29 janeiro 2004

A Doutrina W. - Segunda Parte

O Presidente disse a frase e a música começou a tocar. Depois do Discurso do Estado da União, dois neoconservadores americanos vieram desvendar mais um pouco do que parece cada vez mais ser a Doutrina W. Bush. Num artigo publicado no Los Angeles Times e no Público, David Frum e Richard Perle discutem a reforma da ONU. O que mais me despertou a atenção hermenêutica foi, ao analisarem o sistema de governo mundial, falarem sempre apenas dos Estados Unidos. Começa logo pelo título: «A ONU é um obstáculo à Segurança dos Estados Unidos». A análise não seria mais séria se deixassem cair a última palavra? Os mecanismos de governação mundial servem para proteger os estados uns dos outros, mitigando a anarquia. O que é permitido a uns, deve sê-lo a todos (nem que seja apenas teoricamente), sob pena de implosão das suas estruturas. E não terão Frum e Perle já os explosivos nas mãos, preparados para os alicerces, ao terminarem o artigo com a frase: «Se a ONU não fizer parte da luta contra o terror, os Estados Unidos não devem fazer parte da ONU.» Os Americanos conseguem ser os construtores mais idealistas e os demolidores mais realistas.

Um óbito e um hábito

A morte súbita de Fehér chocou-nos a todos. No dia seguinte dei conta que nessa semana tinham morrido 23 pessoas de acidentes nas estradas portuguesas. Esses são mais hábito que óbito.

26 janeiro 2004

Os campos de acondritos

Às vezes são as pequenas notícias que nos despertam a atenção e a inveja. No fundo de uma das páginas do Público, uma notícia fala da descoberta de um meteorito nas regiões do Anti-Atlas, no Sul de Marrocos. O que me despertou o interesse foi a expressão com que o jornalista classificou a profissão dos chefes da equipa descobridora, Carine Bidaut e Bruno Fectacy: caçadores de estrelas cadentes. Pouco me interessa, neste momento de inveja, se os dois fragmentos de meteorito são provenientes de Marte e de elevada importância. Apenas saber que existem pessoas que caminham pelos desertos à procura de restos de planetas (o que me teria ajudado bastante na altura em que tive de escolher um curso superior). Para romancear ainda mais a profissão dos dois franceses, só imaginando que escolhem a noite para vaguear pelos desertos escuros e que a sua tarefa é fácil porque, incandescentes da queda, os meteoritos ainda luzem por entre a areia.

24 janeiro 2004

O judeu messiânico no limbo dos espelhos

Uma vez, por circunstâncias relativas ao trabalho, conheci um judeu messiânico - um ramo raro do judaísmo que acredita em Cristo como messias. Era um homenzinho pequeno, seguramente com mais de sessenta anos e cara deformada por cirurgias profundas. Estendeu-me a mão, disse o nome, deixou-me um cartão entre os dedos. Profissão: biblófilo e escatologista. Após cinco minutos de conversa sobre a explicação do mundo através de uma abordagem numérica do Livro do Apocalipse, segredou-me: «Sabe, eu às vezes também sei umas coisas antes das outras pessoas...» Tirou a carteira do bolso, mostrou um cartão tipo passe com a fotografia dele a dizer Ministério do Interior de Israel. Piscou o olho. Mossad, sim, só podia ser a Mossad. Eu sorri. Depois saltou para a falta de saúde que lhe marcava o rosto. «Sou muito doente e descobri tudo na vida pelo sofrimento». Contou-me quantas vezes tinha sido operado, mas entretanto esqueci-me de quantas foram. Também me explicou como tinha morrido e voltado à vida por duas vezes, uma em Inglaterra, há mais tempo, outra nos Hospital S. Francisco Xavier, recentemente. Da primeira vez que morrera, chegou a passar uns dias fechado na câmara frigorífica da morgue. Senti um arrepio na espinha. Fiquei a saber que escrevera um livro sobre experiências post-mortem e que fora entrevistado pela SIC e pela TVI. Ao fazer as contas às datas que o homem apontou, só me saiu um comentário pretensamente espirituoso. «Nunca tinha falado com ninguém que estivesse quase a festejar os cinco anos da sua primeira morte, ah, ah». Ele fingiu que gostou e riu também.

Esta história é real: passou-se do nosso lado do espelho. Mas há figuras tão improváveis que na sua loucura vivem num limbo entre o corpo e o seu reflexo. Esta foi uma das mais estranhas figuras que encontrei em toda a minha vida, e com quem ainda voltei a encontrar-me outra vez: um judeu, que crê em Cristo, que trabalha para a Mossad, que diz que trabalha para a Mossad, que estuda a Bíblia, que decifra o Apocalipse, que já morreu duas vezes e ainda está vivo. Às vezes somos nós próprios, os lúcidos, a duvidar se não passámos através dos espelhos...

22 janeiro 2004

O Quarto do Filho

Acabei de ver «O Quarto do Filho», de Moretti, na Dois, e ainda estou embrenhado naquela densidade húmida da narrativa, que se entranha na roupa como a cacimba nos dias mornos.
Fez-me lembrar uma história, verdadeira, que se passou na minha terra e até já percorreu telejornais. O médico, doutor xis, estava de serviço no banco de urgências quando recebeu a chamada. Dois jovens, um acidente de automóvel para os lados da praia, a tragédia habitual aos fins-de-semana. A ambulância chegou. Parou junto à porta do hospital. As macas. Este aqui já está, disse o bombeiro. O médico levantou o cobertor. Um choque. Desmaiou. Tinha visto a cara do filho. Morto.

Os problemas de digestão de Harold Pinter

Depois do Almoço

E depois do meio-dia, os bem-vestidos vêm
Farejar por entre os mortos
E comer o seu almoço

E todos os bem-vestidos, tantos, arrancam
Do pó os inchados abacates
E remexem o minestrone com ossos dispersos

E depois do almoço
Preguiçam por aqui e por ali
Decantando o clarete em caveiras adequadas

Setembro 2002

Harold Pinter, Guerra, Quasi, 2003

(Ao final da tarde de hoje, na Fundação Mário Soares, Jorge Silva Melo leu os poemas do livro.)

21 janeiro 2004

Weapon of Mass Deception

Não é difícil perceber que quem possui o poder ou todo o poder, pretenda fazer uso dele para proteger os seus interesses. A legitimildade é uma questão secundária. A legalidade é uma questão terciária. A ética é uma questão que varia. The problem is: W. makes the mess and then someone has to clean it up. Quando as outras nações são obrigadas a ir em socorro de situações causadas por W. - neste caso o Iraque - ele não se lembra que não pediu autorização a quem de direito para lançar a confusão. Veremos que mais está para vir.

A Doutrina W.

George W. Bush afirmou, esta madrugada, no Discurso do Estado da União, que os Estados Unidos não têm de pedir autorização a ninguém para defenderem a segurança do país. Subentende-se que pelo mundo. Por que terão as outras nações de o fazer?

A Dois (res-post ao comentário do Pelejão)

Concordo com o Pelejão - num comentário quatro posts abaixo deste -, que A Dois não vem revolucionar o audiovisual. Meu caro amigo: não peço tanta iluminação. A mim bastam-me duas boas séries por semana, três seria demais, e um telejornal diário não tablóide para ficar feliz. A escassez é tanta que este pobre faminto pouco pede.

A vida em ritmo aritmético (res-post ao Tiago)

A multiplicação geométrica dos livros que tenho para ler não se materializa através da minha modesta estante, mas decorre de uma consciência cada vez maior daquilo que nunca li, daquilo que me é obrigatório ler e da existência de grandes textos que jamais lerei. É como tudo na vida: aquilo que nunca hei-de fazer, os lugares onde nunca estarei, as pessoas que nunca verei... Enfim, esta espécie de saudade do futuro como ânsia de viver. Como os livros, tudo na vida se multiplica de forma geométrica - tantas coisas, em todos os lugares, e ao mesmo tempo - mas o nosso tempo linear e a impossibilidade da ubiquidade apenas nos autoriza o gozo aritmético de uma coisa de cada vez. É verdade. Só por isso já pensei em desistir de dormir. Minutos depois tive sono...

20 janeiro 2004

A biblioteca geométrica (Primeira resposta ao Vítor)

Sempre gostei de bibliotecas e das estantes dos outros. Talvez por isso a minha vida cresça sempre mais do que a minha estante. Compro poucos livros. Requisito-os nas bibliotecas, depois de percorrer as longas filas de corredores, ganhando torcicolos, insultando a inexistência de um critério universal para o sentido dos títulos nas lombadas. Visito os amigos, as estantes deles, e levo um livro ou dois emprestado, que devolvo sempre em bom estado de conservação. E por isso a minha vida de progressão geométrica não me cabe em casa. Anda espalhada pela cidade, na casa do Armando, na do Vítor, na de amigos que foram tropeçando pelo caminho, na biblioteca da escola preparatória (o Salgari), na da universidade. Grande parte dela perdida para sempre. Talvez a geometria me pudesse fornecer uma fórmula para encontrar esses pontos dispersos pelo espaço, talvez eu goste de andar disperso.

In God They Trust - a sequela

Regresso ao véu islâmico em França e ao peso da religião entre os políticos nos Estados Unidos, assunto de «post» há uns dias atrás. Sobre o primeiro ponto, nada melhor do que ler uma interessante análise de Teresa de Sousa no Público de hoje. Continuo a achar que numa democracia liberal, o Estado tanto tem a ver com o uso do véu islâmico na cabeça como com o crucifixo católico ao peito. A exibição de sinais religiosos no espaço público tem a ver com cada um. Teresa e Sousa argumenta com a eventual imposição do véu a algumas mulheres muçulmanas e na imagem de subalternização que tal significa; também haverá famílias francesas, não islâmicas, que impõem às filhas regras menos visíveis do que meras peças de roupa, subalternizando-as enquanto mulheres, e o Estado não se incomoda com nisso.

Quanto aos Estados Unidos, o Nuno Guerreiro, autor do blogue Rua da Judiaria, chamou-me a atenção para um aspecto importante: os políticos usam a religião de forma demagógica para conseguirem votos nos EUA, mas o Estado é absolutamente secular. Bush pode pedir a Deus para abençoar a América, mas não diz a que Deus apela. In God They Trust, seja em que Deus for. E cada um pode dedicar-se às crenças mais inacreditáveis que ninguém tem nada a ver com isso, desde que não prejudique a liberdade de outros. De qualquer modo, Nuno, não podes deixar de concordar que há uma mãozinha de Deus em alguns assuntos públicos dessa América profunda, como leis estaduais que regulam a vida sexual ou escolas que recusam ensinar o darwinismo... Ou já não é assim, nessa grande terra que adoptaste para viver?

A vida não cabe na minha estante

Sou um pessimista, ou um malthusiano literário, bem entendido: os livros que tenho para ler crescem em proporção geométrica (2,4,8,16, 32...) e os livros que leio crescem em proporção aritmética (1,2,3, 4...). Se a estante de Pacheco Pereira, como ele diz, cresce um metro por semana, numa proporção aritmética multiplicante de volumes a uma velocidade constante, qual a progressão a que são sujeitos à assimilação biológica da sua massa cinzenta enquanto leitor? Isto angustia-me. Não biblioteca de Pacheco Pereira. Mas os livros que tenho para ler numa vida que um dia destes não cabe na minha estante.

A Dois: existe alguém mais belo do que eu?

Ao contrário do Pelejão, do Granito, que no outro dia postou contra o novo canal Dois, eu posto solenemente a favor. Como nunca vi os ditos programas da sociedade civil, das sociedades recreativas do queijo da Beira Baixa, ou das associações de fumeiros e linguiças do Alentejo, só tenho bem a dizer de séries como «Six Feet Under» ou «24», a horas decentes; de filmes europeus e portugueses a horas decentes; e de um telejornal que só dura uma decente meia-hora, e noticia só o que é importante, de uma forma decente. Até o logotipo me é agradável: faz-me lembrar a adolescência (a parte decente), de horas em volta do cubo mágico. Espero que A Dois se mantenha assim e que melhore. Quando estas séries acabarem, que emitam outras ainda melhores. Diga-se de passagem, fui muito céptico e até crítico quando foi lançado este projecto. Espero para continuar a ver...

18 janeiro 2004

domingo íngreme

Um chá de hortelã numa esplanada da Costa do Castelo pode salvar um fim-de-semana. Depois, descer as Escadinhas de São Crispim e descobrir lugares onde não nos importávamos de vir a morar, de ter passado infâncias a descer corrimões, a jogar um futebol íngreme. Descer com a bola perdida até à Baixa.

16 janeiro 2004

por entre a folhagem

O José Miguel Silva começou a publicar no Bloque de Esquerda textos em construção para as suas Observações Naturais. Está escrito com a inteligência de quem observa atentamente o mundo através da folhagem. Recomendo o acompanhamento da evolução desta espécie.

15 janeiro 2004

23h24, Boys Don't Cry, the Cure, 97.8 FM
Vítor, não te chateies. Sei que criámos este blogue para falarmos da gravidade da conjuntura internacional, do sentido da vida, do mal na filosofia ocidental, do mal nas nossas cidades, da hermenêutica e a mensagem do Presidente da República, de Locke, de Nietzsche, de Borges. Mas a Joana já adormeceu no sofá e o mundo anda pouco interessante. Talvez amanhã tenha opinião sobre alguma coisa.
Pelejão, provavelmente és um dos que estão no meio dos relâmpagos da Sala F. Ou de um dos lados da mesa de matrecos. Sei que nos tens visitado, deixado mensagens. Também temos visitado o teu blogue de granito. É muito bom. Quase tanto quanto A Prensa.

Early evening post

Devemos à conjunção de uma música e de um copo de vinho este estado de melancolia (eu e a Joana). É que deu há pouco na Radar uma música que costumava passar insistentemente nas festas da Sala F. Depois foi tudo muito rápido. Como atravessar um campo de relâmpagos, algumas memórias começaram a cair uma a uma. A D. Helena chamar a turma de GAP para a Sala de Geografia, na sua bela voz de dona de casa soprano. O Sr. Coelho a servir um copo de vinho tinto à Catarina, no balcão da recepção. O Sr.Coelho a chatear-se connosco por termos arrancado as alfaces que tinha plantado nos canteiros das flores. Óscar Soares Barata a dormir na minha oral de Demografia. O pátio e a Joana, numa noite de jazz, há quase nove anos.

Nem gostamos muito da música. Depois de The Smiths, Talking Heads e Cocteau Twins, começamos a ouvir os primeiros acordes de She Sells Sanctuary dos The Cult, e toda a Sala F começou a saltar à nossa frente, movida talvez pela electricidade estática dos relâmpagos.

14 janeiro 2004

O som e o sentido (e o ouvido do ministro)

O som das palavras enunciadas na mensagem que Jorge Sampaio enviou ontem à Assembleia da República, continha as críticas mais contundentes ao Governo alguma vez ouvidas de Belém. Com descaramento, o Governo disse, através de Marques Mendes, que partilhava das preocupações do Presidente, que atacou tão só toda a estratégia de Durão Barroso para combate ao défice - o alfa e o ómega da política deste Executivo. Neste caso, até parece que o sentido das palavras - de que fala o Tiago no post anterior - não estava contido no seu próprio som. Ou então é o ministro dos Assuntos Parlamentares que é surdo, porque, desta vez, o palavroso som do discurso de Sampaio, lido por Mota Amaral, foi de uma luz límpida como um espelho de água fesca. Não fosse a realidade tão escura...

O som e o sentido

Há palavras cujo sentido está contido no próprio som. Quando pronunciamos «fofo» não podemos deixar de imaginar que estamos a mastigar uma almofada, que podemos ter uma asfixia de algodão de a dissermos muitas vezes seguidas. Que outro adjectivo melhor pode qualificar o som que nos sai da boca quando dizemos «ríspido», do que o próprio. Os exemplos são infinitos, especialmente se limitarmos a análise ao universo particular dos adjectivos.

E o mundo seria muito mais simples se esta lógica se estendesse a outros domínios. Por exemplo, as doenças deveriam ter todas nomes de pronunciação desagradável, palavras funestas. Isto porque há doenças que, mesmo não sendo ovelha, não podemos deixar de alimentar a esperança de vir a contrair. Scrapie é um nome demasiado brando, de animal de estimação, para que lhe dêmos importância. Disseminam-se silenciosamente e só a escrita de textos sem sentido nos pode despertar a dúvida de já a termos contraído.

12 janeiro 2004

Crónica terrestre: a história de duas sondas marcianas

Duas super-potências marcianas enviaram duas sondas a um planeta azul, a que chamam Terra, para recolher as primeiras imagens dessa superfície misteriosa.

A primeira sonda, de um conjunto de nações marcianas que se uniram nesse dispendioso projecto, desapareceu estranhamente. Desde a aproximação ao solo, nunca mais foi possível comunicar com o aparelho: a nave foi abatida por baterias anti-aéreas quando sobrevoava o norte de Portugal. Habitantes viram pequenas bolas de fogo que os astrónomos disseram ser pedaços de asteróides. Houve quem filmasse o fenómeno e enviasse as imagens para as televisões.

Pelo contrário, a segunda sonda marciana, do país tecnologicamente mais avançado, está a enviar mensagens há vários dias para o Planeta Vermelho: uma estação espacial de russos e americanos desviou o dito objecto para o deserto do Saara, onde está farto de recolher imagens importantíssimas, assim como preciosas amostras de areias e minerais. A sua missão está a ser um sucesso. Dizem em Marte que outrora aquele deserto fora um mar.

Esses cientistas marcianos da nação mais rica, vivem um delírio nunca visto, e há quem sonhe colonizar o arenoso planeta terrestre daqui a 200 anos. Para o povo, a aridez da Terra desfaz sonhos alimentados anos a fio: autores de ficção barata andaram anos a vender livros que descreviam uma Terra de «infinitos oceanos azuis» e «densas florestas com árvores verdes habitadas por animais esvoaçantes de todas as cores», ou a imaginar «cidades de casas altas apontadas ao céu, amontoando milhões de seres estranhos, de pêlos na cabeça e uma protuberância abaixo dos dois pequenos olhos pestanudos».

A descoberta da Terra é um grande passo para a marcianidade, dizem os marcianos... Esperem quando virem passar o Paris-Dakar...

Segundo charuto

Os remorsos atingem-me rápido. Talvez esteja a ser injusto com JPC. Melhor, talvez a sua teoria se aplique também a outros filmes que nos últimos anos bateram recordes de bilheteira. Para provar o meu arrependimento vou ajudá-lo na sua tarefa:

. The Matrix - o retorno em grande força do idealismo absoluto, embora seja ainda demasiado cedo para se começar a notar o aumento de teses académicas sobre Parménides nas Faculdades de Ciências Humanas; quanto aos livros de Berkeley, não tive ainda tempo de ver se esgotaram nas prateleiras das livrarias.

. Titanic - o clássico problema do orgulho humano face ao poder da natureza, do homem tecnológico que se julga ser superior a Deus.

. American Pie - não vi, mas vou alugar; tenho esperança que me venha a revelar o rumo da cultura ocidental nos próximos séculos.

Como por vezes um charuto é apenas um charuto

Muitos eram os que aguardavam ansiosamente a primeira crónica de João Pereira Coutinho no Expresso. O terço final deixou-me um pouco pensativo. Não sei se é por ter trabalhado algum tempo com estatísticas, mas a tentativa de relacionamento espúrio entre duas variáveis deixa-me geralmente assim. Diz JPC que «a obra ficcional de Tolkien procede directamente da moralidade cristã – uma moralidade onde o Bem e o Mal se confrontam na sua ontológica objectividade» e que o sucesso de bilheteira do filme prova, consequentemente, que «o pós-modernismo está morto». Eu, que também acredito em valores morais objectivos (se bem que duvide que coincidam exactamente com os de JPC), tenho algumas dúvidas de que possamos tirar essa conclusão. Talvez as grandes cenas de batalha ou as orelhas pontiagudas das belas elfas tenham contribuído para o êxito do filme.

Segunda crónica marciana

Quando vi as imagens transmitidas da superfície fui reler algumas das histórias de um dos meus livros de ficção científica favoritos: as Crónicas Marcianas de Ray Bradbury. Não sei se deva ficar triste. Marte não tem lagos de água prateada nem «verdes canais de vinho» onde flutuam «barcos tão delicados como flores de bronze».
Marte é uma extensa planície de pedras, avermelhada. E com um pouco de paciência consigo imaginar os seus habitantes, se os houvesse, sentados num pedregulho a olharem as duas luas cheias com os seus olhos amarelos como uma pequena moeda.

Primeira crónica marciana

Não sei se isto daria um bom teste para a disposição conservadora ou progressiva, mas raramente acho que nasci tarde demais e muitas vezes, perante pequenos fenómenos, acredito que nasci demasiado cedo. Isto porque nos chegam agora as primeiras imagens nítidas da superfície de Marte e já tenho pena de não estar vivo na altura das primeiras colonizações do planeta. Confio que, com os avanços da ciência ao longo da minha vida, vou provavelmente ainda viver mais 150 anos, mas acho que não vai ser suficiente para ver as primeiras cidades marcianas a serem erguidas nas orlas das crateras transformadas em lagos.

1.

Confesso que tive alguma reticência em criar um blogue. Nos meses em que fui lendo os dos outros, enquanto me decidia, cada vez mais me parecia que constituíam um espaço de sinergia entre o onanismo e o voyerismo. Não que tenha nada contra qualquer destas duas actividades. Apenas me sinto desconfortável por ser eu o observado. O olhar é um princípio de opressão (acho que um dos franceses disse uma coisa parecida com esta) e eu gosto de passar pelas ruas mais movimentadas metaforicamente com as golas da gabardina para cima e a ponta do chapéu para baixo. Mas agora vou desapertar o botão do colarinho e fingir que tenho uma opinião sobre tudo.

11 janeiro 2004

In God they trust and mistrust

Numa sociedade tão avançada como a norte-americana, a religião tem um papel fundamental na eleição para a Casa Branca, explica hoje um artigo de Pedro Ribeiro no "Público".

"Se Dean for o candidato democrata, os republicanos vão sem dúvida tentar pintá-lo como um indivíduo secular que só começou a falar de religião com fins eleitoralistas", diz Amy Sullivan [uma especialista]. "Mas os democratas podem fazer o mesmo a George W. Bush; muitos não acreditam que [o Presidente] seja sinceramente religioso, acham que ele usa [Deus] como uma arma política", refere o artigo.

Na Europa, que passou por um processo de secularização que a América não conheceu, esta discussão seria estéril: Deus nada tem a ver com os assuntos de Estado. Só perante algumas franjas do eleitorado é que faria sentido meter o divino ao barulho e o divino só tem preponderância em algumas questões morais (como o aborto). A crença e a prática religiosa dizem respeito a cada um.

Mas há contradições: se as notas de dólar têm escrito "In God We Trust" - o que parece fazer-nos recuar ao século XVIII -, em França as jovens muçulmanas são impedidas de ir às aulas com a cabeça coberta, o que não seria um problema se os lenços estivessem na moda. É este o paradoxo: o peso da religião na América é excessivo, mas cada um pode exercer um credo com total liberdade; em França a religião ocupa o lugar que deve (os presidentes não são eleitos por irem à missa), mas os indivíduos podem estar impedidos de ocupar o lugar que devem na religião.

Espelho mau, espelho mau

Eram cinco e meia da tarde, ontem, quando subia o Chiado e me deparei com uma rapariga, frente à Brasileira, a pedir a assinatura para uma petição que defende um novo referendo ao aborto. Concordei, claro, estou do lado da causa, e até acho que somos todos, colectivamente, culpados pelo decorrer do julgamento das mulheres de Aveiro, por nem metade dos portugueses ter votado no anterior referendo.

Mas esta não é a questão.

Libertado pela activista, dirigi-me ao multibanco para um levantamento urgente, e eis que vejo Ana Gomes, do PS, ao lado de Francisco Louçã, Bloco de Esquerda, cada um a convidar o cidadão passeante para assinar a lista. Ana Gomes demonstra assim a coerência do seu estilo panfletário-estudantil, e prova desta maneira ser dos socialistas mais próximos do BE, o que também não é novidade.

Concorde-se ou não, abordar o povo fora de épocas eleitorais tem as suas virtudes. Os políticos deviam sair à rua nos fins-de-semana. Andar atrás das pessoas e arriscar que lhes virem as costas, ou depararem com a indiferença que vi Ana Gomes ser alvo, e a aceitar com dignidade.

Naquele largo onde costumam andar os artistas de rua, tinha a sua piada ver o dr. Ferro a explicar ao cidadão que passa cada uma das suas tão ocultas ideias (já que se dá tão mal com as câmaras de televisão); seria benéfico para a democracia ver a drª Manuela Ferreira Leite a esforçar-se por descodificar aos transeuntes a problemática do défice público e a necessidade da titularização dos créditos, já que no parlamento recusa discutir com deputados que não sejam economistas; ou assistir, ao lado de comuns prestidigitadores de rua, ao dr. Paulo Portas a convencer quem passa, do benefício do trabalho nas obras que esses ignominiosos imigrantes roubam...

Espelho mau, espelho mau...

09 janeiro 2004

Primeiro reflexo

O espelho é um objecto estranho. Por reflectir a realidade, e sobre ela, mas não ser a própria realidade, abre infinitas possibilidades de distorção. Por isso, neste blogue, teremos por vezes uma realidade convexa ou côncava. Basta dobrarmos ligeiramente a superfície, mais por motivos estéticos do que ideológicos. Não para distorcer a realidade, mas para construir outras representações dela. A sensação poderá ser, para quem lê, a de caminhar pelo meio das galerias de espelhos dos parques de diversões, onde nós e tudo o resto que as atravessa passa do grotesco ao ridículo com um passo, do semelhante ao desigual. Também gostamos do jogo de distorcer pessoas, devolvendo-lhes depois os rostos intactos.

Os espelhos têm ainda outra característica, que não escapa a todos que se debruçam sobre eles*: a profundidade. Se nos aproximarmos, parece que podemos cair para o outro lado. Neste blogue seremos seres intermédios entre Giordano Bruno e Alice: acreditamos na infinidade dos mundos e usamos os espelhos para entrar neles. No mundo da política, da sociedade, da cultura, da ciência. Entramos e tudo nos é estranho. Contamos o que vemos. Regressamos aparentemente iguais. Depois ardemos todas as noites nas fogueiras ateadas com as folhas escritas.

E espelhos somos nós também, porque reflectimos as realidades conforme a nossa superfície foi sendo talhada: não pronunciamos verdades absolutas, que não as temos, mas aquelas que o nosso espelho de água devolve aos que se miram em nós, como o lago que chorou a morte de Narciso porque se reflectia nos olhos do jovem enquanto ele admirava o seu próprio reflexo. É através de um falacioso espelho de feira - a maneira de cada um de nós ver o mundo -, que aqui projectamos a imagem que temos dele.

Sejam bem-vindos

Tiago Araújo/Vítor Hermes


*Como Umberto Eco (Sobre os Espelhos e Outros Ensaios ,Difel) ou Jorge Luis Borges (Obras Completas, Teorema).