas só lá para o Outono.

21 agosto 2007

Um passageiro, sempre com a ponta do bilhete a sair da ponta dos dedos, para mostrá-lo logo que o peçam, para confirmarem o direito à viagem, no banco de trás, o vidro baço, entre a gravidade e a graça, num autocarro nocturno.

20 agosto 2007

French-kissing

Desdobrámos o mapa de estradas. A meio caminho entre Grândola e o Carvalhal há uma povoação chamada Beijinho de Água. Quando passámos por lá, na manhã seguinte, a placa indicava Brejinho de Água. Mais verosímil mas menos poético. Consultei vários mapas e o erro repete-se. Podemos facilmente imaginar um geógrafo solitário a esconder uma gralha por entre as linhas que se bifurcam e interseccionam. As prensas só tiveram depois de multiplicar o erro, torná-lo credível. A meio caminho entre dois lugares há um beijinho de água.

29 julho 2007

Hoje a temperatura está mais elevada fora do que dentro dos nossos corpos. A meteorologia aconselha à introspecção. Lá fora não há nada. Lisboa está quase deserta, com ilusões de água no alcatrão a escaldar. As circunstâncias excepcionais parecem justificar comportamentos excepcionais. A partir dos trinta e sete graus e meio as convenções sociais são abolidas. Na Rua Garrett uma mulher vendia poesia. Perguntei-lhe a quanto estava o poema. Dois euros, mais do que as cerejas. Perto de Belém, meia dúzia de crianças chapinhava dentro de uma fonte, sob o olhar atento das mães. Num parque de estacionamento público, no carro ao lado do nosso, um casal estava a ter sexo tórrido no banco de trás. Mudámos de lugar, para não os incomodarmos, apesar de a sombra ser a mais cerrada. Estendemos uma manta na relva, debaixo de uma árvore, frente ao rio.

25 julho 2007

Variação sobre uma frase de Nixon

Quando as democracias ocidentais reflectem sobre si próprias, imaginam-se Atenas, mas quando se olham ao espelho vêem Roma.

24 julho 2007

Segundo as más línguas da época, Epicuro gostava de fazer sessões tardias de filosofia, vomitava duas vezes por dia por excesso de comida e desfrutava da companhia de quatro senhoras, que apelidavam de Hedeia (Docinho), Erotion (Amorzinho), Nikidion (Pequena Vitória) e Mammarion (Grandes Mamas)*. Depois, já sabemos, veio a Escolástica, a questão dos universais, o imperativo categórico e a filosofia nunca mais foi a mesma.

(* A fonte da história é o livro de Anthony Gottlieb, The Dream of Reason)

20 julho 2007

Quem me conhece sabe que os meus genes heterossexuais foram totalmente dirigidos para as mulheres. Não sobrou nada para os automóveis. Não sei quanto cilindros é suposto terem, nunca comprei a Automotor e acho que só a Volta à França em Bicicleta é mais aborrecida que o Grande Prémio do Mónaco. Durante alguns anos optei mesmo por não ter automóvel e fazer as minhas viagens pela cidade a ler no banco de trás dos transportes públicos.
Por motivos inesperados o prazer da condução voltou. Quando comprámos o carro, ele vinha com leitor de cassetes. As minhas e as da J. já estavam guardadas no caixote do lixo da história, no fundo de um armário, para onde o avanço da tecnologia as mandou. Foi possível voltar a ouvir coisas que nos ajudaram a suportar a adolescência, pela mesma ordem em que as gravámos, com os mesmos cortes abruptos. Ontem, cruzei a noite e o Eixo Norte-Sul ao som de Sugar Kane dos Sonic Youth.

13 julho 2007

O Vítor passou a outro e não ao mesmo e, como o Mário de Sá-Carneiro, o outro sou eu-próprio.
Os últimos cinco livros que li: Na Praia de Chesil, Ian McEwan; Civilization and Its Discontents, Sigmund Freud; Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss; A Estrada, Cormac McCarthy; A Peste, Albert Camus.

30 junho 2007

O dueto astronómico


O alemão Johannes Kepler sofria de visão dupla. O dinamarquês Tycho Brahe usava uma cana do nariz em prata para substituir a de osso, irremediavelmente danificada num duelo. Este par de improváveis astrónomos encontrou-se em Praga no magnífico ano de 1600. Ambos devem ter apreciado uma vista parecida a esta há 400 anos, sobre o Vlatva, com a lua a tocar nos pináculos do castelo da cidade. Kepler baseou-se na exactidão dos cálculos de Brahe - protegido do habsburgo Rudolfo II -, para aperfeiçoar o seu sistema solar, quando ainda se acreditava que era a terra o centro do universo. Esta história dava um romance: dois astrónomos e matemáticos brilhantes, um rei à beira da loucura e os charlatões que o rodeavam.

A Ponte que faz existir

No maior ícone de Praga, a ponte medieval Carlos IV, acotovelam-se os turistas. Para ouvir falar checo sobre a ponte, é preciso lá chegar antes das oito da manhã, quando ainda nem há vendedores de bugigandas instalados. A ponte define, faz existir, não se limita a ligar margens que já lá estão. É verdade. Escreveu Heidegger.

«A ponte reúne, enquanto passagem que cruza, ante as divindades - quer pensemos explicitamente, ou visivelmente dermos graças pela sua presença como na figura do santo da ponte, quer essa presença divina seja obstruída ou mesmo afastada completamente. A ponte reúne em si e a seu modo Terra e Céu, divindades e mortais»

Heidegger, citado por Banville em Imagens de Praga




Praça, sol e cerveja



Diz Banville que a «cerveja checa sabe a campos de feno crestando sob o sol de Verão». Na verdade, bebi muita cerveja checa, meio litro de cada vez, debaixo de um sol esplêndido enquanto em Lisboa chovia. Esta praça da Cidade Velha, como as praças de todas as velhas capitais europeias viu mortes e execuções, invasores a chegar e invasores a ir, viu histórias que nos dias de hoje custa a crer.

Praga, livros e papel pardo

Praga é uma cidade bela e aprazível, e mais seria não fossem as hordas de turistas a deambular a toda a hora (aliás, como nós). Como o irlandês Banville escreveu, os checos não parecem um povo alegre. Mas há grandes coincidências, lá isso há. O hábito de forrar os livros com papel pardo, por exemplo: para evitar os informadores? Hoje não. Tiago, tu deves saber responder a esta dúvida existencial.

«Os habitantes de Praga são os mais circunspectos citadinos. Passageiros nos eléctricos e no metro retiram cuidadosamente a sobrecapa dos livros que trouxeram para ler durante a viagem, por mais inócua que seja; alguns chegam mesmo a encaderná-los com papel castanho para ocultar o título das lombadas. Compreensível, claro, numa cidade há tanto tempo tão cheia de informadores, e os velhos hábitos são difíceis de abandonar».

in Imagens de Praga, de John Banville (Edições Asa; trad. Teresa Casal)

05 junho 2007

O café da manhã

Com a idade, os hábitos vão-se fixando. O pequeno almoço é um dos rituais mais inflexíveis do meu dia, e se falha um dos pequenos elementos da alimentação matinal, não começo bem a jornada. Quando estou fora, em viagem, pode ser-me penoso prescindir dele. Ora, é mais ou menos assim: um iogurte, cremoso ou de pedaços, normalmente magro e de morango; uma ou duas torradas de pão alentejano com queijo flamengo que se começa a derretar com o quentinho da fatia (também pode ser queijo fresco, ou requeijão); uma banana a ficar para o maduro; um chá verde numa caneca, para ajudar a empurrar uma série de comprimidos. No fim de tudo, o café.

O café tem especial importância no ritual. É o remate. A cereja em cima do bolo. O fim do momento onde começa o meu dia. Agradeço, por isso, a todos os meus amigos que contribuíram para tornar as minhas manhãs ainda mais agradáveis com aquela máquina nova. Sabe bem. E apareçam lá em casa para tomar um cafezinho. Obrigado.

21 maio 2007

Qualquer dia discutimos Proust

Passo quase todos os dias pela Casal Ribeiro a pé. Ao fim da tarde, início da noite, cruzo-me com um sem-abrigo, na sua cama improvisada. Habitualmente, lê livros. Um vagabundo literário. Ou um escritor maldito na reforma? Da última vez, esta semana, lia um livrinho de capa negra, não percebi qual. Seguramente, possui vantagens sobre mim: tem para ler o tempo que me falta, um bem escasso que faz dele rico; e consegue ler na cama, coisa que a mim sempre me fez doer as costas.

04 maio 2007

Os anos passam e comentamos entre amigos que estamos todos como antes, ah, ah, até parece que mudámos, mas afinal estamos todos na mesma, só um bocadinho mais maduros... depois... depois combinamos uma peladinha de futebol e a realidade atropela-nos.

02 maio 2007

Levar a torradeira ao jardim

Há umas semanas, desde que vi uma mulher a atravessar a passadeira, mesmo diante do meu carro, a puxar um micro-ondas pela trela, que não consigo deixar de pensar em como a minha televisão deve estar triste na sala de estar.

30 abril 2007

Na rua da minha infância ninguém morreu, apesar de muitos terem morrido. De vez em quando a minha mãe conta-me que a mãe, o pai, o marido, a avó de alguém morreu. Como já não moro lá, as tragédias esbatem-se e é difícil ir mantendo um registo actualizado. Na dúvida, continuam todos vivos. Coexistem assim duas ruas. Uma em que há viúvos e viúvas e novos inquilinos em algumas das casas. E outra que se manteve inalterada desde que me mudei, com os mesmos habitantes, parada no tempo como uma fotografia. Nesta, até o campo de futebol ainda não foi substituído por mais um prédio de habitação. A primeira rua é mais verdadeira. A segunda é mais real.

23 abril 2007

A rua onde passei a minha infância e adolescência foi transformada em sentido único. É apenas irónico que as autoridades rodoviárias tenham confirmado, com uma placa, o que eu já sei há muito tempo.

22 abril 2007

Claude Lévi-Strauss escreveu que em São Paulo é possível dedicarmo-nos à etnografia dos domingos. Em Lisboa também. A tribo é a dos melancólicos: os que andam pelas ruas de comércio fechado, mais lentamente que nos dias úteis; os que se sentam numa escada a ouvir o som que vem das casas em que almoços familiares semanais se prolongam; os que procuram um porto de abrigo no único café aberto do bairro para lerem um livro; os que se sentam à porta de casa a descascar uma laranja com os dedos e a ouvir o relato; os que dizem «- Deve estar um dia agradável lá fora.» e carregam no telecomando para ver o que esta a dar noutro canal; o que observa e relata estas práticas de modo antropológico, observador-participante sem objectividade e com umas horas para perder.
Ontem um vento que já não faz frio percorreu-me os antebraços durante toda a tarde. Durante o passeio comprei os Essays de Francis Bacon numa feira ao ar livre de livros usados. Numa das primeiras páginas tem a inscrição: Luís Saavedra Machado/1939. No primeiro parágrafo do último ensaio (Of vicissitude of things), Bacon relembra a velha ideia de que a matéria se encontra em perpétuo fluxo. O facto de estar a ler essa frase, 68 anos após o Sr. Luís – provavelmente já morto e com a biblioteca disseminada pela cidade –, é prova suficiente dessa corrente, que é como uma profecia que se auto-realiza.

20 abril 2007

A criada veio trazer-me numa bandeja de cristal contente a rir cerimónia uma imensidade de compotas e refrescos. Devia ser uma criada nova com certeza, porque eu não a reconheci. Mas tão pouco podia compreender que tivessem tido o espírito de aceitar como servente uma extravagante que logo no primeiro dia entrava completamente nua no meu quarto a servir-me um primeiro almoço que nunca fora tão exuberantemente de meu hábito. E com uma destas naturalidades impressionantes desdobrou os guardanapos quadradamente azuis sobre uma mesa que eu também nunca conheci no meu quarto e foi dispondo com requinte decorativo prò meu apetite os cristais, os reflexos, os doces e as coxas. [José de Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul]

17 abril 2007



Desde que nasci que passo parte do verão por baixo de carvalhos, em volta deles, a tentar trepá-los sem sucesso. São centenários e têm raízes grossas que se espalham como veias dilatadas à superfície da pele e cavidades perfeitas para esconder e descobrir tesouros. A melancolia de final de férias faz com que traga quase sempre na bagagem umas landras (nome que dão às bolotas na região). No ano passado, depois de ter desfeito as malas, lancei-as de forma displicente para um vaso já ocupado por uma buganvília. Após meses de negligência descobri que nasceu um pequeno carvalho, agora com cerca de dez centímetros. Um carvalho num vaso, numa varanda de um quarto andar de Lisboa, parecerá absurdo a quem perceber de botânica. Não a quem perceber de psicologia. É só uma questão de tempo até ter de tomar uma decisão sobre o destino a dar-lhe. Para tudo é apenas uma questão de tempo.

16 abril 2007

Num diálogo do Livro V da República Platão sugere que na cidade ideal os filhos deveriam ser tirados aos pais ainda bebés e entregues ao cuidado do estado. Pais e filhos não se reconheceriam. As mães «de seios túmidos de leite» seriam levadas até às crianças sem que pudessem pressentir se estavam a amamentar a sua.
Pensei várias vezes esta manhã que algumas utopias só falham pelo exagero enquanto subia do Calvário para as Necessidades para levar a L., com cinco meses, ao seu primeiro dia de infantário. Pensei também na história do irmão da Isabel: prepararam-no para o primeiro dia de primária e parece que as coisas correram bastante bem. No segundo dia, quando o foram acordar para ir para a escola, exclamou admirado «– Outra vez!», sem perceber que ainda o aguardavam muitos anos de aulas.

15 abril 2007

Paul Verlaine tentou matar a própria mãe em duas ocasiões diferentes ao longo da vida de ambos e numa outra o seu amante Rimbaud. Nos três casos estava sob o efeito do álcool ou da poesia, substâncias que tendem a despertar o lado teatral e trágico dos seres humanos. Com Rimbaud a cena passou-se em Bruxelas, em 1873, e foi a última vez que se terá passado alguma coisa de interessante nessa cidade.

13 abril 2007

É conhecido que os utilitaristas eram filósofos com um espírito prático. Jeremy Bentham, por exemplo, desenhou planos para um novo tipo de prisão. A distribuição do espaço no panopticon faria com que os guardas pudessem observar os prisioneiros mas não o contrário. A ideia era moldar o comportamento dos reclusos através de uma combinação de omnisciência e de incerteza. Na dúvida, teriam de agir como se estivessem a ser observados.
Não foi a primeira vez que a arquitectura tentou chegar a deus, apenas uma das mais estranhas. Como qualquer teólogo cristão poderá confirmar, será igualmente uma tentativa votada ao fracasso. A incerteza faz apenas com que os espíritos oscilem entre a piedade e a expiação.

02 abril 2007

Pergunta sem resposta,de que me lembrei agora mesmo: pode-se morrer mais tarde, com o aumento da esperança de vida, mas poder-se-á nascer mais cedo?

01 abril 2007

ship of fools

Hieronymus Bosch, The Ship of Fools, 1490-1500


A nave dos loucos foi uma imagem bastante utilizada pelos teólogos da Idade Média para representar a humanidade como o grupo de passageiros de um navio que não sabe, nem quer saber, para onde este navega. Mas a alegoria é redutora. Há sempre os que se aborrecem com os jogos de cartas, os daiquiris no bar da piscina e percorrem a amurada em busca de um sinal de terra. De facto, as personalidades humanas dividem-se entre os que embarcam pela viagem e os que embarcam pelo destino, entre a vida-cruzeiro e a vida-cacilheiro. O mais estranho é que, na minha opinião, é impossível dizer qual dos dois grupos está certo ou é mais feliz.

28 março 2007

O tributo das sereias

Eu cá nunca pesquei sereias nem tritões, nem nunca lhes ouvi cantares, nem comi caldeiradas de peixes assim. Mas ao ler a Descrição da Cidade de Lisboa, de Damião de Góis, descobri que ambas as espécies abundavam nas águas doces e salgadas da capital portuguesa, até havendo um imposto lançado sobre essas especiais pescarias. Num contrato entre Dom Afonso III e o mestre dos Cavaleiros de São Tiago, que o autor terá visto com os seus olhos, estabeleceu-se que "o tributo das sereias e dos outros animais pescados nas praias da mesma ordem se devia pagar aos reis". Ora deve ser de ouvir tanto canto das sereias que este país se tornou nisto...

13 março 2007

O chão da nossa casa é de tábua corrida. A madeira brilhante, clara e lisa range em alguns sítios e, por isso, por vezes parece que estamos a andar sobre o convés de um veleiro, com o cordame a gemer ao ritmo da ondulação. Estamos fundeados numa baía, à espera do escaler que nos há-de levar a terra. Não chegamos a ir, mas a expectativa mantém-nos alerta, a espreitar pelas janelas, a sentir o vento no cesto de gávea.

12 março 2007

pólen

A minha alergologista disse-me que talvez tenha chegado a altura de me insensibilizar. Nunca nenhum médico que tinha dito que havia essa opção.

09 março 2007

His nearness to the devouring sun softened the fragrant wax that held the wings: and the wax melted: he flailed with bare arms, but losing his oar-like wings, could not ride the air. Even as his mouth was crying his father’s name, it vanished into the dark blue sea, the Icarian Sea, called after him. [Ovídio, As Metamorfoses]

Desaparecer no azul profundo do mar, como Ícaro, por uns segundos. O verão ainda tão longe.

08 março 2007

Um post sobre nada

Por uma ligação que parece impossível, as casas de banho públicas com iluminação activada por sensores de movimento são propensas a criar ambientes de rodeo. Se demorarmos um pouco mais em frente ao urinol a luz apaga-se e vemo-nos na estranha situação de ter de manter uma mão a segurar o pénis e a outra no ar a fazer movimentos circulares para que ela se volte a acender.

(Tive o cuidado de não recorrer ao uso de metáforas – touro, animal, etc. – para não pensarem que me estou a gabar. A modéstia nunca é demais, ao contrário das figuras de estilo.))

25 fevereiro 2007

À menina Maria da Graça

Há dias veio-me parar à mão um livro especial. Certa tarde, nos anos 30, um homem gentil e reservado, que traduzia cartas comerciais ali numa firma da Rua da Prata, recebeu um pacote. Uma editora enviava-lhe os primeiros exemplares impressos do primeiro livro. Ele abriu-o, sem saber que nunca mais veria o primeiro exemplar de livro nenhum. Tirou o volume que estva apor cima, dedicou-o, e ofereceu-o à rapariga que lá trabalhava. "Com estima, Fernando Pessoa". E ali estava eu agora, com o livro na mão, a vê-lo, de lacinho, calças curtas, prestes "a descer a rua do Ouro a pensar em tudo o que não fosse a Rua do Ouro", a dizer, "menina Maria da Graça, aqui tem. E... não há um valezinho este mês? Ah, então não faça caso, não se preocupe, já cá não está quem falou". E a dar-lhe aquele poema, "Liberdade", batido à máquina, e corrigido com a sua caneta, que ficou ali dentro, dobrado, durante 70 anos. Eu emociono-me quando me encontro com objectos especiais. Devia ter sido antiquário. Não. Talvez rico e coleccionador, porque não era capaz de me separar de objectos destes.

14 fevereiro 2007

Comprámos uma gaiola chinesa, apesar de não termos um pássaro. Como uma gaiola vazia deixa de ser um objecto para passar a ser um símbolo, decidimos pôr lá dentro o mais parecido que temos com um canário, um CD da Madame Butterfly. Primeiro pensei pôr-lhe no interior a P.J. Harvey, mas cheguei à conclusão que ela deve ser como o Quetzal, que morre quando lhe tiram a liberdade. Em todo o caso, deixámos a porta da gaiola entreaberta, para preservar o que lhe resta de simbólico.

21 janeiro 2007

Slows: da pastilha ao SMS

A minha amiga Dulce Garcia escreveu esta semana uma crónica para a revista Domingo do Correio da Manhã sobre essa instituição da nossa adolescência que era, meus amigos e amigas, o slow. A leitura do texto fez-me lembrar as matinés de sexta-feira no Desportivo Grandolense, que podiam alternar com matinés na sede do PPD ou na Música Velha (que ficava na porta ao lado e era afecta ao PCP, para que não haja equívocos). Era o grande tormento da Associação de Pais do liceu, onde o presidente da dita perorava contra esses antros de iniciática perdição (em tabaco, álcool, sexo, drogas, faltas injustificadas, sabia-se lá...). Ora esse pai, o presidente, era exactamente o pai de uma das mais requisitadas moças para o grande momento dos slows, embalantes, dos finais dos anos 80. Aquilo era assim: primeiro, iam os casais de namorados; depois, seguiam os quase-quase namorados e os galãs das curtes irresistíveis; depois seguiam os mais tímidos ou aqueles cujas conquistas exigiam mais "tácticas". Uma dessas tácticas - e aqui some-se todo o romantismo que o momento podia envolver - era, segundo o meu amigo Alberto, a "táctica da pastilha". Consistia em tirar a pastilha da boca (Gorila, de preferência), de forma mais ou menos evidente, antes de pegar na rapariga, e esperar pelo sinal. Se ela também deitasse fora a sua, a curte estava garantida. Como é que se faz hoje? Manda-se um SMS?

18 janeiro 2007

A foggy day...

Este domingo, no Parque das Nações, ainda pensei que me podia cruzar com o D. Sebastião a correr, a andar de bicileta ou a passear o cão. Que bela manhã de nevoeiro...

Foto: Vítor Matos

A inveja da sorte

Os confettis no passeio faziam-me, confesso, alguma inveja. Quando eu morava na rua do Arsenal, na Baixa, tinha a duas portas da minha uma casa da sorte, que assinalava assim, com papelinhos cor-de-rosa e fitas de Carnaval o prémio de um cliente, confirmando-se que os sortudos tinham ali a sua casa. Nunca os deitaram por mim, que não jogava lotaria nem totoloto. A excepção foi quando ganhei nove euros, no Euromilhões, em que joguei levado pela febre de um jackpot. Afinal, quando fui levantar o prémio, tinha deixado caducar a data. Não tive direito a confettis.

Zeus e danaes

Na única vez que fui experimentar a sensação de enfiar moedas numa slot-machine, no Casino Estoril, assisti a um fenómeno curioso. Antes da abertura das portas já inúmeras pessoas se distribuíam ao longo de uma linha de partida imaginária e à hora certa parecia a Saída dos Operários das Fábricas Lumière ou uma corrida de reclamação de terras no Far West: pessoas a correr para ocuparem as máquinas que tinham passado a noite anterior a engravidar de moedas. Assisto a algo semelhante quando passo de manhã frente a uma casa de apostas da Rua de Alcântara. Pouco antes das nove horas já há uma fila de pessoas à espera que a porta se abra. Lá dentro apenas se vende totobolas, totolotos, euromilhões e raspadinhas. Um vício estranho e que, como todos os outros, não pode esperar.

16 janeiro 2007

A L. descobriu a mão. E chucha indiscriminadamente o mindinho, o seu-vizinho, o pai-de-todos, o fura-bolos e o mata-piolhos.

15 janeiro 2007

Iwo Jima e Guiné

As "Bandeiras dos Nossos Pais", de Clint Eastwood, é um grande filme: boa narrativa em trança, filme complexo, e imagens de guerra talvez melhores que o desembarque na Normandia do Soldado Ryan. Mais do que a crueldade, mostra a crueza da guerra, a sorte e o azar dos acasos, mas sobretudo a memória. "Doc" passou toda a vida a ouvir chamar "Socorriista!!". Conheço homens que estiveram com o meu pai na Guiné que também ouvem as vozes da guerra durante a noite, que não os deixam dormir e os desesperam. Nós temos homens como os de Iwo Jima entre nós. Só não temos é como tornar esses sentimentos evidentes com grandes filmes, porque não temos meios (e se calhar talento) para os fazer.
[A nossa lista de mundos infinitos foi actualizada. O único critério para retirar ligações foi a inexistência de posts há mais de seis meses. Espero que a limpeza de ano novo não seja encarada como uma forma de punição. O critério aplica-se a todos nós, que escrevemos contra o tempo: publish or perish.]

14 janeiro 2007

Guilherme de Faria, poeta sobre quem o José Rui Teixeira está a preparar a tese de doutoramento, suicidou-se na Boca do Inferno, onde o mar é revolto. O fim estaria mais apropriado para Rimbaud ou Baudelaire, que eram poetas malditos mas morreram numa cama. Não sei qual foi a influência do Simbolismo em Guilherme de Faria, mas é preciso carregar a certeza de uma culpa sem redenção para não tentar pelo menos o Purgatório.

11 janeiro 2007

Três anos... é algum tempo!

Como nos casamentos, convém de vez em quando refazer os votos. Este blogue, meus amigos, fez antes de ontem três anitos. Para que os votos se renovem, aqui se reposta o texto inaugural de Através dos Espelhos. Aproveitando a ocasião, e parecendo que o tempo é circular, inaugurei hoje, com o João Cândido Silva, outro blogue, o Elevador da Bica. Não, não deixarei de escrever aqui, para infelicidade dos meus amigos, mas fá-lo-ei num registo mais aproximado da prosa do quotidiano do Tiago (aproximado, sim, porque eu não sei escrever bem como ele), e os assuntos mais políticos e de comentário ficam para o elevador. Continuem a aparecer porque nós continuaremos os nossos reflexos.

09 Janeiro 2004
Primeiro reflexo

O espelho é um objecto estranho. Por reflectir a realidade, e sobre ela, mas não ser a própria realidade, abre infinitas possibilidades de distorção. Por isso, neste blogue, teremos por vezes uma realidade convexa ou côncava. Basta dobrarmos ligeiramente a superfície, mais por motivos estéticos do que ideológicos. Não para distorcer a realidade, mas para construir outras representações dela. A sensação poderá ser, para quem lê, a de caminhar pelo meio das galerias de espelhos dos parques de diversões, onde nós e tudo o resto que as atravessa passa do grotesco ao ridículo com um passo, do semelhante ao desigual. Também gostamos do jogo de distorcer pessoas, devolvendo-lhes depois os rostos intactos. Os espelhos têm ainda outra característica, que não escapa a todos que se debruçam sobre eles*: a profundidade. Se nos aproximarmos, parece que podemos cair para o outro lado. Neste blogue seremos seres intermédios entre Giordano Bruno e Alice: acreditamos na infinidade dos mundos e usamos os espelhos para entrar neles.

No mundo da política, da sociedade, da cultura, da ciência. Entramos e tudo nos é estranho. Contamos o que vemos. Regressamos aparentemente iguais. Depois ardemos todas as noites nas fogueiras ateadas com as folhas escritas. E espelhos somos nós também, porque reflectimos as realidades conforme a nossa superfície foi sendo talhada: não pronunciamos verdades absolutas, que não as temos, mas aquelas que o nosso espelho de água devolve aos que se miram em nós, como o lago que chorou a morte de Narciso porque se reflectia nos olhos do jovem enquanto ele admirava o seu próprio reflexo. É através de um falacioso espelho de feira - a maneira de cada um de nós ver o mundo -, que aqui projectamos a imagem que temos dele. Sejam bem-vindos

Tiago Araújo/Vítor Hermes

*Como Umberto Eco (Sobre os Espelhos e Outros Ensaios ,Difel) ou Jorge Luis Borges (Obras Completas, Teorema).

10 janeiro 2007

O vestido cor de fogo

A história é triste. Fanny morre. Era a segunda mulher de Henry Wadsworth Longfellow, poeta americano que viveu entre 1807 e 1882. Segundo se conta, Fanny estava a selar um envelope com caracóis de cabelo que tinha cortado a duas das suas filhas mais novas e o seu vestido incendiou-se. Longfellow tentou salvá-la e ficou com queimaduras no rosto, que ocultou com uma barba durante o resto da vida. A imagem de Longfellow a abraçar a mulher para tentar extinguir o fogo que a consumia é de uma beleza trágica. Se a isso juntarmos caracóis de cabelo selados em envelopes parece-me que temos o espírito do século XIX.

09 janeiro 2007

Room service

A caminho do pequeno-almoço vi, junto à porta de um dos quartos do hotel, um tabuleiro com o pouco que sobrou de um fondue de chocolate e morangos. Na maçaneta estava pendurado um sinal de do not disturb. Ao passar, sem ruído, pensei que do lado de dentro deviam estar duas pessoas sem receio de expor os restos da sua paixão ou uma a tentar esconder a totalidade do seu isolamento.

03 janeiro 2007

O talho


O interessante na pintura mais recente de Lucian Freud é o modo indiferente e amoral com que pendura as peças de carne pelo espaço. Não é como a de Francis Bacon, em que a carne já está retalhada no gancho que a suporta, gerando repulsa e necrofilia. Nos quadros de Freud, as pessoas não foram apanhadas num qualquer momento especial das suas vidas. Estão inertes, sonolentas, prostradas e o desejo existirá antes ou depois daquele momento. Não sabem que estão a ser pintadas ou não têm forças para oferecer resistência.

02 janeiro 2007



Um jornal inglês calculou que Lucian Freud, o pintor britânico, teve cerca de quarenta filhos ilegítimos ao longo da vida. Tive oportunidade de ver uma retrospectiva da pintura de Freud em Veneza, num museu com vista sobre a Praça de São Marcos. Foi provavelmente a exposição individual que mais me marcou até hoje. Ao ler a notícia, quase dois anos depois, percebo porque é que grande parte da obra é composta por representações de nus.

01 janeiro 2007

Filas e Felicidade

Por falar em felicidade e economia, na semana entre o Natal e o Ano Novo, deparei-me com três curiosas filas, que em comum têm apenas o facto de a uma pessoa se seguir outra, com a paciência de esperar o tempo que for preciso pelo seu lugar, de modo a satisfazer determinada necessidade.

- Uma fila enorme na rua Garret, no Chiado, de gente a comprar café na loja da Nespresso (nota: não estava lá o George Clooney e as bombocas de café podem encomendar-se pela Net);

- Uma fila enorme na Fundação Gulbenkian para ver a exposição do Amadeu Souza-Cardoso (nota: a mostra está aberta nas sextas-feiras até à meia-noite);

- Uma fila enorme diante de uma carrinha branca, no jardim Constantino, de sem-abrigo a receber malgas de sopa (eram mais copos de plástico), para aconchegar o estômago.

Bem, isto foi uma hipótese de auto-resposta ao meu post anterior.

PIB e Felicidade

A edição especial de fim de ano da Economist levanta uma questão interessante: a relação entre desenvolvimento económico e felicidade.

Somos 3% mais felizes quando a economia cresce 3%? Somos mais felizes na China, onde a economia cresce loucamente, na Finlândia, onde os indicadores de desenvolvimento são os melhores do mundo, nos Estados Unidos, onde fica a capital do Império, ou em Belize onde o pessoal anda de chinelos a dar mergulhos entre os corais?

Uma vez entrevistei um economista ilustre, um senhor idoso chamado David Landes, que escreveu um este livro: "A Riqueza e a Pobreza das Nações", porque é que umas são mais ricas e outras mais pobres. Ele dizia qualquer coisa como isto: nos países desenvolvidos, a felicidade é um subproduto. Perguntei-lhe se podíamos medir a felicidade. Ele disse que não. Para que é que tudo isto serve, então? Ele respondeu-me com a história de um livro que estava escrever, sobre herdeiros de grandes fortunas, dizendo que fulano de tal passava o dia a jogar ténis e a andar em grandes carros... não seria feliz? Mas não seríamos nós, eu jovem e ele velho, mais felizes porque até gostamos de trabalhar?

Não sei onde esta conversa toda nos poderia levar...
"The past is no good to us. The future is full of anxiety. Only the present is real - the here-and-now. Seize the day".

Conversa de dr. Tamkin para Wilheim em "Seize the Day", de Saul Bellow

29 dezembro 2006

As coisas que usamos para marcar as páginas dos livros revelam bastante sobre nós. Durante muito tempo usei bilhetes de comboio. Lia nos comboios, encostado ao vidro, com o sol e as sombras a alternarem-se sobre as folhas, ou de pé, nas horas de ponta. Quando depois andava pelas ruas de Lisboa, com o livro na mão, a ponta do bilhete traia a minha natureza suburbana. (Uma natureza de que sempre me orgulhei. Nos subúrbios os movimentos de experimentação cultural, em especial na música, eram muito mais activos do que no centro da cidade. As tribos eram mais variadas e criativas: os heavys, os vanguardas, os rockabillies.) Depois usei quase tudo: talões de multibanco, pacotes de açúcar vazios, guardanapos de café. Tudo isto porque nos últimos tempos tenho reparado que utilizo quase sempre os próprios talões de reposição que as editoras colam na página três dos livros. Dei por mim a pensar se isso não quererá dizer que não tenho tempo sequer para me levantar e procurar uma coisa mais apropriada. Seja como for, tenho apenas uma regra: qualquer coisa serve como marcador de livro, menos um marcador de livro.

27 dezembro 2006

Na cidade são os hábitos que fazem as aldeias. Os lugares que costumamos frequentar geram padrões de comunidade, que podemos abandonar ou adoptar de modo voluntário. A contiguidade geográfica não é um factor relevante. Os locais onde vivemos, passamos os tempos livres e fazemos compras podem ficar a alguma distância uns dos outros, com muitas ruas inospitaleiras pelo meio. Nestas aldeias, muitas vezes as ruas têm nome, mas as pessoas não. Têm rosto e função: quem nos serve o café, quem nos traz o correio, quem se costuma sentar ao nosso lado nos transportes públicos, quem lê o jornal todos os sábados na mesa em frente à nossa. Os amigos têm todos nome, mas geralmente também só encontramos os que frequentam os mesmos lugares. Para o bem e para o mal, vivemos nas aldeias que criamos.

26 dezembro 2006

Sem aquecimento central, refugiamo-nos numa das divisões da casa, com as portas e as janelas trancadas e um aquecedor. Os vidros estão embaciados. Lá fora pode ser a Sibéria e estarem a passar tribos nómadas de criadores de renas. Com as sobras do natal podemos sobreviver até ao próximo equinócio. Alguns dos nossos amigos voaram para sul*. Nós ficámos parados nesta estação.

* De avião, para o Brasil.

19 dezembro 2006

O A. ofereceu-me O Mito de Sísifo de Albert Camus. O ensaio que dá o título ao livro centra-se na fase em que o herói desce a encosta para recuperar a pedra que rolou até ao sopé da montanha. Para Camus esse é um momento trágico, em que Sísifo se torna consciente da sua condição. Passa os únicos instantes em que podia desfrutar da vista e do ar da montanha a cismar no sentido da vida e nos problemas no trabalho. Camus termina o texto com a frase: É preciso imaginar Sísifo feliz. E isso resume toda uma filosofia.

17 dezembro 2006

A lenda atribui o feito a Ulisses, mas é mais certo que tenham sido fenícios, de Tiro, a fundar Lisboa. Meteram-se em barcos e atravessaram todo o Mediterrâneo e umas milhas de Atlântico para construírem uma cidade frente ao estuário do Tejo, na rota entre a Fenícia e as Ilhas Britânicas, onde comerciavam metais. A maioria dos fenícios já partiu, alguns provavelmente foram mudando de nome e vivem na mesma encosta ou na encosta ao lado.
Passados mais de dez séculos, militares portugueses fizeram o caminho inverso. Passaram ao largo de Ítaca e estão neste momento estacionados perto de Tiro, uma cidade do actual Líbano, como parte do contingente da FINUL. A ironia é ainda maior quando nos lembramos que Portugal decidiu enviar uma companhia de engenharia de reconstrução. Os momentos em que a História permite a retribuição são raros. Se ainda existem fenícios em Tiro, qualquer que seja o seu nome, espero que tenham ido até à praia saudar o regresso dos barcos.

13 dezembro 2006

Estive em Berlim por momentos. Para ter a perspectiva dos anjos, subi à torre da televisão (365 m), no lado oriental da cidade, ao fundo de uma avenida a que chamam «sob as tílias». As árvores não têm folhas nesta época do ano e as iluminações de Natal sobem pelos galhos despidos como trepadeiras de luz. Não consegui ouvir os pensamentos dos berlinenses, apenas o meu, repetitivo: als das kind kind war.
(Delacroix, La liberté guidant le peuple, 1830)

A J. passa tanto tempo com a mama de fora por estes dias que fico sempre à espera que apareça uma multidão em fúria a segui-la quando atravessa os corredores da casa.
Moro num quarto andar sem elevador e por isso quando digo ao rapaz da telepizza para ficar com o troco, não é uma gorjeta, é um pedido de desculpas.

04 dezembro 2006

Ainda não andava na escola e os miúdos da rua da minha avó eram quase todos maiores que eu. Armávamo-nos de paus compridos com um mais pequeno atravessado, pregado com um prego e tínhamos a espada. Depois, com contraplacado, fazíamos escudos, que segurávamos com cordas ou fios eléctricos. E enchíamos os bolsos com pedras. A seguir, as hostes inimigas enfrentavam-se na "Sopa" - o largo em frente à abandonada Igreja de são Pedro, a antiga sopa dos pobres, em Grândola - e lutávamos. Não me lembro de ficar magoado, embora duvide que tal se devesse à minha valentia. Nem faço ideia se alguma vez aleijei alguém. Era pequeno e até à adolescência fui fraco na luta corpo a corpo. Mas aquela coisa bélica, natural, em crianças a fazer de soldados medievais dava uma adrenalina que não esqueço. Talvez a mesma razão levasse o Tiago a ser cúmplice nos assaltos à fruta dos quintais alheios. Em geral, também eu fui bem comportado, mas hoje sei porquê: havia uma dimensão ética qualquer, o que na infância é um misto de medo e dever ser perante o bem e o mal, que vem da autoridade dos pais, e mantém um certo padrão ao longo da vida.
Em algumas noites de verão, entre o final da infância e a adolescência, os rapazes da minha rua juntavam-se para ir à chinchada, i.e. roubar fruta aos quintais das vivendas mais próximas. Nada muito industrial ou destruidor, apenas umas quantas ameixas ou nêsperas. Como não acredito que alguém tivesse realmente fome, a actividade parecia fazer parte de um conjunto de rituais de passagem adaptado aos meios suburbanos. Eu também ia, mas o mais estranho é que na época não gostava de qualquer espécie de fruta. Não era dos mais aventureiros, dos que subiam aos ramos mais altos ou entravam nos quintais guardados por cães. Pelo Contrário. Mas ia. O padrão tem-se repetido em muitos outros momentos. Sempre fui relativamente bem comportado, mas mais por defeito de personalidade do que por gosto. Limito-me a acompanhar, de forma silenciosa e discreta, as caçadas e atrai-me o lado sombrio das coisas, de que nunca passarei de um aprendiz.

01 dezembro 2006

Voto gága

Quando ontem o Parlamento propôs aos deputados o voto de pesar por Mário Cesariny, depois de um dia inteiro de senta e levanta pelo Orçamento de Estado, ele havia de ter levantado a gola do peludo e rido, e dito Gága, Gága, ou assim "- O que é a pátria?/ É uma coisa sem solução", entre outras coisas:

Nesta ilusão iludi-me.
A hora da vida já
Soltou uma gargalhada
E saiu pela janela
(...)
Fiz da vida ida.
Fiz da morte volta
Gága, gága, gága.
Fiz de pedra tudo.

27 novembro 2006

Promoções

Quando entrei na Almedina do Saldanha, saltou-me à frente uma moça com sotaque do Porto e a dizer, Olá, eu sou escritora!, Quer ver um dos meus livros?, sabe que eu sou do Porto, e é muito mais difícil ser conhecida aqui em Lisboa... Sou professora de Português, e olhe, este é o meu primeiro livro, em que a personagem principal é um médico, este é infanto-juvenil, tem filhos?, é sobre o planeta Plutão, aquele aqui de baixo é o mais recente... Não vai levar nenhum?...
Bem, eu fiz como no supermercado, quando aparece uma moça vender iogurtes ou azeites ou paté, e disse, tenho de ir ali ver detergentes de outra prateleira. Depois vi a rapariga repetir a mesma figura uma e outra vez. Não levei nenhum dos dela. E tive um sentimento que detesto, que é sentir vergonha pelos outros.
Não posso deixar de pensar que as nossas amigas produzem líquido amniótico em excesso. A expressão «rebentar as águas» atingiu um óbvio exagero. Quando há cerca de um mês nasceu a Francisca, a baixa de Pombal, a cidade do pai, ficou totalmente inundada. O Ruca comentou connosco a coincidência com um sorriso, quando a fomos ver à maternidade. Agora, na sexta-feira passada, nasceu a Rita e metade do país ficou submerso. Ainda não a fomos visitar e por isso só sabemos pelo Zé Pedro que é comprida, cabeluda e linda. Ao que parece, tem o sorriso da Mafalda. Bem-vinda. Darei mais notícias quando a for conhecer.

(Aliás, por motivos que se estão a tornar óbvios, estamos a pensar mudar o nome do blogue para Boletim da Associação Nacional de Médicos Obstetras.)
Na infância, quando o meu conhecimento do mundo e da língua era ainda (mais) imperfeito, não conseguia compreender o sentido da expressão: depois da tempestade vem o Bonanza. Mesmo assim, quando a chuva parava, conseguia ouvir distintamente o galopar de cavalos.

24 novembro 2006

Delfos vs Job

Conhece-te a ti mesmo, pois, é bonito dizer, mas tu és tu na relação com os outros, e, assim, como é que sabes os teus limites em relação ao que te cerca? Ontem vivi um desses momentos: a gota de água faz transbordar o copo? O copo está meio, mesmo cheio ou completamente vazio? Em função do meu conhecimento sobre mim, a realidade é uma coisa. Quando ponho o que conheço de mim numa perspectiva (em relação ao que conheço dos outros), a realidade é uma coisa diferente. Devemos ser como Job e suportar todas as provações? Ou considerar qualquer infâmia (pequena ou grande) inaceitável em função do conhecimento que achamos que temos de nós mesmos? Às vezes, o Livro de Job não traz maus ensinamentos, mesmo se nos servirmos da frase escrita à porta de Delfos para nos enchermos de confianças. Às vezes, é preciso ter calma, e pensar que se no nosso trabalho nem tudo é perfeito, há muitos empregos em que apenas nem tudo é mau. Por enquanot sou Job.

20 novembro 2006

No frontispício do Oráculo de Delfos foi inscrita a frase: «Conhece-te a ti mesmo.» Não há indicação de que as restantes paredes do templo dissessem o que fazer depois disso. Como manual de auto-ajuda é muito limitado. Na ausência de conselhos posteriores, interpreto o silêncio do oráculo como a impossibilidade de passarmos dessa fase.
Uma das coisas que me leva a pensar que não me preparei o suficiente para a paternidade é não saber muitas canções de embalar. Ontem ao fim da tarde, para tentar acalmar a L., cantei-lhe Dead Beat Club dos B52’s, Ask dos The Smiths e Into My Arms de Nick Cave. Resultou. Atribuo o êxito mais a um bom gosto musical herdado geneticamente do que à minha (má) voz.

17 novembro 2006

Volto ao trabalho após três semanas de dedicação exclusiva à puericultura. Tenho receio de encontrar alguém mal-disposto numa das salas e tentar pô-lo a arrotar. Colocar a cabeça no meu ombro, dar uma palmadinhas nas costas e dizer baixinho «Pronto, pronto, isso já passa.»

05 novembro 2006

Notícias do génesis

No princípio a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito movia-se sobre a superfície das águas. Agora já não. A Laura nasceu há uma semana. Observa-nos com o mesmo olhar de curiosidade e incompreensão com que a observamos a ela. É como olharmo-nos a um espelho para nos aprendermos a reconhecer. Ainda não conseguimos atravessá-lo, embora por vezes as mãos e os braços mergulhem até ao fundo para a resgatar do choro no interior das águas. Estamos a habituar-nos a novas rotinas e os dias têm passado muito rápido. Ao sétimo dia, descansámos, que a criação de um mundo provoca fadiga para além do orgulho.

(Obrigado a todos pelas mensagens de boas-vindas que nos chegaram por correio, correio electrónico, telefone, sms e comentário no blogue.)

02 novembro 2006

O século das luzes

O século XXI recebe os recém-nascidos como eles próprios toda a vida imaginaram que seriam recebidos quando nascessem no século XXI. A Laura, por exemplo: da primeria vez (e única) que a vi, tinha uma cama de luz violeta, e pairava nela sobre um gaze levezinho, como se estivesse numa nuvem. Ou num episódio do Caminho das Estrelas. Terça-feira, quando visitei a Joana e o Tiago no hospital, estava ela a atestar baterias mamando fervorosamente como desde sempre a humanidade fez, e então percebi que se o menino Jesus não tivesse nascido tão cedo na História tambem havia de ter preferido o calor da luz ao bafo da vaca. Laura, o mundo ainda é o que é, mas tem vindo a melhorar. Benvinda ao século em que foste imaginada.

30 outubro 2006

A aterragem da Cegonha

Belém, dia 29 de Outubro
"O voo JT1502 aterrou em segurança no aeroporto Francisco Xavier às 20h47. A passageira Laura já desembarcou os seus 2,915 kg e fez check-in no peito da mãe" - foi o SMS do Tiago ontem à noite, pouco tempo depois do corte epistemológico da paternidade o ter atingido. Dia de alegria. Os reis magos estão prontos para a rumar a Belém.

27 outubro 2006

Pensar que saiu de dentro dela

A Francisca tem quase o dobro da idade que tinha na primeira vez que a vimos, ontem à noite. Quanto entrámos no quarto da maternidade, estava enrolada numa manta cor-de-rosa e nos braços da Isabel, sonolenta de mamar. Tem cinquenta centímetros. Deve ter estado enrolada como um bicho-de-conta na barriga da mãe no final da gravidez. Não demorámos muito. Uma grávida a visitar uma maternidade corre o mesmo risco que uma pessoa sã a visitar um manicómio. Por mais que assegure que está só de passagem, podem não a deixar sair.

25 outubro 2006

"Entre nós e as palavras...

... há metal fundente", escreveu Cesariny num poema excepcional, de múltiplas aplicações. Entre nós e as palavras dos políticos, o que há é material gasoso.

Na campanha eleitoral, em 2005, Sócrates disse isto: "As taxas moderadoras servem para moderar os excessos de alguém que vai usar uma emergência hospitalar sem razão, para que tenha uma penalização. Não serve para financiar o sistema. O sr. primeiro-ministro [Santana] falou foi numa taxa que permitisse aumentar as receitas do Estado no Serviço Nacional de Saúde. Isso é na prática um novo imposto. Isso é um erro". Entre estas palavras e os factos de hoje, há metal contundente, mas inconsequente. As taxas de utilização na saúde, para cirurgias e internamentos, são o quê?

No debate com Santana na SIC, também em 2005, Sócrates afirmou o que toda a gente sabe: "Não estou de acordo com a subida dos impostos, não estou (...). Foi no momento de falha dessa promessa eleitoral, quando o Governo [de Durão] chegou ao poder e decidiu aumentar o IVA que a confiança veio por aí a baixo. Isso foi uma leviandade. Isso foi muito negativo para a democracia". Esta frase devia ser lida e relida, por cada um de nós, antes de decidir em quem votar nas próximas eleições. Estas palavras valem tanto quanto a possibilidade de conquistar o poder. Entre nós e as palavras, há poder.

Cada palavra vale o que vale. E vale muito pouco, por vezes. Um palavra pode ser um som, apenas, que sai de uma boca. Um grunhido desmiolado pode valer tanto como um palavra. A palavra também pode pesar como chumbo. Quando Manuel Pinho disse "a crise acabou", foi um caso desses, em que ao signo não corresponde um significado. Caso contrário, não teria dito no dia seguinte, que decretar o fim da crise era uma "infantilidade". Ele pronunciou aquele conjunto de sons e pronto, o significado evaporou-se.

Entre nós e os políticos não há nada se as palavras não tiverem consequências.

24 outubro 2006

Equilíbrio reflexivo

O equilíbrio reflexivo (reflective equilibrium) é um método utilizado para tentar conciliar princípios filosóficos abstractos com princípios de justiça que intuitivamente aplicamos a casos individuais. Pensamos num princípio ou teoria e verificamos se a sua aplicação a casos particulares colide com valores que consideramos estabelecidos. Se colidir, temos de reformular as proposições ou alterar a nossa crença nesses valores, andando entre a teoria e a prática até atingirmos um ponto de equilíbrio. Não é um método isento de problemas, mas pode ser útil em determinadas ocasiões.

Por exemplo. Um dos princípios pelo qual tento orientar a minha conduta, sempre que possível, é o princípio do dano, tal como enunciado por John Stuart Mill. É qualquer coisa como isto: A liberdade individual apenas deve ser limitada para impedir que os actos de alguém provoquem danos a outros indivíduos. O seu próprio bem, físico ou moral, não é justificação suficiente para a intromissão alheia. Mas tenho dúvidas em aplicar esta regra a determinadas questões, como a da legalização do consumo de drogas. A justificação para a proibição das drogas leves é bastante fraca. O problema são as drogas duras (alguns dirão: «a falta de drogas duras»). Não encontro justificação para a proibição do consumo, mas a sua legalização não me parece razoável. Ainda estou longe do equilíbrio.
Tenho pensado muitas vezes que a grande tragédia da nossa geração é usar fato mas ainda comer bollycaos.

23 outubro 2006

Durante a tarde de ontem pensei seriamente em construir uma arca e começar a reunir dois animais de cada espécie. A chuva amainou, senão o mundo futuro teria apenas, além de nós, formigas, pombos e bichos da madeira.
O Fernando Pessoa tinha uma arca cheia de poemas. A minha tem roupa de Inverno. E está na altura de abrir o espólio.

19 outubro 2006

Há coisas que me fazem acreditar que o sentimento de comunidade ainda não desapareceu totalmente, mesmo nas grandes cidades. Uma é o hábito dos Lisboetas de colocarem algumas coisas ao lado, e não dentro, do caixote do lixo. Em regra são móveis, electrodomésticos, artigos de decoração ou presentes oferecidos por parentes afastados no Natal anterior. Isto cria um mercado informal bastante dinâmico, com produtos a descerem e a subirem pelas escadas dos prédios no espaço temporal que vai do pôr-do-sol à recolha do lixo. Ontem, quando saímos para jantar, à porta de um dos prédios da nossa rua estava um conjunto constituído por uma sanita completa, uma cama e um outro objecto que não consegui identificar. A cama, desmontada, era de metal, lacada a branco, com apliques dourados. Era a única coisa que faltava do conjunto quando regressámos a casa duas horas mais tarde.

13 outubro 2006


Quando colocamos a mão na barriga, sente-se por vezes uma forte ondulação. Por outro lado, parece que, devido a um alinhamento da Lua e do Sol, o mês de Outubro vai ter as marés vivas mais fortes dos últimos anos. Pelo sim, pelo não, decidimos fazer «a mala».

10 outubro 2006

Baeta

O ritual mensal de ir ao barbeiro sempre me foi penoso. Estar sentado naquela cadeira, imóvel, enquanto alguém à minha volta maneja objectos afiados deixa-me indefeso. Não há outro momento em que sinta tanta empatia pelas partnéres dos atiradores de facas do circo.
Durante mais de vinte anos fui ao mesmo barbeiro, apesar de não gostar particularmente da forma como me cortava o cabelo. Dizem que um sinal de maturidade nas relações é duas pessoas conseguirem estar em silêncio sem se sentirem desconfortáveis. Foi por isso muito difícil quanto me mudei para o centro de Lisboa e tive de passar meia hora por mês em silêncio com um novo barbeiro. No final, quando trazem aquele espelho para que consigamos ver o corte na parte de trás da cabeça, sinto sempre um desejo incontrolável de aplaudir. E algumas vezes de ir comprar um chapéu.

04 outubro 2006

Amanhã é feriado

To the evil of monarchy we have added that of hereditary succession; and the first is a degradation and lessening of ourselves, so the second, claimed as a matter of right, is an insult and an imposition on posterity. For all men being originally equals, no one by birth could have a right to set up his own family in perpetual preference to all others for ever.
Thomas Paine, Common Sense (1776)

03 outubro 2006

A fraqueza da carne

De todos os livros que nunca li há um que me causa especial receio: Libertação Animal, de Peter Singer. O facto de intuir o conteúdo impede-me de o abrir. Para os argumentos morais do vegetarianismo tenho apenas biologia e não sei como resolver um conflito entre uma ciência humana e uma ciência natural. No fundo, tenho medo de perceber que sou demasiado fraco e que, apesar da capacidade de ser convencido por um bom argumento, não sou capaz de alterar a vida de acordo com isso. Ou mesmo de ter de reconhecer algo que me repugna, que muitas vezes os desejos são mais fortes que a razão.

A que dia sai o Inimigo Público?

«Arroz de cabidela de Vítor Sobral ganha título mundial.»

«Doente tem alta com termómetro no ânus. Um homem com 85 anos, acamado, que esteve internado 24 horas no Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, teve alta e foi transportado para casa de ambulância com um termómetro dentro do ânus. A. Silva, que não quis identificar-se para proteger a dignidade do seu pai[:] ‘Com tantas voltas, foi um milagre o termómetro não se partir. Ainda por cima era de mercúrio.’»

«Incidente da casa de banho parece ter sido sanado. O encontro de reunificação do título mundial de xadrez foi ontem reatado com a realização da sexta partida que terminou empatada. O campeão clássico Vladimir Kramnik viu satisfeitas as suas reivindicações, a substituição dos elementos do comité de apelo e a reabertura das instalações sanitárias particulares.»

Público, 3/10/2006.