03 agosto 2006

Banhos de sol


Domingos sem charme, dias sem interesse, banhos de sol dos pobres.

- Ai se eu fosse nova, o que era dos rapazes que passavam. Havia aqui dantes tanta tropa... Mas no meu tempo não se podia, era uma vergonha, sabe lá. Agora faço o que me apetece e a minha filha até pensa que fui à missa. Adeus, e aproveite enquanto pode...

Ao domingo sai do bairro da Bica, atravessa a estrada até ao Tejo e senta-se ali, num banco perto do parque de estacionamento, que havia de ser o de um jardim.

Nem o peixe pica nem ganha o Benfica


- Ó chefe, hoje isso 'tá a dar?
- O peixe não pica... 'tá pior que o Benfica!

Na calçada entre o Cais do Sodré e a Praça do Comécio, os pescadores alinham-se aos domingos de manhã, e esperam.

- Mas ó chefe, o peixe daqui é bom?
- Olha, olha, então não é? Ele são linguados, sargos, você sabe lá? Já viu ao preço que isto 'tá na praça?...

02 agosto 2006

À pesca das tágides



- Olha que belo homem! Um fisherman...

- Liiindo português! Digo alguma coisa?

- Nã...

- Olha o brilhozinho daquela barriga. E a cana...

- Eu cá gosto mais da careca e do bigode.

- É a encarnação da verdeira alma lusitana à pesca submarina de tágides. Olhe, mister? Não vai um fadinho?

01 agosto 2006

Estas fotos foram tiradas num passeio, este domingo, com o Afonso. Postarei mais.
Tiago, bom regresso! Dá-me as tuas legendas também.

A linha do destino


Na linha do destino, velhos desconhecidos na hora das observações.

Luz rolante


Uma caminhada lenta, agonizante, num comboio rolante que leva esta gente toda até ao sol urbano de Carcavelos.

Região solar


A espera, um café tomado em pé, um passo antes de tempo e somos luz quando o sol nos atravessa com partículas de hélio.

Praia dos pobres


Domingo. Estação do Cais do Sodré. Às nove e meia da manhã o povo move-se na estação com um frenesim de sentido contrário: hoje eles não chegam a Lisboa, hoje eles vão. De guarda-sol enrolado, calções vestidos, sandocha na mochila, toalha ao pescoço, cores que se vejam. A praia é dos pobres na linha do Estoril. O sol quando nasce é para todos, sabia-se. A areia não. Cada um vai a banhos onde pode.

31 julho 2006

Fui a banhos. Ir à praia no Algarve é uma experiência multicultural incomparável. Podemos adivinhar a nacionalidade das crianças pelas brincadeiras que têm. As francesas passam o dia a construir pequenas fortificações e castelos de areia que são rapidamente destruídos pela subida da maré ou pela corrida intrépida das crianças alemãs. As holandesas escavam redes de canais na areia molhada para encaminharem a água salgada para lagos interiores. As crianças suecas e dinamarquesas passam simplesmente o dia sentadas dentro das poças a cismar sobre o sentido da vida. Já regressei.

Copy-paste

The pleasures of expectation are the pleasures that result from the contemplation of any sort of pleasure, referred to time future, and accompanied with the sentiment of belief.

Jeremy Bentham, Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1789

20 julho 2006

*

Na verdade, de um ponto de vista puramente gastronómico, eu deixava de ter pena do porco acabado de matar, quando o meu avô aparecia com o fígado (acabado de extrair) grelhado na brasa, mal passado, temperado com azeite, vinagre e alho. Se eu fosse Prometeu, a minha história seria uma metáfora da inveja, por inveja ao abutre.

* para ser lido com um ligeiro sotaque alentejano.

14 julho 2006

*

De um ponto de vista puramente gastronómico, tenho menos pena do Prometeu que do abutre que lhe tem de comer o fígado todos os dias.

* Pensamento do dia ao estilo Agora Escolha. Deve ser lido com a entoação de voz da Vera Roquete.

05 julho 2006


Para quem tinha saudades de vitórias morais...



O Deco jogou?

A horagá



Este homem vai ser o orgulho da nação!

Até lá, à hora H, vou: trabalhar qualquer coisa, almoçar com uma pessoa, moderar uma conversa, levar o carro à inspecção, encomendar frangos, comprar bujecas, ufff, vestir o Miguel, meter a sopa dele, o biberão e o Blédine na mochila e voltar ao carro, esperando que a Carla consiga chegar a horas, para ir ver esse grande momento no estádio talismã: a casa da Blan e do Afonso. Que os deuses nos protejam!

Relógios e queijos suíços


A França é um mecanismo perfeito, só não digo que é um relógio suíço porque o Zidane podia irritar-se (os argelinos são danados). E Portugal não tem cometido erros, por isso, não podem esperar os franceses que deste lado encontrem um queijo suíço. Daqui das Linhas de Torres não há buracos, e as tropas napoleónicas (sabendo que tivemos a ajuda dos ingleses) sabem que este rectângulo não é fácil de tomar. Ora tenho para mim que desta vez ganhamos. Ai ganhamos sim. O Deco, esse representante da genuína alma lusitana, vai marcar. Vão ver....

29 junho 2006

Idade da pedra

Quando uma frase sublinha a que vem a seguir, não basta depois corrigir as palavras ditas porque o sublinhado fica lá. Qualquer criança da primária sabe que uma frase sublinhada a vermelho dá mais trabalho a apagar. Foi grave que Fernando Ruas, presidente da ANMP, tivesse dito para os autarcas correrem com os fiscais do ambiente "à pedrada". Mas antes desta ele tinha dito outra frase: "Olhem que pensei muito bem no que vou dizer..." Para no dia seguinte, por ter sido apanhado por uma rádio, vir desculpar-se com linguagem figurada. Pobres metáforas.... E com ele ninguém corre? Nem precisa de ser à pedrada.

28 junho 2006

Martin Adler

Há vidas que valem a pena ser vividas. Quando vi, no DN, a foto de um jornalista sueco assassinado não dei conta. O choque assolou-me depois, quando percebi ser Martin Adler, que tantas vezes me contou o que ia por esse mundo nas reportagens de guerra publicadas na Grande Reportagem. Essas páginas, estão guardadas ali atrás, no meu arquivo no escritório. Senti a morte dele como a de um amigo que me fez confidências, que contou grandes aventuras, que mostrou o mundo. Aquele tiro nas costas pareceu-me, estranhamente, demasiado próximo... Na notícia do DN ninguém escreveu que ele era colaborador regular de uma publicação portuguesa, ainda por cima que era do próprio grupo. O ex-director da GR, Francisco José Viegas, na Origem das Espécies, fez-lhe uma homenagem. Hoje, no DN, Pedro Rolo Duarte faz-lhe justiça. Obrigado Martin. A tua vida valeu a pena ser vivida.

27 junho 2006

Desintoxicação

Com a mudança de casa decidimos ficar sem televisão por uns tempos. A decisão tem resultado parcialmente. Tenho lido mais, mas ainda não consegui abandonar o hábito do zapping compulsivo. Ontem fui até à estante dos livros só para ver o que é que estava a dar. No primeiro estava a dar a novela brasileira (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Cubas Brás). Mudei para outro: Durante o dia, e por consideração para com os pais, Gregor não queria chegar à janela. Nos poucos metros quadrados do quarto também não podia deambular muito, ficar deitado sem se mexer era coisa que nem de noite já suportava muito bem, passado pouco tempo a comida já não lhe dava grande prazer, e assim, para se distrair, ganhou o hábito de rastejar em todas as direcções pelas paredes e pelo tecto. Não era mau, mas nunca se sabe se está a começar uma coisa melhor noutro canal. Mudei e Mrs. Dalloway tinha ido comprar ela própria as flores. As séries inglesas de época são demasiado aborrecidas e por isso desisti e fui-me deitar.
A noite de hoje vai ser diferente, vou pôr uma cadeira frente à máquina de lavar e fazer zapping entre o programa da roupa clara e o programa da roupa delicada.

20 junho 2006

Não sei que deusa da fertilidade andou a passear pela brisa da tarde, mas descobrimos que mais uns amigos vão ser pais, lá para o final de Novembro. Na Antiguidade dizia-se que na Lusitânia as éguas eram fecundadas pelo vento. As mulheres, felizmente, contam também com a nossa preciosa ajuda para conceberem filhos velozes.
Sempre que me anunciam um futuro nascimento tenho vontade de escrever duas cartas. Uma ao Prof. Medina Carreira, a pedir-lhe para rever as suas previsões sobre a falência do sistema de segurança social, e outra para as maternidades, a perguntar se fazem descontos para grupos. Mas é só enquanto dura o efeito do champanhe.
Parabéns, Mafalda e Zé Pedro.

19 junho 2006

Diário de Barcelona em 126 palavras

Estive de férias. Fui engolido por um grande peixe, como Jonas, nas casas Batló e Milà, de Gaudí, com tectos suportados por arcos parabólicos, como o interior de um tórax, e linhas curvas e orgânicas, como as entranhas de um animal marinho. Se fosse como nos desenhos animados, teria encontrado um marinheiro sentado nos destroços de um barco de madeira e saído no jacto do buraco de respiração da baleia. Como são apenas casas, saí pelas portas de vidro e ferro forjado para as ruas de Barcelona, onde há pessoas a andar por todo o lado, a todas as horas, e sentadas nas esplanadas ou nos bancos públicos das praças. Comi gaspapxo, paella e frango com ameixas e volto gordo e cansado como um pugilista reformado.

01 junho 2006

Ontem à noite as condições meteorológicas estavam favoráveis para uma ecografia. O céu estava limpo no interior da J. Mesmo assim, como os físicos e os astrónomos sabem, é tão difícil interpretar o infinitamente grande como o muito pequeno. A actividade mais parecida é a observação de nuvens: vemos o que queremos ver. Um círculo luminoso pode ser uma cabeça vista de cima ou uma lua cheia; um traço branco tanto pode ser uma luz fluorescente como um fémur. O médico, que é astrónomo amador, viu uma menina.

30 maio 2006

Blogóidismo

Anda aqui um tipo a escrever coisas sérias e ninguém liga, sobre política, ou sobre filosofia, ou literatura clássica, a mostrar que somos (muito, muito) inteligentes e (muitíííssimo) cultos... Depois um gajo escreve umas patacoadas com umas fotos de cuecas e o pessoal vá de postar comentários. Tá mal, esse estímulo ao blogóidismo. Oh, Tiago, damos ao povo o que o povo quer, pão e circo (neste caso circo), escrevemos de vez em quando um post blogóide, ou mantemos o registo de um blog dito sério?...

29 maio 2006

Comprei O Mito do Eterno Retorno de Mircea Eliade na Feira do Livro e levei-o para a viagem no Alfa Pendular. Um rapaz que estava na mesma carruagem, vendo-o pousado, pediu-mo emprestado por algum tempo. O comboio era nocturno e algures depois de Coimbra adormeci. Quando acordei o rapaz já se tinha apeado, mas o livro estava à minha frente, em cima da mesa. Afinal não é um mito, o livro foi devolvido.

24 maio 2006

Neutralidade histórica

Na Vida Paralela de Sólon, Plutarco conta a história da tomada da ilha de Salamina aos megarenses. Utilizando um subterfúgio, Sólon faz chegar a notícia de que algumas das melhores mulheres de Atenas estavam numa determinada praia a praticar um sacrifício dedicado a Deméter. Quando parte dos soldados de Mégara ruma para o local, num navio transbordante de testosterona, Sólon ordena que as mulheres se retirem e que jovens atenienses imberbes vistam os seus vestidos e tomem o seu lugar, com punhais dissimulados sob as vestes. Segundo o historiador, os megarenses acabaram todos mortos na praia. O mais curioso é não existir qualquer referência ao número de baixas do lado ateniense, sobre o número de jovens violados antes de se revelar o logro.

23 maio 2006

dezasseis semanas

O pior de tudo é a opacidade. Se o umbigo fosse amplo e transparente, como uma escotilha ou um óculo de máquina de lavar, podíamos ir espreitando. Assim, é como ter um mineiro preso no fundo de um túnel. Podemos ir falando com ele para o acalmar, passar-lhe comida e bebida através de um tubo, mas temos de esperar pacientemente até chegar o momento de o trazer à superfície.

18 maio 2006

Cidade-Estado

É frequente encontrarmos em livros de história e de ciência política elogios ao sistema de autogovernação das colónias norte-americanas da Nova Inglaterra do século XVII, com descrições de town meetings onde se discutiam os assuntos da comunidade e se tomavam decisões de forma democrática e igualitária. Embora não nos apercebamos, existe em Portugal um equivalente contemporâneo, organizado em torno de uma unidade política denominada «Condomínio».
No prédio onde morávamos até há uma semana nunca constituímos condomínio, e por isso vivíamos num estado de natureza em que, por sorte, a vida nunca foi demasiado solitária, pobre, sórdida, selvagem ou curta. Com a mudança, estava à espera de passar algumas interessantes noites de Sábado a discutir com os outros condóminos a limpeza das escadas, as infiltrações no telhado e a manutenção dos animais domésticos. Mas, aparentemente, a especialização da política também chegou a estas microcidades-estado: o poder foi transferido para um pequeno leviathan, a que os aldeões chamam empresa de gestão de condomínios. A situação não é nova, não é a primeira vez que herdo um contrato social que não assinei.

16 maio 2006

A internacional da andorinha migratória


Na Guiné-Bissau foi criado um novo partido na linha do PND português, de Manuel Monteiro, noticiou a Lusa esta tarde. Daqui a um tempinho o saudoso doutor Monteiro deve aparecer por aí a anunciar a Internacional da Nova Demoracia, ou o movimento da andorinha migratória.

15 maio 2006

A revolta das cuecas


Não, isto não se está a tornar um fetiche. Mas, francamente, acho que ontem as velhinhas de Alfama deram todas em pôr cuecas solitárias ao sol. Será um sinal cabalista do fim dos tempos, esta exposição compulsiva de objectos que representam a menopausa, e logo o fim da fertilidade, e logo o fim da reprodução, e logo a falência absoluta do sistema de Segurança Social, e logo que todos vamos ter de pagar mais contribuições porque temos menos filhos, e logo que não vamos ter reformas, e logo que vai baixar ainda mais a produtividade por ficarmos desmotivados, e o país vai enterrar-se ainda mais na crise... Aaaarrgh, estamos perdidos! Portugal não tem salvação. Sr. engenheiro, proíba as velhinhas de Alfama de espalharem maus augúrios em cuecas, bandeirolas da desgraça, e tome a medida ambiental mais sensata: nada de cuequinhas na janela depois dos 60.

14 maio 2006

Sol na cueca


Os portugueses são um povo cioso da sua privacidade, de tal modo que não há casinha que não tenha as inevitáveis cortinas que protegem o lar da invasão do olhar alheio. Na Holanda, por exemplo, é rara a janela com um cortinado. Eles aproveitam toda a luz que podem e não têm as nossas vergonhas.

Mas depois, os portugueses penduram tudo à janela: o canário e o piriquito, a roupa dos filhos, do marido, da avó, os tapetes, seja lá o que for. A lingerie, as cuecas, todos esses objectos íntimos são expostos aos mais indiscretos olhares desde que bem fenestrados, muito bem presos por um par de molas. Na Holanda não é costume ver roupa à janela. Interessantes contradições.

(Tirei a foto esta manhã, em Alfama)

Conversas de rua - 6

Ontem de manhã, o puto de 12 ou 13 anos, todo rufia, crista a meio da tola, dizia assim ao velho sentado na esplanada:
- Qu' é isso? Você não sabe qu' isso não se faz?!
Depois agarrou no pacote de cigarros que o velho tinha atirado para o chão e foi dentro do cafê pô-lo no lixo.
- É assim, assim é que você tem de fazer!...
O velho só acenou com a cabeça. Não disse nada.

12 maio 2006

Ó professor, e o Soares também?


No seu livrinho lançado ontem, Carrilho diz de António Cunha Vaz: "[Veio] oferecer-se para tratar de tudo [na campanha para as autárquica], insistindo muito em dois pontos da sua oferta: a recolha - obviamente ilícita - de fundos, e a compra de opinião".

Ora foi a agência de Comunicação de Cunha Vaz que acabou por fazer a campanha de Carmona Rodrigues, mas também foi contratada, depois, para a de Mário Soares à Presidênca da República. Neste caso, a manterem-se os pressupostos de Carrilho... mete-se Soares num pequeno sarilho. Foram recolhidos fundos ilícitos? Foram comprados colunistas? Foram corrompidos jornalistas? O dr. Soares devia dizer alguma coisinha...

Conversas de rua - 5

Numa paragem do autocarro 26, na zona da Estefânia, uma rapariga de ar saudável falava ao telemóvel e dizia assim a alguém, talvez uma amiga:

- Eu já ando preocupada porque andam a dizer que nos vão cortar no subsídio de Natal... Isto está cada vez pior... Pois, pois... O outro dia fui ao Mini-Preço e não havia nada nas prateleiras... hum, hum... Depois peguei no carro e fui ao Continente do Vasco da Gama. Estava vazio, vê lá, as pessoas já nem vão ao Continente, vão ao Mini-Preço.... Sim... e parece que o passe vai aumentar outra vez e já tinha aumentado três vezes este ano...

03 maio 2006

O futuro de Rabie - restos do bloco de notas de um jornalista - I

(Notas tiradas durante a viagem de Cavaco Silva à Bósnia e ao Kosovo, onde fui ao serviço da Sábado)

Rabie Habani é kosovar, tem 23 anos e quer casar com um americano. Rabie tem desabafos como este, enquanto serve bebidas aos soldados da NATO, num bar do quartel gigante de Jubille Barracks, em Pristina, um complexo de contentores e betão onde estão 307 tropas portugueses. "Oh, I want so much to marry an american and live in America..." Então e os soldados portugueses? E os ingleses? "Ah, they are just boys...", atira. "Não têm nada na cabeça." A jovem albanesa não quer soldados, prefere os polícias, um pouco mais velhos, como o americano que foi namorado dela e voltou aos Estados Unidos sem dizer que era casado. Um desgosto.

Maior que esse, só quando se escondeu nas montanhas que cercam Pristina, em 1999, com a família, a fugir dos paramilitares sérvios. Enterrou o seu diploma do 12º ano no chão, tirado numa escola particular, porque tinha a bandeira albanesa impressa e isso era perigo de vida. O diploma ardeu com o fogo que lhe destruiu a casa.

Os três irmãos mais velhos estão desempregados; o pai está reformado com 200 euros; e a mãe sujeita às regras muçulmanas mal sai de casa. Casar com um americano quer dizer: liberdade. "Não quero casar com um albanês e passar o resto da vida em casa a cuidar dos filhos", diz-me Rabie, muçulmana mas não praticante, tão vestida à ocidental como uma universitária portuguesa. "Quando chegar aos 25 anos, conta ela, estará "velha para casar", como se estivesse em segunda mão". O pai, que nem sonha que os 300 euros que ela leva para casa são ganhos a servir bebidas alcoólicas num pub com a foto de Isabel II, há-de querer que ela case em breve com um albanês. Está num beco.

Rabie olha para o futuro e não está lá nada: só vê uma prisão.

02 maio 2006

Por que somos pequenos?

Porque nos EUA o número estimado de imigrantes ilegais é de 13 milhões, segundo o Público de hoje, com base em dados do Pew Hispanic Center.

01 maio 2006

A lição de Tal Afar

John Kerry propôs no Senado norte-americano que as tropas americanas deixem já o Iraque; Ted Kennedy tem a mesma opinião. Estes democratas, que defendiam a manutenção das tropas até haver ali um país viável, voltaram o discurso ao contrário, cavalgando agora o cansaço da opinião pública americana em relação ao Iraque. Bush não é frequentável, mas isto é perigoso...

Para percebermos que a retirada das tropas é mesmo muito perigosa aconselho a leitura de uma grande reportagem de George Packer (é mesmo muito grande) na New Yorker de 10 de Abril. Aqui. Ser contra a guerra era sensato, no mínimo. Ser a favor da retirada é no mínimo imprudente e Packer explica porquê: ele conta como em Tal Afar o coronel MacMaster, um esclarecido em relação a outros oficiais, conseguiu pôr sunitas a falar com xiitas, através da implementação de uma doutrina de contra-insurgência que os americanos não tinham. Percebe-se pelo trabalho do jornalista no terreno, mais do que pelos números dos mortos com que somos bombardeados todos os dias, que a saída das tropas seria um desastre pior do que a própria guerra. Uma leitura recomendável.

Cinco vezes cinco: vinte e cinco

A rainha de Inglaterra recebeu 10 primeiros-ministros em 54 anos de reinado, notava Jonathan Freedland no G2, suplemento do Guardian, no dia 21 de Abril, num artigo sobre os 80 anos de Isabel II.

Se reinasse em Portugal, teria convivido com 25 primeiros-ministros em 50 anos, caso se mantivesse o ritmo de cinco primeiros-ministros em cada dez anos. Na última década foram: Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates. Ainda a malta pergunta por que é que isto está como está...

Conversas de rua - 4

Conversa entre três populares junto a um quiosque, no Jardim Constantino, antes de Sócrates anunciar as novas regras de contabilização de pensões:
Homem - Agora já tiram IRS das reformas, o que é que eles querem mais?
Mulher - Qualquer dia vão às nossas contas no banco...
Dona do quiosque - Ah, sabe que isto é sempre para pior.
Homem - Pensa que eles não sabem o que está nas nossas contas?... Então não sabem? Só aos lucros dos bancos é que eles não tiram nada...

Conversas de rua - 3

Diálogo entre criança e mãe, num supermercado, na Estefânia:
- Mãe, que fruto é este?
- Não sei... errr... é mandioca...
- Humm, será que é bom?...

28 abril 2006

Agora resta-nos a chico-espertice de viver mais do que manda a esperança média de vida

Uma dúvida, sobre a reforma de Sócrates sobre as reformas: se eu morrer antes de atingir a esperança média de vida, que entretanto aumentou e prejudicou o valor da minha reforma, terei alguma recompensa eterna? Não, nesse caso será apenas: azarinho...

Na mesma semana e no mesmo lugar, o Parlamento, quem parece ter dito umas coisas de esquerda foi Cavaco, não Sócrates. Um pensa à direita mas não diz, o outro está cada vez mais à direita mas finge que é de esquerda (moderna)... vão dar-se lindamente. Terá Cavaco em Sócrates o PM que ele sempre sonhou para o PSD?

26 abril 2006

Esquerda ou direita, is that the question?


Martim Avillez Figueiredo diz hoje no editorial do Diário Económico que Cavaco foi ao Parlamento “fingir um discurso à esquerda”. Martim tem razão – parcialmente –, quando o PR responsabiliza mais do que o Estado pela justiça social. Mas ele não pede menos Estado. Exige um esforço suplementar de responsabilização social de cada cidadão.

Apesar de pedir para que se esqueçam as ideologias, Cavaco não tem um discurso assim tão próximo dos liberais. Está umas vezes mais perto da direita tradicional, mais assistêncialista ou caritativa; ou de alguma esquerda católica, como António Guterres, apesar de há 10 anos Cavaco ter assumido que o Rendimento Mínimo era um subsídio à preguiça.

Num exercício que corre o risco de parecer muito a preto e branco, podíamos interpretar o discurso do PR assim:

Esta frase de Cavaco, uma lapalissada podia ser dita por alguém do CDS até ao BE:
O risco de pobreza persistente, que é relativamente elevado em Portugal, aumenta substancialmente no caso dos idosos

Neste caso, o PR coloca a sua voz claramente à esquerda, do tipo, os ricos que paguem a crise. Mas também pode ser vista à direita, para se diferenciarem as prestações, tratando-se de forma diferente o que não é igual:
“O esforço que o Estado tem vindo a realizar para atenuar os efeitos deste quadro social tem de ser continuado. Não é moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a que viveu uma vida inteira de privação”

Aqui, ao apelar à solidariedade na estrutura tradicional da família, quem fala é Cavaco, o católico, que vai à missa todos os domingos aos Salesianos em Campo de Ourique. É a falta de comparência da família que deixa os idosos à mercê das pequenas pensões estatais:
“Desagregadas as estruturas familiares de apoio, pelas transformações sociais ocorridas nas décadas recentes, ficaram muitos dos reformados de ontem confinados às pensões do regime não contributivo que não lhes conseguem assegurar uma existência condigna”

Finalmente, pede mais responsabilidade social, pragmatismo na resolução dos problemas, mas não pede menos Estado. Diz apenas que não chega exigir mais Estado:
Para que esse risco possa ser atenuado não chega exigir mais medidas ou mais dinheiro. Concretizar essa ambição de justiça social, que não tem de ser remetida para o plano das utopias, passa por cada um de nós. Todos somos responsáveis, todos temos de assumir a nossa quota parte de responsabilidade social que nos cabe como cidadãos

O pragmatismo de Cavaco

A 25 de Abril e a 5 de Outubro, Jorge Sampaio fazia discursos de geometria complicada, verdadeiros exercícios de quadratura do círculo: conseguia falar de tudo ao mesmo tempo, defendia a coisa e o seu contrário, lançava frases cifradas, agradava a todos, desagradava a todos, dava recados ao Governo, às oposições, a toda a gente.

Ontem Cavaco foi mais eficaz. Primeiro sugeriu: está bem, meus senhores, eu podia vir aqui falar dos problemas do regime e puxar as orelhas aos deputados, mas os senhores são crescidinhos e não vou aqui perder tempo a dizer o que toda a gente sabe e pensa, vou antes falar sobre isto - a justiça social - que é coisa muito mais importante para a vida das pessoas. O discurso está aqui.

Ao fechar o ângulo, conseguiu lançar todos os olhares para um único problema, invertendo a lógica dos discursos presidenciais. Ao escolher um tema que tanto preocupa o PC como o CDS manteve-se acima das lutas partidárias.

Ao falar da vida real das pessoas deu um sinal ineqívoco: a política serve para pensar nos outros e existe como serviço aos outros - e nisso ele assume um certo carácter messiânico - mais do que para passar o tempo aos círculos a reflectir sobre si mesma.

A contradição é tão só esta: Cavaco ganhou as eleições ao centro e já fez dois discursos à esquerda; então, para que servem os seus conselheiros mais próximos, conotados com o que há de mais liberal do ponto de vista do mercado e conservador do ponto de vista dos costumes? É que nem tudo o que Cavaco diz é tudo o que Cavaco pensa.

Um cravo no carrinho do Miguel

Ontem consegui sair cedo, coisa rara. Sentei-me com o Miguel numa esplanada na Avenida da Liberdade a ver o desfile do 25 de Abril e estivémos ali os dois a fazer coisas de homens: eu a beber uma cerveja e ele a comer uma papa e a dizer bá, bá! Há dias bons.

24 abril 2006

Conversas de rua - 2

"Is this fado?" - turista para outra, no meio de um grupo que descia a Rua do Carmo na sexta-feira Santa, ao som de Mariza, que cantava através das colunas daquele calhambeque que vende discos de fado na Baixa.

14 abril 2006

Conversa solta

Há fragmentos de conversas que se apanham na rua, no metro, nos cafés, que são instantâneos tão deliciosos como velhas polaroids. Vou começar a anotar Conversas de Rua e a partilhá-las aqui ao espelho. Como no post em baixo.

Conversas de rua - frases de hoje


"É mais fácil neste país chegar a primeiro-ministro do que estacionar o carro". Homem de meia idade, na Rua Filipe Folque, Lisboa, a gritar para um amigo.

"Ele passa férias no México ou em Óbidos". Jovem para outra, na Av. Conde Valbom, Lisboa.

"Fui preso mas não roubei nada a ninguém, nem matei. Fui preso por tráfico de droga, tráfico de droga, pá!" Bêbado, pelas nove da noite, num cafezinho do Prior Velho, Loures.

Ora vamos lá pecar

Segundo um dos maiores da hierarquia Católica, agora passar tempo na Internet é pecado. Bem, mas como já é tarde e eu hoje ainda não pequei, decidi pecar só um bocadinho.

07 abril 2006

Estrebuchar

Berlusconi atacou jornalistas e juízes. Guess what? Vai perder as eleições italianas, como Santana e como Soares em Portugal. É o que se chama um reflexo pavloviano.

O realismo

Aprendi há muito tempo que não posso mudar o mundo mas posso mudar a minha vida. Agora ando a descobrir que mesmo essa de mudar de vida se vai tornando mais difícil com a idade.

05 abril 2006

Nação bastarda


Ao que parece, Afonso Henriques, o verdadeiro, era aleijado, tendo sido o bebé original substituído por um saudável filho de Egas Moniz. O livro de Agustina que o Abruto nos oferece em pré-publicação (uma iniciativa interessante que esperemos que resulte) põe a nu alguns genes de Portugal. E a genética ajuda sempre a perceber quem somos.

- Se não é bastarda, a Nação nasceu para argumento de novela venezuelana e isso não deixa de ser divertido, apesar do fado ser melancólico;

- A modernidade é muito mais aborrecida, porque acabaram-se os milagres: pode parecer, mas não é tão miraculoso o Sampaio demitir o Santana Complicadex e nomear o Sócrates Simplex, como foi o Egas invocar o divino após trocar o menino legítimo, mas defeituoso, por outro saudável e futuro guerreiro;

- Se não fosse aquela mentira, andávamos todos a falar espanhol, Camões não havia, nem alma Lusitana, nem Barça-Benfica.

- Já estou aver a cena: o aio Egas Moniz diz a D. Afonso, "Eu é que sou o vosso verdadeiro pai, vós fostes trocado, por isso, podeis fazer a guerra a D. Teresa, ela não é a vossa mãe, mas sereis ser rei e governareis"; o infante replica-lhe em lágrimas, "Papá, eu sabia, estou tão emocionado, vinde, pegai na espada, vamos aí desbaratar uns mouros..."

Eu sou um pessimista

O funcionário das Finanças que hoje recebeu os meus 100 euros de multa porque decidi fechar os recibos verdes com uma data de 2005 (porque desde Julho nunca mais passei recibos), tinha um cartão colado ao vidro da repartição a dizer: "Eu sou um optimista!"

É bonito ver um funcionário público de óculos fundo de garrafa e fato cinzento claro com corte dos anos 70, cheio de sarro, pulover verde com desenhos pretos e gola da camisa numa confusão a dizer que é optimista enquanto cobra multas por dá cá aquela palha. Como eu gostava de ter essa sorte. Acho sempre que tudo vai correr mal para depois parecer que correu bem.

04 abril 2006

Boas decisões

- Mudar de casa e comprar o pacote alargado da TV Cabo que incui o Fox, para ver os Ficheiros Secretos, as Donas de Casa Desesperadas, o 24, o House (sobre médicos, mas melhor do que o Serviço de Urgência), os Simpsons e outros desenhos animados para adultos, muito corrosivos.

- Comprar um iPod e descarregar todas as semanas o podcast do Meet the Press, da NBC e o Washington Week da PBS.

- Ler a Conspiração Contra a América, de Philip Roth.

- Dar o biberão da manhã ao Miguel e sair de casa mais cedo.

03 abril 2006

A marca da moça registrada

Nunca li e jamais lerei a Margarida Rebelo Pinto, portanto, nem sei se é boa. Escritora. Se ela pode interpor providências cautelares para impedir a publicação de uma obra crítica à sua obra - num país onde há liberdade de expressão -, não pode alguém pedir uma acção cautelar a um tribunal que também a impeça de escrever? Não era bom, seria mau, todas as sociedades têm direito a ter má literatura, se é disso que se trata, mas era equitativo.

Olhó verso em conta!

Há poeeesia baraaata! Na R. Passos Manuel, ao Jardim Constantino, na livraria da Assírio & Alvim, podemos comprar na feira do livro manuseado (da própria editora), Pessoa, Herberto Helder, Cesariny, etc. a metade do preço. Até quase ao fim de Abril. É pena que só esteja aberta entre as 12h e as 19h.

31 março 2006

Complicadex

Sempre que vou a uma consulta no hospital, o que é frequente, desespero com a espera só para dizer que ali estou, e que podem avisar sôtor. É o menos. Enquanto espero, há sempre os velhos ao engano. Querem apenas marcar uma consulta (sabe-se lá quando) e são sempre recambiados. "Hoje não é dia de marcar consultas", diz a voz fria por detrás do balcão. Os velhos pedem desculpa e voltam para casa.

Venham as espanholas, venham as suecas

"Grupo de 16 empresas suecas prepara entrada em Portugal" - título no suplemento de Economia do DN de hoje.

António Pires de Lima, do CDS, que comentava "venham as espanholas!", para José Sócrates (a propósito do encerramento da maternidade de Elvas), deve estar radiante. Venham as suecas.

Teoria da conspiração

Saldanha Sanches, esta noite na SIC-Notícias, falou de um boato que vai por Lisboa: que a direcção da Judiciária ameaçou demitir-se e o Governo cedeu (em relação à perda de competências sobre a Interpol e a Europol) por causa das gravações judiciais do caso Bragaparques. Um boato dito assim na televisão torna-se numa verdade a correr o país. Será que vai acontecer alguma coisa, ou era ele a fazer um teaser sobre o que a mulher, Maria José Morgado haverá de dizer ainda esta noite, no mesmo canal?

30 março 2006

O olhar do Afonso


O Luís Afonso não é fotógrafo profissional, mas é fotógrafo, a prova está aqui ao lado, nesta imagem bela e invulgar que ele recolheu em Berlim. Em http://www.luisafonso.com/ viajamos pela Europa e América através da poesia do olhar dele.

O Afonso é uma daquelas pessoas especiais, um homem da Renascença do século XXI: é informático, o site foi feito por ele, mas não é apenas um geek dos computadores, é um melómano apaixonado por Mozart e Bach, coleccionador de requiems apreciador de arquitectura, fotografia, pintura... um curioso. E bom amigo, por isso sou suspeito.

Vale a pena a visita às exposições permanentes e temporárias no site dele. Boas viagens.

Cortinas de fumo

Depois de amanhã é dia das mentiras, dia de político, porque a política é a arte da ilusão (também é a arte do possível, mas isso é outra conversa). Com jeitinho, em política pode mentir-se todos os dias.

Luís Filipe Menezes anunciou hoje que não era candidato às directas no PSD invocando, entre outros, o argumento de que tinha sido reeleito para a autarquia de Gaia. Porém, quando se candidatou contra Mendes há um ano não o impressionava desbaratar a confiança que lhe deram os eleitores - pois deixaria a câmara e ia para o Parlamento -, tendo até desafiado Marques Mendes a candidatar-se a uma câmara. Dizia que liderar uma autarquia e o partido não era incompatível. Abençoada coerência...

As razões verdadeiras são outras. O homem parece meio lunático, mas não é parvo. Perdia agora para Mendes as directas que sempre defendera e acabava-se ali o Menezes.

Ele sabe que quando um adversário precisa desesperadamente de um adversário, o melhor é deixá-lo ganhar sozinho para ele se convencer enganosamente de que ganhou (isto serve para Menezes no PSD como para Temo Correia ou Pires de Lima o CDS).

Coisas do presente

Um homem tem um filho, muda de casa, não tem tempo para nada, e depois fica assim agradado com coisas naturais: hoje a dupla João Adelino Faria e Ana Lourenço, na SIC-Notícias, estiveram em grande. Apertaram com o Menezes, que não se recandidata no PSD, com o Rui Pereira sobre terrorismo, com o seu ar de eu-sei-muito-mais-do-que-digo e animaram um debate entre Ana Catarina Mendes e Teresa Caeiro sobre as quotas de mulheres nas listas às eleições.
O panorama anda tão mau que uma pessoa até diz - ah, sim senhor! - quando se vê uma coisinha bem feita.

29 março 2006

Coisas do passado - dinastia Cavaco


Enquanto este blogue esteve em coma, foi eleito um PR em Portugal. Há um mês que tenho aquela imagem atravessada. Apetecia-me dizer isto:

Cavaco, a subir a rampa do Palácio de Belém com a Maria pela mão (até aqui tudo bem), mais os filhos, mais os netos, mais o genro mais a nora é pindérico. E é monárquico.

O Luís Montez (genro) não é mais do que eu para andar ali.
A Perpétua (nora) não é mais do que você para andar ali.
(Eu também quero subir a rampa, você não quer?)
Os filhos já não são dependentes do papá para aparecerem na fotografia.
As crianças não mereciam ser usadas assim.

Em termos de marketing - dantes dizia-se propaganda - , a coisa funcionou na perfeição.

reset/restart

Hoje é um bom dia para reinaugurar este blogue. O Tiago sabe por quê. Vamos a isto.

31 janeiro 2006

Encontrei, num corredor longo e baixo de uma estação de metropolitano, um homem a tocar o Take Five de Dave Brubeck num acordeão. Não sei se isto constitui um símbolo do triunfo ou do fracasso das nossas políticas sociais. Como sou optimista e gosta da música, contribuí com a moedinha.
Sugeri escrever um último post, sobre a eutanásia, e acabar com o sofrimento do blogue. A moção foi rejeitada, por isso temos de continuar a dar-lhe doses de morfina, gota a gota.

15 janeiro 2006

Nós, os nórdicos do sul, temos melancolia sem Volvos. Caminhamos calados pelas ruas com as golas do sobretudo levantadas, passamos demasiado tempo nas esplanadas a cismar frente às chávenas de café e só não nos suicidamos mais porque esse é um passatempo de povos ricos. Estes traços de personalidade podem permanecer latentes durante meses, mas basta um dia triste de chuva como este para me apetecer ler Kierkegaard e ver filmes de Bergman.

27 dezembro 2005

a music of chance


Sob o efeito alucinogéneo das rabanadas descobri semelhanças entre a notação musical e a notação da sueca. Talvez por não perceber nada de música e muito pouco de sueca, os traços e bolas com que se registam ambas as artes parecem-me ter uma base comum, com origens longínquas no cálculo combinatório e nas teorias do caos. Talvez por não perceber nada de cálculo combinatório ou de teorias do caos. Podemos assim conceber uma música do acaso, minimalista, construída através da interacção inconsciente de quatro pessoas que jogam às cartas num jardim. Um conceito digno de Borges e credível apenas enquanto durar o efeito do vinho do Porto.

12 dezembro 2005

«Proibido estudar neste estabelecimento»

Dos cinco elementos definidores que George Steiner descreve em A Ideia de Europa, há um que me faz sentir verdadeiramente europeu: a cultura de café. O espaço, não a planta. «Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia.» Em Lisboa são o último recurso ou refúgio de quem quer ler e precisa de fugir de alguma coisa. O hábito teve como consequência não intencional o desenvolvimento de estratégias de consumo comuns à espécie. A escolha sábia das bebidas e o ritmo de substituição das chávenas vazias pode prolongar a utilização do espaço por vários capítulos.

10 dezembro 2005

Segundo o Oxford Companion to Philosophy, o riso sofístico (risus sophisticus) é a técnica, identificada por Górgias de Leontini, de destruir a seriedade de um adversário com o riso e o seu riso com a seriedade. É uma técnica bastante eficaz, especialmente se a utilizarmos contra nós próprios. Não nos conseguirmos levar a sério e não nos acharmos grande piada.

06 dezembro 2005

Livro de cabeceira da semana

JEPHSON GARDENS

Agora és estrangeiro em sentido
próprio, com os nervos toldados
por demasiada música. Sentado
na erva de Maio, junto à estufa
das carnívoras – Dragão Vermelho,
Sarracenia flava – a tua Primavera
tortuosa, transplantada.

Enrolas tabaco holandês, procuras
na memória um verso que melhor
explique o lastro das circunstâncias,
uma Inglaterra mais funda, deitada
à sombra da experiência
das palavras. E tal como esse
pequeno, quase imponderado
esforço, não terá sido afinal inútil
tudo o que fizeste na vida?

Rodas e repetições, é assim o tempo
na carne. Mas o que aprendeste
com o primeiro desengano não te preparou
para o segundo, o terceiro e todos
os que se seguiram. Entretanto faz sol
e o mundo existe, é quase uma pintura
de inocente intenção.

Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005

05 dezembro 2005

A ocupação do espaço

A conceito mais brilhante inventado por Jeremy Bentham não está em An Introduction to the Principles of Law and Legislation, o livro em que expôs as bases do seu sistema utilitarista. Auto-ícone, a ideia de uma pessoa se representar a si própria com o seu corpo, depois de morta. O conceito é o da estátua, sem a mediação do granito, e representa um meio termo entre as múmias dos faraós e as estátuas humanas das ruas movimentadas das grandes cidades europeias. Mais interessante ainda é Bentham ter aplicado o conceito a si próprio e poder ser visitado no University College de Londres, na caixa de madeira onde permanece sentado há anos, talvez a pensar nas frases com que iniciou o seu grande livro e que já não regem a sua (não-)existência:

Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will serve but to demonstrate and confirm it. In words a man may pretend to abjure their empire: but in reality he will remain subject to it all the while.

01 dezembro 2005

À borla

«Artigo 31º - O direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada postumamente.» [Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos]

«Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.» [Livro do Desassossego de Bernardo Soares]

Aforismos, empirismo

Ainda não percebo totalmente o conceito de gravata de Inverno, mas ando com o esterno mais quente.
Farto de ter de ceder os louros pelos presentes a São Nicolau, um amigo contou-me que este ano decidiu ter uma conversa com a filha e explicar-lhe que, como se podia ver pelas longas barbas brancas, o senhor já estava muito velhinho, teve um enfarte do miocárdio e morreu, paz à sua alma. Um século depois de Nietzsche ter decretado a morte de deus, alguém declara o óbito do Pai Natal. Não sei se a filosofia ocidental estará preparada para mais este abalo.

23 novembro 2005

Ando a ouvir tanta música de embalar que este blogue adormeceu. O tempo que gastava a escrever, emprego-o agora a mudar fraldas. Sou um homem moderno, qualquer dia vou aí para as manifestações a reclamar o regresso à velha desigualdade entre os sexos e exigir uma quota de tempo diário para mandar umas larachas. Tiaaaagoooo! Acoooorda! Dá aqui uma mãoziiiinha!

Estamos em estado de reanimação. Por favor incomode o doente.

01 novembro 2005

O censor prévio


Rui Rio é um democrata, ninguém duvida. Desde que a democracia satisfaça plenamente a sua vontade, é um democrata. Com maioria na câmara, mais democrata se torna, e ganha contornos de déspota iluminado, que decide o que é de interesse público, e sobretudo aquilo que é do seu interesse próprio. Assim, ontem, no Porto, ele mesmo provou como a democracia é uma coisa frágil e como dentro de um político com fama de sério e honesto pode abrigar-se um pequeno ditador.

Da última vez que entrevistei Rui Rio (para a "Sábado"), antes das autárquicas, ele próprio e elementos do seu stafe tentaram evitar que a entrevista fosse publicada. Rio não gostou de ser confrontado com aquilo que Paulo Morais tinha dito numa entrevista anterior à Visão, não gostou de ser confrontado com algumas das suas contradições, não gostou que a entrevista não tivesse sido aquilo que ele desejaria que fosse. Mas uma entrevista é uma entrevista, não é um tempo de antena.
É pena que ele não compreenda que os titulares de cargos públicos, por melhores intenções que guardem, devem ser confrontados com as suas acções, palavras, intenções. Devem esclarecer, ser claros, e perceber que os jornalistas não devem resignar-se quando os políticos não querem responder às perguntas incómodas. A nossa função é inquirir, duvidar, querer saber mais e garantir que as respostas são reproduzidas tal como foram dadas.

Mas ontem Rui Rio anunciou estas fabulosas e democráticas regras, numa declaração pública, que pode ser consultada no site da SIC:

- ”restringir o seu relacionamento [da Câmara] com os media exclusivamente às matérias de inegável interesse público e evitar todas as que visem objectivos de interesse privado, corporativo ou editorial”;
- ”fazer depender qualquer declaração para a comunicação social sobre matérias do Executivo, de prévio contacto do jornalista com o Gabinete de Comunicação da Câmara”;
- ”acordar com a imprensa apenas entrevistas por escrito, mediante critérios de oportunidade, com regras previamente definidas, evitando ou minimizando assim interpretações especulativas, ou a pura manipulação das respostas”;
- ”o Gabinete de Comunicação da Câmara recorrerá, preferencialmente, à mensagem escrita, através de publicação no site oficial da Câmara e de difusão pelos media”.

28 outubro 2005

Lisboa-Porto num shot


Diz a assitente de bordo:
- Quer um TGV ou uma OTA?
Responde o passageiro:
- Pode ser um TGV, sim, nunca bebi uma OTA...
- eeeerr, é uma Orange+Tequilla+Aniz! - explica ela.
- Hum, prefiro um TGV. A viagem passa mais depressa. Traga-me dois. E um absinto, por favor.

27 outubro 2005

Recordando...


Com Cavaco a concorrer, agora discute-se a presidencialização do regime. Tem piada, porque em 2001, como Sampaio era pouco interventivo, o debate análogo sobre os poderes presidenciais era sobre se o Presidente da República devia ser eleito por sufrágio universal ou por via indirecta. Ele há coisas neste país que mudam com uma facilidade... e ninguém se lembra?

25 outubro 2005

Coincidências

Os ex-PRD Carlos Beato (presidente da câmara de Grândola eleito pelo PS) e Pedro Cannavarro, que foi presidente do defunto partido renovador (para não falar em Ramalho Eanes), apoiam Cavaco Silva. Lembram-se qual foi o partido que, em 1987, apresentou uma moção de censura para derrubar o Governo minoritário do PSD? Sim, foi o PRD. E logo a seguir Cavaco teve a primeira maioria absoluta...

24 outubro 2005

Lembrando, comparando...


"Convocaria eleições no momento em que estivessem esgotadas as hipóteses de obtenção do necessário apoio parlamentar à constituição de um governo. Contraria a minha experiência para avaliar as condições de governabilidade", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial: DN - 11 de Janeiro de 1996.Lembremo-nos de que Guterres não tinha maioria absoluta.

"Eu sou um defensor da estabilidade política. Não se conseguem ultrapassar as dificuldades sem estabilidade. [A dissolução] Só deve ser utilizada em situações muito extraordinárias", disse Cavaco Silva, na apresentação da campanha presidencial II: 20 de Outubro de 2005. Ligeiramente diferente da opinião da década anterior. Para não assustar os socialistas nem os sociais-democratas traumatizados.

"O senhor [dirigindo-se a Jorge Sampaio], não esteve na Alameda politicamete. E sempre esteve nos antípodas de Mário Soares", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial, no debate com Jorge Sampaio e Jerónimo de Sousa na Prova Oral da RTP, a 15 de Dezembro de 1995. Tecerá hoje louvores a Jorge Sampaio para atacar Mário Soares? Ficamos à espera, porque a política tem coisas destas.

"[O Rendimento Mínimo Garantido] gera muitos problemas: desincentiva a procura de trabalho, requer mecanismos administrativos complexos para o seu controlo, dá origem a grandes fraudes e provoca injustiças. Não resolve os problemas da pobreza", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial à Revista do Expresso, 12 de Janeiro de 1996. Manterá a mesma opinião agora?

"Com o poder todo concentrado num só quadrante ideológico, não vejo nada um futuro cor-de-rosa (...). Com tudo cor-de-rosa não antecipo nada de bom para Portugal", disse Cavaco Silva, na 1ª campanha presidencial na mesma entrevista à Revista do Expresso, em 12 de Janeiro de 1996, a dois dias das eleições. Poderá hoje dizer a mesma coisa, quando ainda há mais poder concentrado nas mãos dos socialistas? É claro que não voltará a usar este argumento.

Dez anos é muito tempo...

20 outubro 2005

Adivinhando


Hoje, dentro de uma das suas obras emblemáticas e à hora dos telejornias, Aníbal Cavaco Silva vai dizer que é candidato a Presidente da República.

1 - A sua declaração será curta e incisiva, ao contrário da de Mário Soares que foi longa, fastidiosa, e vazia de conteúdo;
2 - Não vai ter a sala cheia de convidados, mas sim de jornalistas, para evitar colagens excessivas a partidos (ao PSD) e Marques Mendes não deverá lá estar; Mário Soares tinha a sua sala no Altis cheia de notáveis e de gente do PS para mostrar que tinha uma data de apoios;
3 - Vai responder a perguntas dos jornalistas para mostrar que não é aquela figura fechada e antipática de outros tempos, ao contrário de Soares que não quis ser questionado a seguir à sua apresentação (e que toda a vida falou aos jornalistas);
4 - Para já, não fará grandes avisos à navegação socialista e até há-de elogiar o esforço de contenção deste Orçamento do Estado, para não hostilizar os socialistas;
5 - Voltará a apresentar-se como homem providencial que regressa com sacrifício da sua vida pessoal para endireitar as coisas (aliás, tal como Soares);

Quem há 10 ano pensou que o Acabado Silva estava mesmo acabado...

15 outubro 2005

Arquitecto no saco


Meteram o arquitecto no saco. Que será dos meus sábados, a partir de agora, sem aquelas ironias tão finas que quando estão de frente parece que estão de lado e é preciso explicá-las na semana a seguir? Em que sacos hei-de procurar agora prosas saraivadas? Heeelp! Preciso da minha dose semanal de Saraiva.

13 outubro 2005

Ao largo na Graça


Pode. Tire lá a fotografia. Assim 'tá bem? Deixe-m' ajeitar o boné… E o cigarrinho? Vou dar uma passa no cigarrinho. Ficou bem? Sou aqui da Graça, pois, sou daqui. Agora isto há prá’qui muita gente. É a esplanada há uns dois anos. Dois anos? Se calhar há mais... Já custo a andar. Só com a bengala. E devagar. São os anos. Uma data deles. Bailei muito nesses Sant' Antónios. Agora tod'á gente vem p'ráqui. Acho bem. A malta tem de se divertir, não é? Vou andando devagarinho, assim, 'tá a ver. Visto o fatinho, já tá velho, e dou uma volta, vejo a vista, as camones, até assobio a elas, dou pão aos pombos, bato uma manilha ali no largo, quando calha. Já não posso dar no tinto, mas às vezes vai um gole no branco, eh, eh. É assim. Saudinha da boa!

12 outubro 2005

Arqueologia das palavras


Se a Odisseia é a precursora dos Indiana Jones e demais histórias de aventuras, a Ilíada inaugurou os Apocalipse Now de todos os tempos e demais contos de guerra. O Senhor dos Anéis, porém, mistura tanto aspectos homéricos da Odisseia como da Ilíada. É uma guerra e uma busca, uma ida e um regresso. Mas para lá da narrativa, há detalhes que me impressionam na leitura das traduções de Frederico Lourenço para a Cotovia. Como esta arqueologia das palavas, numa história com três mil anos, em que Nestor fala a Diomedes:

"Pois agora para todos se coloca no fio da navalha".

Ou então, pouco mais adiante:

"Hão-de ficar onde estão [os troianos], afastados das naus, ou hão-de regressar à cidade, uma vez que já deixaram os Aqueus na mó de baixo."

Na "mó de baixo" e no "fio da navalha". Há três milénios que usamos estas expressões e eu não sabia. Na Introdução, o tradutor explica que este é o mais antigo registo da frase "no fio da navalha". E há outras coisas tão parecidas às dos nossos tempos...

Relativismo

Sou um puericultor. Mudo fraldas com chichis e cocós, dou banhinhos relaxantes todas as noites, penso em estratégias de embalo, estudo a semiótica do choro, faço massagens na barriguinha para o piqueno aliviar as dores, acordo ao de leve de noite quando a Carla dá de mamar... Não, não vou escrever sobre as autárquicas. Tanto me faz. E dá-me ideia que a consistência do cocó de ontem seria um tema de conversa mais interessante.

06 outubro 2005


"Há, em Veneza, três lugares mágicos e secretos: um na rua do Amor dos Amigos; um segundo nas proximidades da ponte das maravilhas, e um terceiro na calle dei Marrani, perto de San Geremia, no velho ghetto. Quando os venezianos - por vezes malteses - se cansam das autoridades, dirigem-se a estes lugares e, abrindo as portas ao fundo desses pátios, partem para sempre para países fantásticos e outras histórias". - Fábula de Veneza, Hugo Pratt
Tiago e Joana: já têm aqui a cartografia dos portais fantásticos; se os atravessarem para o outro lado, podem prolongar por mais uma horas este dia especial.

04 outubro 2005



De Veneza regressa numa vinheta de 35 mm diante do leão antigo do Arsenal como Corto na Fábula.

02 outubro 2005

«Para Veneza!», exclamou, repetindo o pedido de Aschenbach e estendendo o braço para mergulhar a pena no líquido pastoso que mal cobria o fundo de um tinteiro inclinado na sua frente. «Uma primeira para Veneza! Aqui tem, cavalheiro!» Rabiscou uns gatafunhos largos, polvilhando-os com uma areia azulada contida numa caixa, que escorreu para uma taça de barro, dobrou o papel com os dedos amarelados e nodosos e escreveu do lado de fora. «Que escolha feliz para a sua viagem!», aventurou entretanto. «Ah! Veneza! Que cidade maravilhosa! É fonte de atracção irresistível para a pessoa instruída, tanto pela sua história como pelos seus encantos de hoje!» A fluência e a rapidez dos seus gestos e as frases vazias com que os acompanhava tinham algo de envolvente e distractivo, como se suspeitasse que o viajante pudesse ainda vacilar na sua decisão de partir para Veneza.

Thomas Mann, Morte em Veneza

(Até p'rá semana.)

01 outubro 2005

Washington «Post»


Está a passar no Quarteto o documentário Dentro de Garganta Funda. Apesar de gostar de conhecer a fundo os escândalos da política mundial, não vejo qual é o interesse de assistir a uma endoscopia ao Mark Felt.

25 setembro 2005

A criação do mundo



Para o Miguel, ao quarto dia

Assim como quando uma pessoa morre o mundo acaba, quando alguém nasce o mundo é criado. Para quem tem poucos momentos de vida, não interessa se o universo foi criado há milhões de anos e continua a expandir-se ou se o seu próprio nascimento foi produto de uma evolução a partir de aminoácidos, da substituição de seres estranhos por seres estranhos e de uma longa sucessão de relações sociais determinadas, no fundamental, pelo acaso. Para o Miguel o mundo foi criado na última quinta-feira. E, em certo sentido, também para a Carla e o Vítor.

Tudo foi criado em simultâneo, mas não pode ser conhecido em simultâneo. Todos os povos têm mitos fundadores e, no nosso, ao quarto dia foram criados as estrelas, o Sol e a Lua. «Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra». É um dia importante e está a chegar ao fim. O de amanhã também vai ser comprido: são criados os seres marinhos e as aves. Dorme bem.

23 setembro 2005

O Equinócio da minha vida



Aqui, nesta hora indizível, a cabecita do Miguel assomava-se ao mundo e estreava os pulmoezitos novos. Aqui, neste minuto feliz, às 17h56, no momento do Equinócio de Outono, quando o dia tem exactamente a mesma duração da noite, a 22 de Setembro do ano da graça de 2005, senti aquilo. E isso não se descreve. No primeiro segundo, parece que olhamos para nós mesmos às avessas, como uma personagem de Borges que encontra o seu sósia. Ontem, da primeira vez que o vi em cima da barriga da mãe, umbilicalmente ligado ainda, tudo fez sentido com uma limpidez cristalina mas inexplicável. Todos os pontos do cosmos convergiram ali, enquanto reconhecia o meu filho. Enchi-me de ar, de perfumes de jardins e de rosas e de quatro ventos frescos cardeais e de todos os lugares mágicos e de fantasia do mundo. Viver até agora valeu a pena para ser atravessado por estes segundos de alegria e perplexidade.

20 setembro 2005

A vida d.f.

Em criança, intrigava-me a existência dos meus pais antes de eu ter nascido. Como era possível?Agora mudei de posto. Intriga-me a minha existência depois de o Miguel nascer, daqui a umas horas - o que significa durante esta semana. Dizia-me o meu médico: "Olhe que isso é um corte epistemológico na vida de um homem". Como nunca ouvi dizer que cortes epistemológicos precisassem de anestesia, deve ser porque não doem, mas esta coisa de estar quase a ser pai (e a Carla mãe) deixa-me nervoso, pelo menos um bocadinho, pois. Aí vem a vida d.f. (depois de filhos). Este é um dos meus últimos dias a.f. (antes de filhos). E não serão dias fáceis, que tenho muito que fazer. Apetecia-me andar por aí a apanhar sol e a pensar na vida. Mas, por agora, se tenho saudades é do futuro.

19 setembro 2005

O duelo: Carmona vs Carrilho


Aquilo foi a prova de que afinal eles são como nós, como a gente, piores que o pessoal, a malta, a maralha, a canalha. O duelo Carmona vs Carrilho refuta o argumento de que os políticos estão longe das pessoas, dos eleitores, enfim, do povão. Eles são povo, interpretam na perfeição a atitude discursiva alfamista ou madragoeira, são verdadeiras varinas, naifistas do Cais do Sodré, rufiões da baixaria. Interpretam aquilo que a condição humana tem de mais genuino: o instinto do ataque e o reflexo da defesa, a fúria, o olho-por-olho-dente-por-dente. Ah gandas homens, pá!

Aquilo não devia ter ficado por ali. Se eles fossem cavalheiros... Se aqueles dois rufiões fossem cavalheiros à séria, nunca tinham aplicado tantos golpes abaixo da cintura. Se fossem cavalheiros, no final, quando Carrilho recusou o cavalheiresco aperto de mão, Carmona havia de ter pegado na bengala e quebrado a dita na cabeça dura de Dom Manuel Maria; quando Dom Manuel Maria ouvisse Dom António Pedro a chamar-lhe "ah grande ordinário", havia de lhe dar dois ou três sopapos, já que ele dá a Cara Por Lisboa, e depois marcavam um duelo nas traseiras da Sé e, assim, com sorte, víamo-nos livres de ambos.

Há mínimos a cumprir em política: não basta ser sério, ter ideias e boas intenções, é preciso saber estar, porque é no domínio público que a política decorre. Como é que estes dois homens tratariam um munícipe reclamante? Ao pontapé? O que o debate nos mostrou é que Lisboa será governada por um dos dois, infelizmente.

18 setembro 2005

O nosso blogue foi pela primeira vez bloqueado por um firewall, com a mensagem: The site atraves-dos-espelhos.blogspot.com was blocked, it is in the Restricted Pornography category. É uma grande vitória para nós, mas também é um sinal de que talvez precisemos de elevar a qualidade dos temas e dos textos. Peço-vos por isso que reflictam agora sobre este excerto de um texto de Cícero, que transcrevo na língua em que soa melhor, a original.

Cum enim saepe mecum ageres ut de amicitia scriberem aliquid, digna mihi res cum omnium cognitione tum nostra familiaritate visa est. Itaque feci non invitus ut prodessem multis rogatu tuo. Sed ut in Catone Maiore, qui est scriptus ad te de senectute, Catonem induxi senem disputantem, quia nulla videbatur aptior persona quae de illa aetate loqueretur quam eius qui et diutissime senex fuisset et in ipsa senectute praeter ceteros floruisset, sic cum accepissemus a patribus maxime memorabilem C. Laeli et P. Scipionis familiaritatem fuisse, idonea mihi Laeli persona visa est quae de amicitia ea ipsa dissereret quae disputata ab eo meminisset Scaevola. Genus autem hoc sermonum positum in hominum veterum auctoritate, et eorum inlustrium, plus nescio quo pacto videtur habere gravitatis; itaque ipse mea legens sic afficior interdum ut Catonem, non me loqui existimem.

17 setembro 2005

Inspiração em Sade


Meu caro Tiago,

Tenho uma solução para o problema enunciado por ti no post anterior: há 200 anos, a solução foi encontrada pelo Marquês de Sade. Ele escreveu coisas tão criminosas que conseguiu ir parar à cadeia onde encontrou inspiração para escrever outras ainda mais criminosas.

Ora Sade, frustrado que estava com os prazeres finitos da tortura, assassinato e traição, procura em cada personagem um um crime tão hediondo cujos efeitos sejam eternos, de modo a causar, nas suas palavras: "Um caos de tais proporções que provocasse a corrupção geral ou um distúrbio tão formal que, mesmo depois da minha morte, os seus efeitos ainda se sentissem".

Juliette, uma das suas personagens mais vis, chega a enunciar esse objectivo do autor, Sade. O de cometer "um crime moral, o crime que se comete a escrever". Sendo assim, o crime que pode cometer-se a escrever, ao contrário do que desejarias, Tiago, teria de ser absolutamente inaceitável do ponto de vista moral. Até inacessível, difícil de igualar, por assim dizer, do ponto de vista da maldade.

Mas creio que o Marquês de Sade não levantou a questão dos funcionário públicos. Não era preciso. O Conde José Sócrates já os faz sentir tão culpados por existirem que o melhor era mesmo optarem entre o suicídio ou a escrita de um romance. E um romance faz menos mal à saúde que um suicídio, daí ser mais aconselhável. De preferência, um romance moralmente inaceitável. Talvez seja mais fácil ir parar à prisão sendo funcionário público, por autopunição imposta, do que escrevendo o livro mais execrável que possa ter existido. Mas são os dias que correm. Pelo menos tu és funcionário público: eu não sou isso nem suficientemente malévolo para escrever um romance que valha a pena ser lido...

12 setembro 2005

É sabido que uma boa parte dos grandes escritores do passado passou pela prisão em alguma altura da vida. E nem todos injustamente. Alguns escreveram mesmo as obras que os celebrizaram em celas frias e húmidas percorridas por insectos, com traças a rodearem a chama da vela e o resto das tretas que costumamos associar ao encarceramento no nosso imaginário. Este dado não prova a existência de uma relação entre a mente criminosa e a escrita que tenha escapado a Cesare Lombroso, mas apenas entre esta e a disponibilidade de tempo. Com esta teoria na cabeça tenho folheado o Código Civil em busca de um crime moralmente aceitável e punido com uma pena adequada a um romance. Nada muito extenso, trezentas ou quatrocentas páginas (ou um ou dois anos, se preferirem). Como vivemos em democracia, os únicos que se poderiam adequar não estão lá, os crimes que garantem o estatuto de prisioneiro político.

A acreditar numa reportagem que vi há algum tempo existe uma alternativa mais moderna à prisão: o funcionalismo público. Era sobre o modernismo brasileiro e o estudioso tinha chegado à conclusão de que a maior parte dos grandes poetas e escritores do movimento, como Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto, eram funcionários públicos. A relação escapa-me mas parece-me um bom argumento para uso dos sindicatos e contra a diminuição do peso do estado.

09 setembro 2005

Para a Isabel e o Ruca

Juliet: Three words dear Romeo, and good night indeed:
If that thy bent of love be honourable,
Thy purpose marriage, send me word to-morrow,
By one that I'll procure to come to thee,
Where and what time thou wilt perform the rite,
And all my fortunes at thy foot I'll lay,
And follow thee my Lord throughout the world.

William Shakespeare, Romeo and Juliet

07 setembro 2005

Por falar em brindes de publicações periódicas, acho que desde o Restaurador Olex que nenhum anúncio televisivo contribuiu tanto para a manutenção de um estereótipo como o novo do Jornal 24 Horas. O Jornal está a fazer uma promoção em que oferece, periodicamente, um azulejo. Colecciona-se e, no final, como um puzzle, fica-se com um tabuleiro com o símbolo do Benfica. O estereótipo está na imagem final. Aparece o tabuleiro já completo junto a uma imperial e a um prato de tremoços, como que para demonstrar a utilidade do objecto. Quanto a mim, acho que seria muito melhor se pintassem os azulejos, mas isso já trata de outro vício sobre o qual não vou escrever aqui.
Bernard Mandeville escreveu, na passagem para o século XVIII, Fable of the Bees, um poema filosófico em que procurava demonstrar que os vícios privados podem constituir virtudes públicas. O livro deve ter servido de amparo a muitas gerações de fumadores, opiómanos, coleccionadores de brindes de publicações periódicas mas, tenho que confessar, deixa-me bastante preocupado com a minha fraca contribuição para o bem comum. O problema acaba por ser mais de tradução do que de contribuição. Mandeville fala em vícios (vices) no sentido de defeitos pessoais. Segundo ele, por exemplo, a avareza contribuiria para a prodigalidade, a cobardia para o cumprimento da lei, a luxúria para o desenvolvimento da indústria, a vaidade e futilidade para o comércio, etc. Não sei se isto me deixa mais descansado mas, pelo sim pelo não, vou dirigir-me à repartição das finanças mais próxima e pedir uma redução de impostos.

05 setembro 2005

Discurso de rentrée

While you were gone... arderam muitos campos de futebol de pinhal, caíram alguns aviões de maduro, nasceu o Pedro, o filho da Mafalda, um fenómeno meteorológico com nome de mulher arrasou vários estados norte-americanos, uma cidade foi submersa, Cavaco Silva não se assumiu como candidato à Presidência, o ajudante de Ferreira Torres tentou suicidar-se por ter medo de ser morto e falhou, cientistas descobriram que as vacas britânicas andaram a comer cinza de rituais de cremação hindus, não tive férias.

Lisboa aos meus pés

Entre uma chávena de café de saco e eu, o Castelo, ou o miradouro de S. Pedro de Alcântara, ou a Graça, e os edifícios das Amoreiras, ou o rio lá em baixo, e tanto telhado ondulando até Almada. Ainda bem que há lugares em Lisboa por descobrir. Neste caso, trata-se do 4º andar de um hotel fora de moda na Graça - a Albergaria Senhora do Monte, mais conhecida por estrangeiros que frequentada por lisboetas. Pode tomar-se um pequeno alomoço ou beber um copo à noite com a melhor de todas as vistas sobre Lisboa. Recomendo.

01 setembro 2005

A bochecha da República


Há Repúblicas que têm bustos. Portugal tem bochechas.

Mais providencial que isto era difícil. "Como poderia eu abster-me de participar, neste momento de crise, de desorientação e de indiferença, quando amplos sectores da sociedade civil e da política me pediram tão insistentemente para avançar?", disse ontem Mário Soares quando apresentou a candidatura a Belém.

Primeiro: não podia abster-se de participar. Porque não pode a República viver sem Soares? Os cemitérios estão cheios de gente insubstituível e de homens providenciais. D. Sebastião nunca chegou a aparecer, houve um dia que Salazar morreu, Sá Carneiro desapareceu, Cunhal foi-se e o país por aí continua. Caso Soares se abstivesse de participar, que desgraça se abateria sobre nós?
Segundo: a crise e a desorientação. Imaginamos que contributos poderá Mário Soares trazer para afastar esta crise que nos sufoca? Que norte nos apontará, para orientar a nossa deriva e para combater a nossa indiferença? A indiferença acentua-se quando as pessoas se deparam sempre com a mesma coisa, as mesmas caras ao longo dos anos...
Terceiro: os apelos da sociedade civil e política. Ao desespero de Sócrates, Soares respondeu: vamos lá dar cabo do Cavaco. Vamos ver como correm os debates, vamos ver... Todos os "basta!" que Soares disse nos últimos tempos vão ser-lhe atirados à cara durante a campanha e alguém dirá: com esta história recente, quem vai acreditar numa palavra do que o senhor diz?

Porém, se todos os Guterres e Vitorinos desta vida fossem menos egoístas e tivessem a disponibilidade viril para o combate que este homem de 80 anos mostra, não haveria cromos repetidos na nossa colecção.

Foto: Jean Gaumy, Magnum Photos, 1975