... Estonianos, Letões, Lituanos, Polacos, Checos, Eslovacos, Húngaros, Eslovenos, Cipriotas, Malteses.
Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
30 abril 2004
27 abril 2004
O Clube Schopenhauer
Fui hoje a mais uma reunião do Clube Schopenhauer, na sala de espera do Centro de Saúde de Alcântara. Só queria uma receita de medicamentos para a alergia, mas tive de assistir primeiro ao encontro. É uma reunião clandestina e espontânea entre desconhecidos. As pessoas vão entrando e, enquanto esperam pela voz do médico, iniciam diálogos e monólogos pessimistas e niilistas. Sobre a velhice, a doença, a passagem do tempo, os filhos ingratos e as filhas mal casadas. Leio o livro que trouxe para a espera (A Viagem Vertical de Enrique Vila-Matas), fingindo não ouvir nada. É sobre um homem que, no fim da vida, inicia uma viagem forçada que o leva a questionar a existência. A minha médica (Luísa de Jesus, a mais atenciosa que já tive) anuncia o meu nome e, quando entro no consultório, o meu mal já não é físico mas metafísico. Ao sair, dói-me mais o universo que a cabeça.
25 abril 2004
Tiros de pétalas vermelhas
Imaginemos uma quantidade de militares a preparar um golpe de Estado. Imaginemos que descem à cidade, à capital e centro do poder, com as suas armas. Sim, porque eles vinham armados, e as armas matam, acima de tudo. Imaginemos que eles tinham a consciência de que poderiam ter de disparar as suas armas para tomar o poder. Ou imaginemos que os do poder faziam fogo com as armas que também tinham, e que os revoltosos ripostavam. Agora, imaginemos uma quantidade de militares a fazer um golpe de Estado com flores no cano das espingardas, que acima de tudo matam. Há uma beleza romântica no dia 25 de Abril, que vai acentuar-se com o passar dos anos. À hora que os militares saíram os quartéis não imaginavam que iam terminar o dia vivos, com flores vermelho-vivo a sair da boca das armas.
23 abril 2004
Sobre o optimismo antropológico do Tiago
O ser humano não é apenas uma massa biológica modável pela educação: esse foi um personagem de Rosseau. Com o desenvolvimento da genética e da neurologia, temos cada vez mais consciência de como somos determinados biologicamente. Em todas as raças, em todas as culturas e em todos os tempos, um homem foi sempre um homem: angústias, temores, alegrias, traições, bens e males, luta pelo poder, pela sobrevivência, pelo sexo. Se em geral evoluímos, foi porque melhorámos a sociedade através das ideias: a vida nas democracias, em geral, fez-nos em geral melhores pessoas, mas as leis e as regras servem exactamente para travar a nossa natureza (ia dizer maligna, mas seria ir longe demais) imperfeita. Não sou tão crente nessa evolução que defines como positiva: não creio que cada pessoa seja melhor do que cada pessoa que viveu há 200 ou 500 anos. A crueldade permanece bem vincada no mundo: por mais que a sociedade evolua, não transformará o homem. Todos os projectos de homem novo falharam e nem o melhor dos sistemas erradicará os males do universo. Acredito que podemos melhorar colectivamente, através de organizações mais justas, mas seremos sempre iguais a nós mesmos. Daí o meu pessimismo antropológico estar aliado a um certo optimismo sociológico moderado. Utopia a pensar nas organizações, porque a razão pode criar sistemas perfeitos, realismo a pensar na massa humana, porque o interesse da espécie reside na sua imperfeição.
22 abril 2004
Brown Bunny, Vincent Gallo
A cena é tão desnecessária como todas as outras: o lago de sal seco, o circuito de corridas, Violet, Lilly, Rose. No final, gostei retrospectivamente das paisagens de pára-brisas, da lentidão das sequências. Ganham sentido apenas retrospectivamente com a tristeza e o desespero de Bud. Três, quase quatro.
Sobre o pessimismo antropológico (a propósito de um comentário do Vítor)
O ser humano é uma massa biológica que desperta num tempo e num lugar que desconhece. Nos primeiros tempos de vida, não é capaz de fazer as escolhas conscientes que estão na base da moralidade. Não sei se o homem é naturalmente bom ou mau, deixo isso para a genética. Acho, simplesmente, que é maleável (embora não infinitamente) e que existem épocas, culturas, ordenamentos políticos, educações, etc., que contribuem mais para a sua benevolência ou malevolência. Ao longo da história, os homens têm dado exemplos de bondade e de malignidade. Se os últimos excedem os primeiros é uma questão estatística que não me sinto capaz de resolver (ainda para mais porque não toma em consideração as acções futuras). Sou um optimista antropológico, no sentido de achar que é possível tornar o homem melhor. E, apesar de não acreditar em nenhuma lei de progresso contínuo das sociedades (em nenhuma lei de progresso ou de decadência), acho que temos melhorado bastante nos últimos séculos.
21 abril 2004
O Radicalismo de Bakri e o Racionalismo na ponta da baioneta
É impressionante a entrevista de um alegado teórico da al-Qaeda na Europa, Omar Bakri Mohammed, a Paulo Moura, na Pública , no passado domingo. E impressiona não só pela maneira de pensar de um líder deste radicalismo islâmico: o que não falta por aí são fundamentalistas religiosos de todos os credos, completamente inofensivos. O que importa considerar é a fragilidade das democracias liberais. Estes mujahidin urbanos odeiam o nosso sistema exactamente por ser livre, odeiam portanto a liberdade e as leis feitas pelos homens - pois só reconhecem as leis de Deus -, e assim odeiam-nos a todos, acreditando que a nossa morte fará a felicidade Dele. Não estivesse já a teoria posta em prática, e isto far-nos-ia sorrir se fosse dito no dia 10 de Setembro de 2001.
Uma fragilidade das democracias liberais consiste em aceitar os inimigos no seu próprio seio. Mas esta tolerância relativa também pode ser a sua força em múltiplos aspectos. Omar Bakri dá entrevistas, participa em programas de televisão, vive em Londres. Sete alunos seus foram presos recentemente por suspeitas de estarem a preparar um atentado, enquanto ele prega a morte, mas vai cumprindo a lei britânca. Não atacará Inglaterra por ter um pacto de segurança com o país onde vive legalmente. Foi preso 16 vezes e libertado outras tantas. Lançou uma fatwa para matar John Major e continua a viver no Reino Unido. Qual o limite da tolerância democrática em relação a casos como este, que prega o islão como a religião do massacre?
Considerando este modo de pensar dos jihadistas, o proselitismo democrático como meio de combater o terrorismo pode ser uma falácia, mesmo que tivesse boas intenções genuínas. O problema do terrorismo não se resolverá militarmente, assim como não é com caçadeiras que se matam moscas. Nem com a democratização forçada do Médio Oriente. Enquanto uma revolução Iluminista não abalar o pensamento destes muçulmanos, dificilmente o jihadismo será travado. Nunca haverá democracias nos países onde Deus ainda manda nos assuntos públicos. Levaria uns anos, mas o racionalismo não se expandirá por aqueles desertos na ponta das baionetas.
Uma fragilidade das democracias liberais consiste em aceitar os inimigos no seu próprio seio. Mas esta tolerância relativa também pode ser a sua força em múltiplos aspectos. Omar Bakri dá entrevistas, participa em programas de televisão, vive em Londres. Sete alunos seus foram presos recentemente por suspeitas de estarem a preparar um atentado, enquanto ele prega a morte, mas vai cumprindo a lei britânca. Não atacará Inglaterra por ter um pacto de segurança com o país onde vive legalmente. Foi preso 16 vezes e libertado outras tantas. Lançou uma fatwa para matar John Major e continua a viver no Reino Unido. Qual o limite da tolerância democrática em relação a casos como este, que prega o islão como a religião do massacre?
Considerando este modo de pensar dos jihadistas, o proselitismo democrático como meio de combater o terrorismo pode ser uma falácia, mesmo que tivesse boas intenções genuínas. O problema do terrorismo não se resolverá militarmente, assim como não é com caçadeiras que se matam moscas. Nem com a democratização forçada do Médio Oriente. Enquanto uma revolução Iluminista não abalar o pensamento destes muçulmanos, dificilmente o jihadismo será travado. Nunca haverá democracias nos países onde Deus ainda manda nos assuntos públicos. Levaria uns anos, mas o racionalismo não se expandirá por aqueles desertos na ponta das baionetas.
20 abril 2004
Chopin no Túnel
O Tiago esclareceu-nos sobre um mistério antigo: ora o violinista do semáforo mais não será do que o célebre intérprete das sonatas de Chopin para violinos, a ensaiar áreas para os futuros concertos que vai dar por entre o condutores parados no Túnel do Marquês, sob o alto patrocínio do dr. Santana Lopes. O afadigado edil tem a noção das proporções, e como tal, encomendou um estudo que deu o seguinte resultado: a) os pianos prejudicam o tráfego automóvel; b) os pianos que deslizam em superfícies muito inclinadas chocam contra os automóveis; c) taxistas irritados só se comovem com o relato da bola; d) os violinos são mais leves.
19 abril 2004
Violinos no semáforo
É nestes pormenores que podemos aferir o grau de sofisticação e de progresso de uma sociedade. Vi um novo serviço a ser prestado nos semáforos. Depois da venda de pensos rápidos e da limpeza de pára-brisas, a música de violino. Com o semáforo no vermelho, um homem caminha por entre os automóveis a tocar violino, pedindo retribuição. Nem todos contribuem, mas já sabemos como o público do trânsito costuma ser exigente. As necessidades individuais evoluem com a afluência, e o que poderíamos julgar surrealismo é simplesmente Lisboa em dois mil e quatro: um homem a tocar violino no meio do trânsito. Talvez seja um retrato do país. Uma sociedade em que as pessoas têm cada vez mais qualificações e mais problemas financeiros.
Talvez para provar que todas as palavras são metáforas (como escreveu Borges), blogue deriva de weblog, que deriva de log-book, abreviado simplesmente para log. Log (tronco, toro) refere-se ao dispositivo flutuador que se arrastava atrás de um navio para calcular a sua velocidade e posição. Log-book seria então o livro onde se registava esses movimentos. Um diário de navegação, um diário de bordo. A metáfora parece não ter perdido a sua força e utilidade: dezanove de abril de dois mil e quatro, onze horas e quarenta e seis minutos, ando lentamente, em Alcântara.
18 abril 2004
16 abril 2004
The Dream of Reason. A History of Philosophy from the Greeks to the Renaissance, Anthony Gottlieb (Nova Iorque, W.W. Norton, 2001)
É um livro extraordinário para quem gosta de filosofia e de ciência, e de uma época em que as duas se confundiam. A análise condensa todos os mitos e histórias registados sobre cada um dos filósofos e reflecte sobre o que se conhece sobre os seus sistemas. No caso específico dos pré-socráticos, podemos perceber o quanto a ciência dependia (como ainda hoje) da imaginação e da observação. O conflito entre os elementos de Anaximandro, o mundo turbulento de Heraclito, a imobilidade do mundo de Parménides, poderão parecer-nos descrições demasiado imaginativas do funcionamento do universo. Mas não mais, por exemplo, do que um universo fechado sobre si próprio, finito mas sem limites, de Einstein.
O Atiçador de Wittgenstein, David Edmonds e John Eidinow (Temas e Debates, 2003)
A análise da realidade pode ser decomposta, para fins de simplificação. Um jantar entre duas pessoas, por exemplo. Podemos optar por estudar a complexa vida microscópica que se desenvolve em cima da mesa ou a própria estrutura física da mesa; a arquitectura do mobiliário; o estilo da gastronomia; o passado de cada uma das duas pessoas e do país onde tudo se desenrola; o significado do que dizem uma à outra; etc. O livro trata de um encontro entre Popper e Wittgenstein, numa conferência em Cambridge. E, se não fala da vida microscópica na sala da reunião do Clube de Ciência Moral, é bastante minucioso em praticamente tudo o resto. Mas, para mim, o seu maior problema será provavelmente o de transformar uma questão filosófica numa questão sociológica. É de leitura bastante agradável, enquanto estudo biográfico, mas submerge o encontro nas biografias. É como se tivéssemos a possibilidade de ler um relato sobre um jantar entre Platão e Aristóteles, Hobbes e Locke, Rawls e Hayek e o cronista descrevesse pormenorizadamente a refeição, das azeitonas à sobremesa, e apenas isso. Talvez a sociologia explique a animosidade entre os dois homens, mas esta é irrelevante para o problema filosófico de saber se existem genuínos problemas filosóficos.
Sobre a expressão «este não é o melhor dos mundos possíveis»
«Este não é o melhor dos mundos possíveis» é uma expressão optimista. A possibilidade de haver outro mundo, diferente, dependente das escolhas humanas, nega a crença realista e conservadora na inevitabilidade da desgraça. Mais pessimista seria: «vivemos no melhor dos mundos possíveis e é assim.» No caso do Iraque, o que mais me perturba é esta sensação de culpa por não ter solução para um problema que não criei. Às vezes temos de nos contentar com a escolha entre males menores, por mais que isso nos angustie. Ou ir assistir a concertos com sopranos, pianos e violoncelos.
15 abril 2004
Um dos piores mundos possíveis
Qualquer pessoa de bom senso devia subscrever o post do Tiago (uns quantos posts abaixo deste) sobre A Democracia e o Iraque. Concordo em pleno. A destituição e captura de Saddam valerão, moralmente, o número de mortos e estropiados que a guerra já causou? Uma democracia injectada à pressão será alguma vez uma democracia? O Iraque não é Portugal em 1974 e mesmo assim o país esteve por diversas vezes à beira de uma guerra civil. Se ali um líder político-religioso dissesse - matem-se os fascistas no campo pequeno! - eles acabavam lá mais do que mortos, esfolados. Como se está a ver com Moqtada al-Sadr.
Quanto às Nações Unidas, Tiago, tenho algumas reservas. Podem legitimar a ocupação com as resoluções que forem precisas, mas comandarem tropas combatentes no terreno, de peace enforcement, poderia ser igualmente um erro. Aquilo não é Timor, as Nações Unidas são odiadas no Iraque por causa do embargo (não são vistas como se fossem a Santa Casa), e a miscelânia de países que resultasse de uma força multinacional tornar-se-ia militarmente inoperante. Este não é de todo o melhor dos mundos possíveis.
Quanto às Nações Unidas, Tiago, tenho algumas reservas. Podem legitimar a ocupação com as resoluções que forem precisas, mas comandarem tropas combatentes no terreno, de peace enforcement, poderia ser igualmente um erro. Aquilo não é Timor, as Nações Unidas são odiadas no Iraque por causa do embargo (não são vistas como se fossem a Santa Casa), e a miscelânia de países que resultasse de uma força multinacional tornar-se-ia militarmente inoperante. Este não é de todo o melhor dos mundos possíveis.
14 abril 2004
Areia movediça
A actual e previsível situação no Iraque, para a qual tantos analistas avisaram vezes sem conta nos comentários antes da tomada de Bagdad, transporta consigo uma estranha pergunta: partindo do princípio que os membros da administração Bush não são completamente tontos, embora o pareçam, como é possível - com tantas informações à disposição -, que os falcões não tenham previsto a inevitabilidade do caos e da desordem entre a população xiita, sunita, ou curda? Assim, considerando que sabiam o atoleiro que os esperava, o que os motivou a desencadear uma guerra apenas positiva para empresas como a Halliburton e a Bechtel, no domínio da reconstrução, e para os empórios do armamento no domínio da Defesa?
Não creio que a decisão de fazer a guerra se baseasse apenas em 'wishful thinkings' embalados no messianismo democrático predestinado a dar a vitória aos 'bons', como nos filmes: votaram, e viveram felizes para sempre. O mundo é mais complicado do que isso, e os conservadores deviam ser os primeiros a sabê-lo.
Sem resposta a estas perguntas, resta uma certeza e uma suposição: é de supor que os eleitores norte-americanos vão sancionar Bush por ter criado um problema para o qual agora não tem solução; e é certo, ganhe Bush ou Kerry, que uma retirada precipitada do Iraque teria consequências muito mais nefastas do que teve a própria invasão. Este mundo não é mesmo o melhor dos mundos possíveis...
Não creio que a decisão de fazer a guerra se baseasse apenas em 'wishful thinkings' embalados no messianismo democrático predestinado a dar a vitória aos 'bons', como nos filmes: votaram, e viveram felizes para sempre. O mundo é mais complicado do que isso, e os conservadores deviam ser os primeiros a sabê-lo.
Sem resposta a estas perguntas, resta uma certeza e uma suposição: é de supor que os eleitores norte-americanos vão sancionar Bush por ter criado um problema para o qual agora não tem solução; e é certo, ganhe Bush ou Kerry, que uma retirada precipitada do Iraque teria consequências muito mais nefastas do que teve a própria invasão. Este mundo não é mesmo o melhor dos mundos possíveis...
Soprar borregos
Debaixo da oliveira da minha infância, ao fundo do quintal na casa dos meus avós paternos, em Ermidas-Sado, no Alentejo, tive uma visão pascal, ou melhor, uma re-visão pascal. Lembro-me bem. Eu era pequeno, quase do tamanho do borrego que o meu avô António levava pela mão até ao altar de imolação debaixo daquela oliveira sagrada. E mostrava-me como se fazia. Duas facas: o canivete pequenino, o mesmo dos petiscos, e uma faca média de matança - pois havia uma maior para matar os porcos (embora na família não houvesse indús, há muito que não se matavam vacas). Primeiro, o meu avô metia a faca no pescoço do bicho, por uma das carótidas, de onde jorrava o sangue que regava a árvore (se a natureza tivesse imaginação, aquela dava azeitonas de cabidela). O animal não se manifestava. Ia desfalecendo devagarinho, um cordeiro, como se diz. Depois punha a faca maior de lado, e abria o canivete. Fazia um buraquinho numa das mãos do falecido, entre a carne e a pele, e enfiava por lá uma cana de soprar borregos: é uma cana normal, fina e pequena, previamente preparada pelo matador, para isso mesmo. Soprar os borregos. E era isso que o avô fazia: prendia a cana com um cordel, e soprava por ali adentro (por vezes deixava-me experimentar) e o borrego começava a inchar como se fosse um balão, conforme a pele lãnzuda se separava da carne. Quando estava bem cheio, quase a levitar, pendurava-o na oliveira, por um gancho de arame, passava-lhe a faquinha pela pele insuflada e descascava-o num instante. Eu levava a pele para o casão, e houve vezes em que chegou a oferecer duas ou três ao meu irmão, para vender. Valeram 300 escudos cada uma no curtidor lá da terra. A partir daqui, o ritual começava a meter tripas e cacholas e para mim, perdia o interesse. Este fim-de-semana, o meu avô, que já não mata os borregos - agora é o meu tio, ou o meu pai -, esteve a mostrar-me a sua horta, debaixo da oliveira, ao fundo do quintal. Mas, à mesa, cortou a linguiça com a tal faquinha de esfolar os borregos, afiada, pontiaguda, a mesma dos petiscos. Tudo isto a propósito de uma pequena reportagem no Diário de Notícias, sobre a proibição de imolar borregos nas ruas das terras alentejanas, que na Páscoa enchiam os poiais de sangue escuro.
«A blindness that touches perfection, / But hurts just like anything else.»
Se pudessem ver a beleza de tudo o que não consigo descrever... Os Joy Division servem de banda sonora para a minha incapacidade de expressão («if you could just see the beauty, / These things I could never describe», Isolation). (A Joana não gosta da voz o Ian Curtis, acha que é má, como a minha. Talvez seja porque a tenho ouvido tanto desde os quinze anos, quando alguém me emprestou uma cassete com o Closer.) Oiço a música e não escrevo.
Talvez seja isto o progresso. Tenho notado, nos últimos anos, que em Salto, uma vila de Trás-os-Montes, o número de jornais disponíveis está a aumentar em proporção inversa ao número de vacas que passam junto à minha porta. Há três ou quatro anos, só se conseguia arranjar o Jornal de Notícias, se encomendado de véspera, e as manadas de vacas barrosãs passavam pontualmente duas vezes ao dia. No ano passado, abriu uma papelaria onde se podia comprar, sem aviso prévio, o Diário de Notícias e o Público, mas as vacas começaram a atrasar-se ou a saltar refeições. Fui este ano, pela primeira vez, passar lá a Páscoa (a minha avó fez 90 anos a 9 de Abril, Sexta-Feira Santa). Na porta da papelaria podia ver-se à distância o característico saco do Expresso, mas nem uma vaca passou junto à minha porta nos três dias que lá passei. Um conservador ficaria provavelmente perturbado por uma mudança tão rápida nos costumes e nas paisagens rurais (mas, por outro lado, um conservador gosta de ler o seu Expresso ao Sábado). Eu, limitei-me a comprar o jornal, a comer ao jantar bifes de vitela e a pensar nisso só o suficiente para escrever este texto.
Lá Fora, Fernando Lopes
Em diversas alturas do filme, ficamos com a ideia de que José Maria (Rogério Samora) está a ponderar o suicídio, mas não tão seriamente como eu a meio do diálogo de Laura (Alexandra Lencastre) com a sua psicoterapeuta. A única coisa que me impediu de tomar os comprimidos foi a curiosidade em saber o que era a encomenda do Jean-Luc.
12 abril 2004
Pintámos uma parede da nossa sala de azul. Uma parede com cor não serve qualquer propósito ou reflexão. Talvez inconscientemente quiséssemos prolongar o exterior para dentro de casa, rodando os planos. Se pintássemos a tecto, era uma metáfora. Assim, é um plano onde a luz que entra pela janela é absorvida. Apenas isso. Mas, não intencionalmente, alterou-se com isso a nossa percepção do espaço, como se caminhássemos agora perpendicularmente em relação ao hábito.
07 abril 2004
A Democracia e o Iraque
Acredito na universalidade da democracia; que não existe tempo e lugar específicos para ela. É conhecido que existem determinados factores que a favorecem, como a existência de uma classe média ampla e sólida, mas não há provas de que existam regiões, religiões ou povos incompatíveis com uma qualquer forma democrática de organização política. Logo, gostaria de ver a democracia estender-se a todos lugares do planeta. Mas existem princípios políticos perfeitos cuja invocação pode tornar-se perigosa. A autodeterminação e a democracia são, na política mundial, dois dos exemplos mais expressivos. A autodeterminação, aplicada como princípio universal, resultaria em caos e mortes num mundo com muitos mais grupos étnicos e linguísticos do que estados. Da mesma forma, a imposição da democracia pode ter custos proibitivos, para quem acreditar que a vida humana deve ser um fim e não um meio, que não se podem sacrificar vidas por um fim de resultado incerto. Especialmente para quem considerar, como eu, que as vidas de ocidentais e de cidadãos de outros lugares do mundo têm o mesmo valor. Os estados democráticos devem fomentar a democracia, mas devem adoptar regras de prudência quando acharem que a sua imposição possa ter resultados contraproducentes. No Iraque morreram hoje cerca de cento e oitenta pessoas e mais morrerão nos próximos tempos. (Claro que, no caso desse país, a questão nem se põe, pois esse não foi o argumento utilizado para a invasão, mas apenas uma atenuante para o desastre.) Agora, ainda do ponto de vista da perda de vidas humanas, a retirada imediata e incondicional das tropas estrangeiras do país seria outro erro, por muito que nos custe a nós, os que sempre estivemos contra a invasão. A única solução poderá agora ser procurar construir a legitimidade que os Estados Unidos perderam em volta das Nações Unidas.
No fim-de-semana estarei em Salto, Trás-os-Montes. A minha mãe já me telefonou a dizer que o carvalho que egoisticamente (trans)plantei no Verão, com 10 cm, sobreviveu (contra todas as probabilidades e conselhos). Egoisticamente, porque daqui a cinquenta anos já terá crescido demasiado e a geração seguinte terá de o cortar, para que as raízes não deitem as paredes da casa abaixo. Ou talvez não tanto, porque espero ser eu, um pouco mais velho, a cortar o carvalho ou a derrubar as paredes da casa, o que me parecer mais importante na altura. Até lá, a sombra.
Livro de Reclamações
Este blogue não é de serviço público, mas cada vez mais se parece com uma repartição pública. Atrasos, reclamações, a Joana sentada na sala de espera com uma senha na mão ou a marcar o livro, a minha mão lenta com o carimbo. Vão lendo as revistas, cruzando e descruzando as pernas, que o senhor doutor já está quase a chegar.
Recados (3)
Tiago BC, não te preocupes, era só para te mandar um abraço. E ao Rogério e à Susana. Para dizer-vos que gostei muito de vos conhecer, apesar do fracasso do projecto. E, já agora, para saber se as fotografias do Rogério e da Susana acabaram por ser reveladas, se ficaram boas. Podem servir de pósfácio. A história da montagem da peça teve uma carga dramática maior do que a própria história. Obrigado.
Mafalda, na sexta-feira não estarei em Lisboa, por isso: Parabéns! Este ano os teus convidados têm azar. Um aniversário comemorado na Sexta-Feira Santa é sempre muito triste, uns a comerem peixe cozido e a olharem para a picanha dos ateus do lado.
João, Fati, como está Paris nesta época do ano? Vamos passar a Páscoa a Salto. Pode ser que nos encontremos por lá.
Mafalda, na sexta-feira não estarei em Lisboa, por isso: Parabéns! Este ano os teus convidados têm azar. Um aniversário comemorado na Sexta-Feira Santa é sempre muito triste, uns a comerem peixe cozido e a olharem para a picanha dos ateus do lado.
João, Fati, como está Paris nesta época do ano? Vamos passar a Páscoa a Salto. Pode ser que nos encontremos por lá.
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