Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
31 julho 2005
Escala de Glasgow
Percebemos que o verão está a ser anormalmente seco quando um dos nossos cactos entra em coma e definha. Só não consigo avaliar a gravidade da situação porque é difícil tentar aplicar a Escala de Glasgow a uma planta. Embora já anteriormente parecesse estar em estado vegetativo, sempre atribui esse facto a uma personalidade introspectiva e a leituras de Schopenhauer nos tempos de juventude na estufa.
Voltando a Alfred Jarry, o escritor francês precursor dos surrealistas, diz-se que gostava de contrariar os costumes burgueses e por isso comia muitas vezes a refeição por ordem inversa, começando pela sobremesa, e usava uma camisa feita de papel onde desenhava uma gravata. Este último aspecto parece-me, nesta fase da vida, bastante interessante. A função social da gravata como alicerce da sociedade Ocidental ainda é algo que me custa a aceitar. Infelizmente, nunca tive jeito para o desenho.
Conta Arthur I. Miller (Einstein, Picasso. Space, Time and the Beauty that Causes Havoc) que, sob influência de Alfred Jarry, Pablo Picasso passou a usar um revólver Browning com cartuchos de pólvora seca, que disparava na direcção de admiradores que o inquiriam sobre o significado dos seus quadros, da sua teoria estética, ou de pessoas que simplesmente o aborreciam. O meu lado pacifista não gosta do conceito. O meu lado de animador cultural acha que faria maravilhas pelo Chiado.
«9 Songs», Michael Winterbottom
Há filmes que é desconfortável ver numa sala de cinema lotada. Especialmente se durante uma cena explícita de sexo oral temos de um lado um senhor de 50 anos com ar de quem se enganou no filme e do outro um casal que veio só pela música. A impressão geral é a de que algumas cenas foram filmadas apenas para chocar e de que há filmes pornográficos com enredo mais elaborado. As letras das canções contam a história que os actores estão demasiado ocupados para contar e há boas imagens da Antártida. No final, ficaram mais pessoas a ler os créditos finais do que é habitual.
29 julho 2005
Chuva na areia do deserto
Entre informação realmente importante, um artigo da revista Ler refere que existiu uma cidade no norte do Egipto devotada ao culto do falo do corpo desmembrado do deus Osíris, nunca encontrado por Ísis. Há muitas cidades antigas soterradas pela areia dos desertos e das praias, mas não conheço muitas com estas características. O Egipto tem Per-Medjed, Portugal tem Tróia e o falo perdido do Caniço.
(Também seria interessante saber se se faziam procissões no Antigo Egipto e quem é que carregava o andor, mas não me parece que o problema esteja entre as prioridades da comunidade arqueológica.)
(Também seria interessante saber se se faziam procissões no Antigo Egipto e quem é que carregava o andor, mas não me parece que o problema esteja entre as prioridades da comunidade arqueológica.)
28 julho 2005
Soares e Cavaco: uma história
O primeiro encontro político entre os dois homens correu mal: começou com um toque humorístico de gosto duvidoso e acabou num acesso de fúria de Mário Soares, que Cavaco Silva nunca esqueceu. No dia 24 de Maio de 1985, o professor recém-eleito líder do PSD, entrou na sede do PS, na Rua da Emenda, a desviar-se de vasos de flores e arbustos colocados estrategicamente para lhe dificultar a passagem. Era uma brincadeira dos socialistas, por Cavaco Silva ter dito aos jornalistas que aquela ia ser uma reunião de trabalho sobre o futuro da coligação PS/PSD, e não uma “cimeira de flores”. Apesar de ter ficado conhecida exactamente como a “cimeira das flores”, a reunião foi um passo para a queda do Governo do Bloco Central. Durante a conversa, em vez de usar da sua habitual bonomia, o secretário-geral socialista encolerizou-se, falou alto, perdeu as estribeiras… Claramente, Soares subestimou Cavaco, como voltou a fazer de outras vezes. Não se adivinha o futuro.
Mais tarde, no segundo livro das entrevistas a Maria João Avillez, Mário Soares chegou a reconhecer que foi “totalmente desagradável” para com Cavaco naquela reunião. “ A questão das flores foi apenas um simples toque de humor em resposta a uma alusão que Cavaco fez”, justificou Soares à jornalista. E descreveu-o: “Mas o professor, nessa altura, apresentava-se muito rígido e contraído – ao dar os primeiros passos na grande política e não aparentava grande sentido de humor”. Aliás, nunca o teve.
Mas não havia razões para rir, naquela época. E a conversa deve ter sido tão feia que o próprio Cavaco Silva recorda este episódio sempre que descreve os momentos de maior tensão vividos com Mário Soares ao longo dos 10 anos de coabitação. A propósito de um desentendimento ocorrido em 1991 – por causa dos acordos de paz para Angola -, Cavaco descreveu assim, no segundo volume da sua Autobiografia Política, outro ataque de cólera de Soares: “A minha argumentação de que deveria ser eu a fazê-lo [a presidir ao acto de assinatura dos acordos entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi], como chefe do Governo, não só não o convenceu como o irritou profundamente. Levantou a voz, zangadíssimo e ameaçador e quase não me deixou falar. Era uma táctica que utilizava quando queria impor os seus pontos de vista ao interlocutor, e que eu conhecera a primeira vez na célebre cimeira das flores (…). Descarregou sobre mim a sua fúria e voltou a avisar-me para ter cuidado”. De cada vez que Soares fazia uma cena, Cavaco punha “uma cara séria”. Respondia-lhe como diz ter feito da primeira vez que se desentenderam enquanto Presidente da República e primeiro-ministro. Nas suas memórias, Cavaco conta que mantinha a fleuma: “Delicadamente, mas com firmeza, disse-lhe que não valia a pena falar alto porque eu ouvia bem, que não era por isso que me convencia e que eu não saía dali sem lhe expor os meus argumentos”.
Soares e Cavaco tiveram 310 reuniões semanais a sós, habitualmente às cinco da tarde, no Palácio de Belém, durante 10 anos de convivência mais ou menos forçada. Portanto, os dois homens que devem confrontar-se em Janeiro conhecem-se bem, apesar das desconfianças mútuas. “Em geral, [Mário Soares] apresentava-se nas nossas reuniões com o ar afável e simpático que fazia e faz parte do seu estilo político”, conta Cavaco na Autobiografia. Antes de começar a expor os assuntos em agenda, o professor “observava o Presidente para tentar descortinar a sua boa ou má disposição”. Na entrevista a Maria João Avillez, Soares contradiz o ex-primeiro-ministro: “Nunca levantámos a voz”. E classifica as suas relações com Cavaco como “cordiais, embora talvez um pouco distantes e – digamos – impessoais”.
Andaram quase sempre de candeias às avessas. Sobretudo na segunda maioria absoluta do PSD (1991-1995). Soares fartou-se de vetar diplomas de Cavaco, sem o avisar previamente nas reuniões semanais; mas Cavaco também decidiu apoiar a recandidatura de Soares a Belém (em 1990/91) sem antes o informar; Soares abria as portas do Palácio de Belém a todos os críticos do Governo do PSD e promovia Presidências Abertas devastadoras para o Governo; e Cavaco incluía-o naquilo a que chamava “forças de bloqueio”; já no fim do cavaquismo, o Presidente chegou a ponderar a dissolução da maioria do PSD no Parlamento e a convocação eleições antecipadas, ao mesmo tempo que patrocinava o congresso "Portugal que Futuro!"; quase em simultâneo, o primeiro-ministro ironizava que era preciso ajudar Soares a acabar o mandato com dignidade.
Geralmente, em momentos de discórdia, o Presidente soltava umas ameaças veladas ao primeiro-ministro. “Olhe que a sua posição vai voltar-se contra si”, avisava. A desconfiança era mútua e durou uma década. É muito tempo.
A campanha das presidenciais promete.
Mais tarde, no segundo livro das entrevistas a Maria João Avillez, Mário Soares chegou a reconhecer que foi “totalmente desagradável” para com Cavaco naquela reunião. “ A questão das flores foi apenas um simples toque de humor em resposta a uma alusão que Cavaco fez”, justificou Soares à jornalista. E descreveu-o: “Mas o professor, nessa altura, apresentava-se muito rígido e contraído – ao dar os primeiros passos na grande política e não aparentava grande sentido de humor”. Aliás, nunca o teve.
Mas não havia razões para rir, naquela época. E a conversa deve ter sido tão feia que o próprio Cavaco Silva recorda este episódio sempre que descreve os momentos de maior tensão vividos com Mário Soares ao longo dos 10 anos de coabitação. A propósito de um desentendimento ocorrido em 1991 – por causa dos acordos de paz para Angola -, Cavaco descreveu assim, no segundo volume da sua Autobiografia Política, outro ataque de cólera de Soares: “A minha argumentação de que deveria ser eu a fazê-lo [a presidir ao acto de assinatura dos acordos entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi], como chefe do Governo, não só não o convenceu como o irritou profundamente. Levantou a voz, zangadíssimo e ameaçador e quase não me deixou falar. Era uma táctica que utilizava quando queria impor os seus pontos de vista ao interlocutor, e que eu conhecera a primeira vez na célebre cimeira das flores (…). Descarregou sobre mim a sua fúria e voltou a avisar-me para ter cuidado”. De cada vez que Soares fazia uma cena, Cavaco punha “uma cara séria”. Respondia-lhe como diz ter feito da primeira vez que se desentenderam enquanto Presidente da República e primeiro-ministro. Nas suas memórias, Cavaco conta que mantinha a fleuma: “Delicadamente, mas com firmeza, disse-lhe que não valia a pena falar alto porque eu ouvia bem, que não era por isso que me convencia e que eu não saía dali sem lhe expor os meus argumentos”.
Soares e Cavaco tiveram 310 reuniões semanais a sós, habitualmente às cinco da tarde, no Palácio de Belém, durante 10 anos de convivência mais ou menos forçada. Portanto, os dois homens que devem confrontar-se em Janeiro conhecem-se bem, apesar das desconfianças mútuas. “Em geral, [Mário Soares] apresentava-se nas nossas reuniões com o ar afável e simpático que fazia e faz parte do seu estilo político”, conta Cavaco na Autobiografia. Antes de começar a expor os assuntos em agenda, o professor “observava o Presidente para tentar descortinar a sua boa ou má disposição”. Na entrevista a Maria João Avillez, Soares contradiz o ex-primeiro-ministro: “Nunca levantámos a voz”. E classifica as suas relações com Cavaco como “cordiais, embora talvez um pouco distantes e – digamos – impessoais”.
Andaram quase sempre de candeias às avessas. Sobretudo na segunda maioria absoluta do PSD (1991-1995). Soares fartou-se de vetar diplomas de Cavaco, sem o avisar previamente nas reuniões semanais; mas Cavaco também decidiu apoiar a recandidatura de Soares a Belém (em 1990/91) sem antes o informar; Soares abria as portas do Palácio de Belém a todos os críticos do Governo do PSD e promovia Presidências Abertas devastadoras para o Governo; e Cavaco incluía-o naquilo a que chamava “forças de bloqueio”; já no fim do cavaquismo, o Presidente chegou a ponderar a dissolução da maioria do PSD no Parlamento e a convocação eleições antecipadas, ao mesmo tempo que patrocinava o congresso "Portugal que Futuro!"; quase em simultâneo, o primeiro-ministro ironizava que era preciso ajudar Soares a acabar o mandato com dignidade.
Geralmente, em momentos de discórdia, o Presidente soltava umas ameaças veladas ao primeiro-ministro. “Olhe que a sua posição vai voltar-se contra si”, avisava. A desconfiança era mútua e durou uma década. É muito tempo.
A campanha das presidenciais promete.
27 julho 2005
Como Deus dispõe deste laico...
Em 1997, Mário Soares deu a resposta que se segue a Maria João Avillez (no 3º volume das entrevistas - O Presidente), que lhe perguntou se ele tinha pensado em não recandidatar-se a um segundo mandato em Belém:
«Como o primeiro mandato correu francamente bem, pensava não ter qualquer interesse pessoal em renovar a experiência.
Depois, 10 anos é um longo período. Para o que pensava fazer depois de ser presidente com algumas legítimas ambições intelectuais que me falta concretizar e ainda outros projectos, considerava que abandonar a vida política com 66 anos era, para mim, o mais indicado, ficando com algum tempo para o que imagino ter ainda que fazer: escrever, reflectir, agir no plano cultural e cívico, sem responsabilidades político-partidárias ou de Governo; viajar, conviver com pessoas interessantes, transmitir experiência que adquiri em termos de poder ser comunicado aos outros. Mas o homem põe – como diz o Povo – e Deus dispõe…
Felizmente que a Constituição não permite um terceiro mandato – sábia disposição legal!»
(ver pág. 210)
Se a Constituição é tão sábia, haverá quem seja menos avisado...
«Como o primeiro mandato correu francamente bem, pensava não ter qualquer interesse pessoal em renovar a experiência.
Depois, 10 anos é um longo período. Para o que pensava fazer depois de ser presidente com algumas legítimas ambições intelectuais que me falta concretizar e ainda outros projectos, considerava que abandonar a vida política com 66 anos era, para mim, o mais indicado, ficando com algum tempo para o que imagino ter ainda que fazer: escrever, reflectir, agir no plano cultural e cívico, sem responsabilidades político-partidárias ou de Governo; viajar, conviver com pessoas interessantes, transmitir experiência que adquiri em termos de poder ser comunicado aos outros. Mas o homem põe – como diz o Povo – e Deus dispõe…
Felizmente que a Constituição não permite um terceiro mandato – sábia disposição legal!»
(ver pág. 210)
Se a Constituição é tão sábia, haverá quem seja menos avisado...
26 julho 2005
O engodo
Com esta conversa de Mário Soares à Presidência (MASP III), acabou-se a discussão sobre a demissão do ministro de Estado e das Finanças e sobre a crise em Portugal. Já tinham reparado, não?
25 julho 2005
A loucura do geronte
No mês seguinte [em Maio, Mário Soares] voltou à carga para garantir que apoiaria Alegre se ele fosse candidato e recusou a sua própria candidatura "Nem numa situação-limite." Soares explicou, há dois meses, que a sua candidatura "seria uma loucura" porque "a vida política tem de se renovar e não pode estar sempre ligada às mesmas pessoas". DN de hoje.
Nem mais.
Nem mais.
19 julho 2005
«[E]m tempos li muitos livros, hoje raramente leio. os livros cansaram-me, devoraram-me a pouco e pouco o prazer de ler.» Durante os últimos anos revi-me neste verso do Al Berto. Ou pelo menos na última parte, porque o ritmo de leitura não diminuiu, aumentou. Mas, lidos vários ao mesmo tempo ou com a urgência de não poder perder tempo a não ler, muitos sabiam apenas a papel. Não sei qual foi o livro que me curou ou se os livros são a cura para alguma coisa. Sei que uma vez restabelecido da minha moléstia aproveitei para ler alguns livros adiados. Nunca mais voltarei ao prazer das tardes de leitura no meu quarto suburbano ou das férias grandes transmontanas, mas estou bastante próximo. Para testar a minha condição decidi ler um livro que a generalidade dos meus amigos me aconselhou a não ler, A Sibila da Agustina Bessa Luís. Corri o risco de uma recaída em plena convalescença, mas cheguei à última página. Reconheço o génio, a densidade das personagens, o conhecimento da natureza humana e das relações humanas, a utilização ampla do vocabulário da língua. Mas não é o meu tipo de história.
Momento Raul Brandão
As manhãs da praia de Espinho, no Verão, parecem-se com as das corridas para reclamar terras do antigo Oeste. As pessoas vão chegando e reclamando a sua parcela de areia com os marcadores geométricos dos tapa-ventos. Criam quintais ou hortas provisórios com estacas que mantêm os panos grossos e coloridos esticados, preparados para o vento que não sopra. A paisagem parece uma versão pós-moderna do emparcelamento de terras transmontano de muros de pedra a separarem leiras verdes. A posse caduca com o dia.
Depois da sabática
Agora que já consigo fazer o nó da gravata em menos de cinco tentativas sobra-me finalmente tempo para escrever alguns textos. Mas não muito longos que ainda tenho de aprender a passar o vinco das calças.
O senhor dez por cento
Do alto do seu pobre vencimento, não tendo problemas em ficar sem aquela parte que lhe paga o clube de golfe, mais os serviços do caddy, o presidente do BPI, Fernando Ulrich, defende que os portugueses deviam aceitar prescindir de 10% dos seus salários. Isto é que é um incentivo, hã. Ganda homem, a apelar à coragem do povo e ao sacrifício pela nação. O sacrifício como ideal de vida. Terá lido Nietzsche? Valha-nos estes, que dão o exemplo... Olha: Toma!
18 julho 2005
Zero e absoluto
Six Feet Under terminou agora mesmo na 2:, com um morto a recomendar a um vivo aquilo de que devíamos lembrar-nos todas as manhãs ao olharmos a imagem devolvida no espelho: estás vivo, por isso tens toda a liberdade.
Entre o zero e o absoluto, há nada. Deste lado, onde tudo pode acontecer, convém que coisa alguma seja vista como uma fatalidade. O destino só existe quando resta o escuro, o silêncio e o apagamento eterno. De resto, até ao dia zero, todas as possiblidades são infinitas.
Entre o zero e o absoluto, há nada. Deste lado, onde tudo pode acontecer, convém que coisa alguma seja vista como uma fatalidade. O destino só existe quando resta o escuro, o silêncio e o apagamento eterno. De resto, até ao dia zero, todas as possiblidades são infinitas.
17 julho 2005
Cabriolices
Estes país está preso por arames. Quando em 2006 o crescimento das exportações e parte da economia estão dependentes do Cabrio, um novo modelo produzido na AutoEuropa, percebemos a fragilidade deste país liliputiano. O ICEP devia fazer um anúncio por todo o mundo, assim do género: Compre o Cabrio. Apanhar vento na moleirinha faz bem. Por tugal precisa de si!
16 julho 2005
Gentis e perigosos
"Ele era um homem realmente gentil, ensinava miúdos realmente mauzinhos e todos gostavam dele", disse uma das crianças de Hillside ao Guardian. Um dos pais, falando à BBC à porta da escola de Hillside, disse que Khan "era um bom homem". "Quando contei à minha filha que ele era um dos bombistas ela não acreditou. Tive de comprar um jornal e mostrar-lhe". in Público de sexta-feira, dia 15 de Julho. Depoimento sobre um dos bombistas londrinos
Já vi gente indignada com estas descrições sobre os terroristas, mas o problema não é novo. Ouvi um colega a argumentar que estes filhos da puta são filhos da puta sobre os quais todos se deviam recusar a fazer descrições simpáticas. Mas temo que as coisas sejam um pouco mais complicadas. Aqueles que praticam o mal contemporâneo, mesmo o mal mais profundo, não andam por aí como demónios, de chifres e cauda. Antes pelo contrário.
O livro Eichmann em Jerusalém, de Arendt coloca o mesmo problema, entre o mal e a malícia, embora no caso dos terroristas islâmicos a questão da intencionalidade seja bastante clara. Depois de analisado por um grupo de psicólogos e psiquiatras, Eichmann, um dos arquitectos das Solução Final, foi considerado absolutamete normal, assustadoramente normal, um pai de família comum. Isto é que é assustador.
Arendt entendia o tribunal se devia ter dirigido a Eichmann assim:
"Estamos apenas preocupados com o que você fez, e não com a possível natureza não criminosa da sua vida interior e dos seus motivos, ou com as potencialidades criminosas dos que o rodearam".
Há muito tempo que devíamos saber que homens gentis são capazes das maiores barbaridades.
Já vi gente indignada com estas descrições sobre os terroristas, mas o problema não é novo. Ouvi um colega a argumentar que estes filhos da puta são filhos da puta sobre os quais todos se deviam recusar a fazer descrições simpáticas. Mas temo que as coisas sejam um pouco mais complicadas. Aqueles que praticam o mal contemporâneo, mesmo o mal mais profundo, não andam por aí como demónios, de chifres e cauda. Antes pelo contrário.
O livro Eichmann em Jerusalém, de Arendt coloca o mesmo problema, entre o mal e a malícia, embora no caso dos terroristas islâmicos a questão da intencionalidade seja bastante clara. Depois de analisado por um grupo de psicólogos e psiquiatras, Eichmann, um dos arquitectos das Solução Final, foi considerado absolutamete normal, assustadoramente normal, um pai de família comum. Isto é que é assustador.
Arendt entendia o tribunal se devia ter dirigido a Eichmann assim:
"Estamos apenas preocupados com o que você fez, e não com a possível natureza não criminosa da sua vida interior e dos seus motivos, ou com as potencialidades criminosas dos que o rodearam".
Há muito tempo que devíamos saber que homens gentis são capazes das maiores barbaridades.
13 julho 2005
Terrorismo em Portugal
"Portugal contabiliza 479 militares mortos no Iraque só nos últimos seis meses"
ou
"Ataque terrorista provoca 479 mortos em Lisboa"
Imaginemos que um destes dois títulos fazia manchete nos jornais portugueses. Conseguimos imaginar as discussões que haviam de seguir-se, toda a barafunda de opiniões, análises, medidas do Governo, protestos e manifestações, emissões em directo, emissões especiais, a nossa vida quotidiana em suspenso...
A citação que se segue é a verdadeira:
"Entre 1 de janeiro e 12 de Julho de 2005, morreram nas estradas portuguesas 479 pessoas".
A frase faz parte de um texto notável do Hugo Gonçalves na revista Atlântico, com o título "Relatório de um acidente", onde uma mãe fala de um filho que morreu num acidente de automóvel. Li o texto ontem, e consternou-me.
Hoje, a minha consternação disparou. O meu pai telefonou-me e deu-me a noticía. A noite passada, em Grândola, mais um acidente, choque frontal, três mortos, dois feridos, um deles grave. Eu conhecia-os a todos. Tanto ao bêbado que saiu fora de mão, como aos outros que iam sossegadamente na sua viagem. São mais três, a juntar a todos os casos que testemunhei, todos em Grândola, os da minha família, os meus amigos, os meus conhecidos...
Este terrorismo silencioso devia revoltar-nos. Mas nada acontece. Esta vergonha devia pesar na consciência da nação, como se todas as catástrofes que sobre nós se abatem fossem culpa nossa enquanto não resolvêssemos esta doença civilizacional.
Este terrorismo negligente explode todos os dias. Nenhum Governo teve a coragem de impor o grau zero de alcoolémia ao volante. Em 2001, Guterres quis baixar o limite de 0,5 e recuou, na mais clara demonstração de fraqueza de um Governo. Uma infâmia. Vende-se álcool nas bombas de gasolina. Tudo se tolera. A morte tolera-se. Em Portugal, quando se circula devagar é por medo da multa, não por medo da morte. Pode-se apoiar a invasão do Iraque, tomar medidas anti-terroristas, dar meios aos serviços de informações, falar até a exaustão sobre isto tudo, os pobres nos países pobres revoltados contra os ricos nos países ricos, mas fecha-se os olhos ao que se passa debaixo do nosso nariz.
É estranho. O combate à sinistralidade devia estar à frente da luta contra o défice. Nem deputados nem Governos assumem esta bandeira. Por quê?
Só mais esta frase da Atlântico: "Segundo um estudo da Universidade Nova de Lisboa, mais de metade dos condenados por homicídio por negligência, em casos de desastres de automóvel, continuam a conduzir. Em 2001, 51 por cento dos crimes contra a vida humana forma cometidos em acidentes de viação".
Os bárbaros acham sempre que são civilizados.
12 julho 2005
Mais uma resposta provável
"[Gijs] de Vries [o senhor terrorismo da UE] não é responsável por uma CIA europeia, não tem agentes no terreno. Antes cumpre o papel de observador atento às ameaçs terroristas que pesam sobre a Europa. (...)
A UE carece, de facto, de uma agência de segurança europeia credível, dotada de um corpo de análise e de operações. E porquê? Porque a União é, hoje, uma área política e economicamente integrada. O espaço Schengen permite que os cidadãos viajem sem passaporte e as deslocações para zonas da UE exteriores a Schengen foram, igualmente simplificadas. Aliás, seria absurdo implementar padrões de segurança ou sistemas nacionais distintos para proteger as fronteiras externas da UE."
Excerto de um texto de Wolfgang Munchau, colunista do Financial Times, publicado hoje no Diário Económico.
A UE carece, de facto, de uma agência de segurança europeia credível, dotada de um corpo de análise e de operações. E porquê? Porque a União é, hoje, uma área política e economicamente integrada. O espaço Schengen permite que os cidadãos viajem sem passaporte e as deslocações para zonas da UE exteriores a Schengen foram, igualmente simplificadas. Aliás, seria absurdo implementar padrões de segurança ou sistemas nacionais distintos para proteger as fronteiras externas da UE."
Excerto de um texto de Wolfgang Munchau, colunista do Financial Times, publicado hoje no Diário Económico.
11 julho 2005
Outras respostas possíveis
O Público de domingo publicou um artigo de Timothy Garton Ash sobre os atentados. Tem mais algumas repostas interessantes.
«Isto não significa que a minha resposta a estas atrocidades seja passiva. Mas a resposta correcta não está - como os comentadores da estação televisiva americana Fox News querem fazer crer - em duplicar os ataques militares para fazer desaparecer "o inimigo" no Iraque ou noutro país qualquer. A resposta está num policiamento especializado e numa política inteligente. Recusando calmamente a metáfora melodramática da guerra, a Polícia Metropolitana de Londres descreveu os locais do metro e autocarro que sofreram os ataques bombistas como "cenas do crime". (...)
Um acordo de paz entre Israel e a Palestina removeria outro grande centro de recrutamento de terroristas islâmicos. E, é claro, unir esforços com vista à modernização, liberalização e eventual democratização do grande Médio Oriente é a única forma certa e duradoura de drenar o pântano onde se reproduzem os mosquitos terroristas. Neste campo, é mais a Europa do que os EUA que precisa de abrir os olhos, urgentemente, para a necessidade de tomar mais medidas. Hoje em dia, os acontecimentos que ocorrem lá longe, em Cartum ou Kandahar, têm um impacto directo sobre nós - por vezes fatalmente, enquanto nos dirigimos para o trabalho, sentados numa carruagem do metropolitano entre as estações de King Cross e Russel Square. Deixou de haver política externa. Talvez seja esta a lição mais profunda a retirar do ataque terrorista de Londres.»
«Isto não significa que a minha resposta a estas atrocidades seja passiva. Mas a resposta correcta não está - como os comentadores da estação televisiva americana Fox News querem fazer crer - em duplicar os ataques militares para fazer desaparecer "o inimigo" no Iraque ou noutro país qualquer. A resposta está num policiamento especializado e numa política inteligente. Recusando calmamente a metáfora melodramática da guerra, a Polícia Metropolitana de Londres descreveu os locais do metro e autocarro que sofreram os ataques bombistas como "cenas do crime". (...)
Um acordo de paz entre Israel e a Palestina removeria outro grande centro de recrutamento de terroristas islâmicos. E, é claro, unir esforços com vista à modernização, liberalização e eventual democratização do grande Médio Oriente é a única forma certa e duradoura de drenar o pântano onde se reproduzem os mosquitos terroristas. Neste campo, é mais a Europa do que os EUA que precisa de abrir os olhos, urgentemente, para a necessidade de tomar mais medidas. Hoje em dia, os acontecimentos que ocorrem lá longe, em Cartum ou Kandahar, têm um impacto directo sobre nós - por vezes fatalmente, enquanto nos dirigimos para o trabalho, sentados numa carruagem do metropolitano entre as estações de King Cross e Russel Square. Deixou de haver política externa. Talvez seja esta a lição mais profunda a retirar do ataque terrorista de Londres.»
08 julho 2005
Uma resposta possível
"Transformar as condições sob as quais o Islão na Europa é alimentado e mantido abre a possibilidade a que uma nova geração de pensadores muçulmanos possa emergir - homens e mulheres com uma perspectiva universal, livres do apertado autoritarismo e da corrupção, emancipados da subserviência em relação aos seus governantes e da raiva da revolta que promove a jihad, a ausência de comunicação e a violência. A ideia de que os muçulmanos europeus tanto podem transcender a jihad como a fitna não agrada nem aos activistas radicais, nem salafistas nem islamistas - mesmo que os islamistas, uma vez que são actores na arena política europeia, encontrem espaço nos seus princípios rígidos para ceder aos compromissos da democracia. (...)
É imperativo trabalhar no sentido de proporcionar uma completa participação democrática aos jovens de educação muçulmana através das instituições (...), que encoragem a mobilidade social no sentido ascendente e o aparecimento de novas elites"
The War for Muslim Minds, 2004, de Gilles Kepel - professor da cadeira de Estudos sobre o Médio Oriente no Instituto de Estudos Políticos em Paris, um do mais respeitados especialistas em islamismo, autor de outro livro conhecido, Jihad
É imperativo trabalhar no sentido de proporcionar uma completa participação democrática aos jovens de educação muçulmana através das instituições (...), que encoragem a mobilidade social no sentido ascendente e o aparecimento de novas elites"
The War for Muslim Minds, 2004, de Gilles Kepel - professor da cadeira de Estudos sobre o Médio Oriente no Instituto de Estudos Políticos em Paris, um do mais respeitados especialistas em islamismo, autor de outro livro conhecido, Jihad
07 julho 2005
Bloody thursday
Soluções fáceis para um problema tão complexo só o tornam mais difícil de resolver.
Nem as explicações preguiçosas de Soares nem o voluntarismo arriscado de Bush.
A resignação também não nos aproveita.
O que fazer quando o mundo à nossa volta está à beira de entrar em disrupção? - e isso pode acontecer a cada segundo que passa, em qualquer momento podemos morrer num terramoto.
O que fazer quando, a qualquer hora, o nosso pequeno universo, na nossa cidade, pode entrar em colapso num atentado terrorista, tão acidental na maneira como distribui os estragos quanto um desastre natural?
A primeira resposta é viver naturalmente antes. E procurar viver naturalmente depois.
A nossa presumida liberdade e o nosso estilo de vida não podem ser afectados, porque é esse o objectivo de quem nos inocula o medo - medo aos cidadãos, medo injectado nos político porque eles são obrigados a encontrar respostas, mesmo quando não as há.
O desencadear de respostas violentas que justifiquem mais violência é outro fim de organizações como a Al-Qaeda. A invasão do Iraque (não a do Afeganistão) foi um favor aos terroristas islâmicos.
Mas, se não podemos resignar-nos, qual é a forma de agir contra inimigos sem rosto, sem território, sem programa ideológico (e lógico)? As nossas sociedades estão habituadas a ver razões por detrás das acções dos outros. Mas a ausência de racionalismo da parte do inimigo é outra coisa que nos mata. Mata-nos o raciocínio.
O que aconteceu hoje em Londres há-de repetir-se noutro lugar. É uma guerra fácil, minimalista. Com poucos meios produz-se um efeito máximo: a América protegeu-se 40 anos dos mísseis soviéticos e sofreu o maior revés da sua história em território continental por causa de uma dúzia de homens de canivetes. Ironia assassina.
Este mal só é banal por se parecer com a acção dos vilões dos livros de comics. É o mal na sua mais tradicional fórmula malévola: semear destruição sem colher benefícios. Uma equação de onde não resulta qualquer bem para nenhuma das partes.
No dia em que estas coisas acontecem não há respostas. Só perguntas. Dúvidas. As respostas começam a nascer no dia seguinte.
Nem as explicações preguiçosas de Soares nem o voluntarismo arriscado de Bush.
A resignação também não nos aproveita.
O que fazer quando o mundo à nossa volta está à beira de entrar em disrupção? - e isso pode acontecer a cada segundo que passa, em qualquer momento podemos morrer num terramoto.
O que fazer quando, a qualquer hora, o nosso pequeno universo, na nossa cidade, pode entrar em colapso num atentado terrorista, tão acidental na maneira como distribui os estragos quanto um desastre natural?
A primeira resposta é viver naturalmente antes. E procurar viver naturalmente depois.
A nossa presumida liberdade e o nosso estilo de vida não podem ser afectados, porque é esse o objectivo de quem nos inocula o medo - medo aos cidadãos, medo injectado nos político porque eles são obrigados a encontrar respostas, mesmo quando não as há.
O desencadear de respostas violentas que justifiquem mais violência é outro fim de organizações como a Al-Qaeda. A invasão do Iraque (não a do Afeganistão) foi um favor aos terroristas islâmicos.
Mas, se não podemos resignar-nos, qual é a forma de agir contra inimigos sem rosto, sem território, sem programa ideológico (e lógico)? As nossas sociedades estão habituadas a ver razões por detrás das acções dos outros. Mas a ausência de racionalismo da parte do inimigo é outra coisa que nos mata. Mata-nos o raciocínio.
O que aconteceu hoje em Londres há-de repetir-se noutro lugar. É uma guerra fácil, minimalista. Com poucos meios produz-se um efeito máximo: a América protegeu-se 40 anos dos mísseis soviéticos e sofreu o maior revés da sua história em território continental por causa de uma dúzia de homens de canivetes. Ironia assassina.
Este mal só é banal por se parecer com a acção dos vilões dos livros de comics. É o mal na sua mais tradicional fórmula malévola: semear destruição sem colher benefícios. Uma equação de onde não resulta qualquer bem para nenhuma das partes.
No dia em que estas coisas acontecem não há respostas. Só perguntas. Dúvidas. As respostas começam a nascer no dia seguinte.
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