24 janeiro 2004

O judeu messiânico no limbo dos espelhos

Uma vez, por circunstâncias relativas ao trabalho, conheci um judeu messiânico - um ramo raro do judaísmo que acredita em Cristo como messias. Era um homenzinho pequeno, seguramente com mais de sessenta anos e cara deformada por cirurgias profundas. Estendeu-me a mão, disse o nome, deixou-me um cartão entre os dedos. Profissão: biblófilo e escatologista. Após cinco minutos de conversa sobre a explicação do mundo através de uma abordagem numérica do Livro do Apocalipse, segredou-me: «Sabe, eu às vezes também sei umas coisas antes das outras pessoas...» Tirou a carteira do bolso, mostrou um cartão tipo passe com a fotografia dele a dizer Ministério do Interior de Israel. Piscou o olho. Mossad, sim, só podia ser a Mossad. Eu sorri. Depois saltou para a falta de saúde que lhe marcava o rosto. «Sou muito doente e descobri tudo na vida pelo sofrimento». Contou-me quantas vezes tinha sido operado, mas entretanto esqueci-me de quantas foram. Também me explicou como tinha morrido e voltado à vida por duas vezes, uma em Inglaterra, há mais tempo, outra nos Hospital S. Francisco Xavier, recentemente. Da primeira vez que morrera, chegou a passar uns dias fechado na câmara frigorífica da morgue. Senti um arrepio na espinha. Fiquei a saber que escrevera um livro sobre experiências post-mortem e que fora entrevistado pela SIC e pela TVI. Ao fazer as contas às datas que o homem apontou, só me saiu um comentário pretensamente espirituoso. «Nunca tinha falado com ninguém que estivesse quase a festejar os cinco anos da sua primeira morte, ah, ah». Ele fingiu que gostou e riu também.

Esta história é real: passou-se do nosso lado do espelho. Mas há figuras tão improváveis que na sua loucura vivem num limbo entre o corpo e o seu reflexo. Esta foi uma das mais estranhas figuras que encontrei em toda a minha vida, e com quem ainda voltei a encontrar-me outra vez: um judeu, que crê em Cristo, que trabalha para a Mossad, que diz que trabalha para a Mossad, que estuda a Bíblia, que decifra o Apocalipse, que já morreu duas vezes e ainda está vivo. Às vezes somos nós próprios, os lúcidos, a duvidar se não passámos através dos espelhos...

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