29 março 2005

A vida antes do telecomando: «Ontem, à noite, por tédio, lavei três vezes as mãos na casa de banho.» Franz Kafka, Diário, 23 de Maio de 1912.
Nota: ler este post implica ter lido o anterior.

Pelo contrário, tendo eu crescido num Alentejo meio urbano meio rural, em Grândola, este fim-de-semana de Páscoa deparei com realidades absolutamente distantes da minha adoptiva e ruidosa rua do Arsenal. Devia achar tudo aquilo normal, mas a vida transformou-me num produto da cidade, por isso reagi com espanto e alguma nostalgia. E fingi que era tudo normal: na quinta-feira santa o meu pai matou quinze borregos no monte de um amigo que não tem coragem de chacinar a sua própria criação; na sexta-feira passou a manhã a desmanchar dois borregos dependurados no alpendre do nosso quintal (um deles que o amigo ofereceu); comemos os ditos cujos com prazer em grelhadas e ensopados; no sábado, o meu avô olhou para as suas alfaces, favas, ervilhas, e disse que se não caíssem umas gotas agora era nunca mais, e seria uma desgraça de seca; enquanto isso, eu, o meu irmão e a minha cunhada deitávamo-nos a adivinhar o nome das culturas quintaleiras do meu avô e não descobrimos todas...

Entretanto, a minha avó recebeu a chamada telefónica de um técnico do INGA, Ministério da Agricultura, que estava lá na aldeia, Ermidas-Sado, para recolher uma ovelha morta do rebanho do meu tio (é assim qe agora as coisas são: as ovelhas mortas vão para analisar, cada uma tem um número na orelha, só falta o obituário no jornal do agricultor). Como ouve mal, despachou o homem, dizendo que o meu avô também era surdo e não ouvia ao telefone. Teve de ser o meu pai, que por acaso estava lá em visita Pascal, a ir com o indivíduo às malhadas das ovelhas e recolher o corpo da defunda. Tudo isto me faz pensar como estamos tão longe da vida real da maior parte das pessoas do país, e esta é a minha família mais próxima... fossem só os ventos de Espinho...

28 março 2005

Tendo crescido num lugar suburbano onde os ventos são aleatórios e não têm significado, encaro os fins-de-semana em Espinho como um sinal de que a vida pode ter mais certezas. O vento sopra geralmente de norte, a famosa nortada, o vento sul puxa chuva, o de leste traz frio, o de oeste vem do mar e é provável que traga humidade. Nos dias úteis organizo os dias pelo relógio, em alguns fins-de-semana pela rosa-dos-ventos.

24 março 2005

A infância é uma rua que tende a ficar desabitada. A minha perdeu hoje mais um habitante, o Sr. António, tio do Paulo, que marcou toda a geração que cresceu na Rua de São Pedro (no Algueirão) entre o final da década de setenta e a de oitenta. Cresceu na zona oriental de Lisboa e a família contava que na juventude tinha sido um grande nadador, no Tejo. Nós só já o conhecemos com um pulmão e um corpo seco e curtido que o fazia parecer um velho marinheiro afastado do mar, bem-disposto e com um gosto particular por vinho tinto. No Carnaval punha um balde de água à porta da loja onde trabalhava para nós podermos encher as bisnagas. Obrigado.
No último capítulo da Teoria do Céu, Immanuel Kant escreve sobre a possibilidade de vida extraterrestre e a ingenuidade dos que pensam que o nosso planeta é o único habitado ou habitável. Claro que, escrevendo no século XVIII, as divagações incidiam sobre os únicos planetas conhecidos, os do sistema solar. Desde então, os nossos instrumentos ainda não descobriram vida extraterrestre, mas já detectaram planetas extra-solares. De forma indirecta, mais de cem, de forma directa, os primeiros dois. A notícia desta descoberta faz-me compreender melhor o sentimento dos habitantes originais da ilha da Páscoa. Viviam no isolamento da sua ilha do Pacífico Sul e, certamente esquecidos das suas origens remotas, achavam que eram os únicos seres do universo até serem visitados por navegadores holandeses no dia de Páscoa de 1722.

22 março 2005

O New Labour e a crise da direita

A direita está orfã de pai e mãe: o PSD foi quase destruído por Santana Lopes e ninguém quer liderar o CDS. Tendo em conta a geometria política do programa do Governo feito ao centro, se José Sócrates não cometer erros de maior, tem aqui a oportunidade de fazer como Tony Blair no Reino Unido: governar ao centro, apanhar as franjas eleitorais do centro-direita e secar as direitas parlamentares. O novo socialismo vai fazer o seu curso com a eficácia que António Guterres não teve...

Complexo de Édipo

"O que nos interessa não é o trajecto mas a substância das posições do ministro dos Negócios Estrangeiros", disse ontem, no Parlamento, Paulo Portas (citado no DN pelo Martim Silva). O que interessa aqui é estudar a coisa edipiana do filho a matar o pai. A bancada do CDS não atacou os ex-comunistas que estão no Governo, como Mário Lino ou Isabel Pires de Lima, mas sim o fundador do partido, Freitas do Amaral. Percebe-se. Mas nenhuma das partes pode defender-se com a coerência absoluta das suas posições ao longo do tempo.

18 março 2005

Ilíada

Esta manhã, a montra da editora Cotovia, na Rua Nova da Trindade, já expunha a Ilíada, de Homero traduzida por Frederico Lourenço. A minha próxima compra de urgência está determinada por aquela capa avermelhada.

17 março 2005

Neocons export

Wolfowitz deverá encabeçar o Banco Mundial. Bolton é o embaixador norte-americano nas Nações Unidas. Os neoconservadores alongam o seu braço. O mundo não vai ficar mais bonito, não senhor...

Aguarela

Pelas sete e meia da manhã, no miradouro de Santa Luzia, Alfama, havia hoje uma garrafa de litro de cerveja e copos de plástico vazios. Nas ruas do Castelo, mais silêncios do que fados, que a alvorada é de ressacas. Gente a dormir em casas com canários enjaulados à janela e roupa a secar em frente da porta. Lisboa amanhece com sol de frente na hora em que os noctívagos se desfazem em poeira.

Revista de imprensa

Espírito Santo ajuda Augusto Pinochet. Pai e Filho negam o seu próprio envolvimento, confirmam que o assunto causou alguma incomodidade no seio da Santíssima Trindade mas afastam rumores de uma possível dissolução.

16 março 2005

Silêncios

Temos um Governo novo e fresquinho, mas é Santana Lopes, mesmo caladinho, que continua a atrair as atenções. Até no silêncio Sócrates e Santana são tão diferentes. O regresso do segundo à câmara de Lisboa é um caso paradigmático de silêncio ensurdecedor. O silêncio (e o desaparecimento público) de Sócrates e a lei da rolha que impôs ao Executivo vai começar a pagar-se nos jornais dentro de algum tempo, assim que passar o estado de gracinha.

14 março 2005

O quietista agitado

Sim, talvez um certo quietismo ajudasse a explicar por que razão Pedro Santana Lopes nada tenha dito hoje sobre o seu futuro na câmara de Lisboa. Quieto e silencioso (pela primeira vez em meses), mesmo assim Santana conseguiu o efeito de uma tempestade. É um Midas ao contrário: em tudo o que toca, mesmo quieto, sem falar, lança a maior das confusões. Que pensará dele hoje Carmona Rodrigues, seu amigo de liceu, que aceitou ser zigue de cada vez que o Pedro fazia um zague?
O quietismo foi um movimento místico religioso do século XVII inspirado pelo pensamento de Miguel de Molinos, um teólogo espanhol que defendia que a perfeição da alma humana e a sua salvação estavam totalmente dependentes da vontade divina, à qual o homem deveria abandonar-se passivamente. Os indivíduos deveriam dedicar a sua existência à contemplação passiva do mundo e à indiferença absoluta. É com alguma nostalgia que, numa segunda-feira, constato o desaparecimento prematuro de uma seita religiosa que poderia proporcionar uma justificação moral para a preguiça.

10 março 2005

Eu sou o outro

"Marques Mendes aponta para um candidato, que se chama Aníbal Cavaco Silva, não o diz mas percebe-se. Menezes já aponta outro candidato, que se chama Marcelo Rebelo de Sousa. Ora comparando (...) Aníbal Cavaco Silva com Marcelo Rebelo de Sousa, em termos de perfil de Presidente e ocupação ao centro, Cavaco Silva tem muitas vezes vantagem sobre Marcelo Rebelo de Sousa".

Ora quem disse isto, quem foi?
Parecia Jardel a dizer que Jardel esteve muito bem. Foi Marcelo Rebelo de Sousa, na RTP (a parte onde estão as reticências, foi quando ele disse "eu sou suspeito", pois é). Ora o auge do comentador, o apogeu glorioso é quando ele se comenta a si mesmo como se comentasse um outro. É muito engraçado. É como olhar para um espelho que reflecte noutro espelho a nossa imagem, de modo que parece que somos outro e não nós. Bem, a discussão sobre Marcelo vem de trás. Mas eu, que não consigo deixar de me deliciar a ouvir o professor, sempre achei que quem é actor não devia ser comentador. Depois acontecem estas coisas bizarras... Ou não é?

Coisas relativas: os crocodilos comem as pessoas

Os crocodilos comem as pessoas, é um facto. Por isso, a fototografia, no canto inferior esquerdo da página 46 do Público é irónica. Oito homens metem um lagarto gigante, de cinco metros de comprimento, em cima de uma carrinha. Vai preso, será talvez julgado, ou abatido, ou posto em exposição, porque ao longo de 60 anos comeu 83 pessoas, pelo menos. Não fosse no Uganda, a notícia teria razão de ser. Os homens matam outros homens, é um facto, igualmente insofismável. Mas nem sempre depois os comem, o que, em abono da verdade, será indiferente ao morto. A ironia é esta: quantos homens que mataram mais de 83 homens, nas guerras dos últimos anos que assolaram aquela região de África, estão presos e tiveram o mesmo destino daquele réptil? Sim, este é um pequeno relativismo do olhar ocidental...

08 março 2005

Hoje um cego entrou na biblioteca. É natural que qualquer boa biblioteca académica tenha alguns livros em braille mas, ainda assim, a imagem de um cego a vaguear pelos corredores de uma biblioteca é demasiado literária para ceder à lógica da explicação mais plausível. A entrada do estudante fez-me lembrar Jorge Luis Borges que, já cego, foi director da Biblioteca Nacional de Buenos Aires («Falo da esplêndida ironia de Deus em conceder-me a um só tempo oitocentos mil livros e a escuridão.») e um episódio de Twilight Zone em que um homem que adora livros é o único sobrevivente de um holocausto nuclear e tem finalmente todo o tempo do seu mundo para ler, mas acaba por partir os óculos.

In your dreams...

Para a Carla e o Vítor

Acho que Wittgenstein nunca escreveu (não li a obra toda) sobre os sonhos dos bebés e a possibilidade de um pensamento sem palavras. Julgo que diria (o Wittgenstein do Tractatus, pelo menos) que aqueles se encontram para lá da linha da fronteira da expressão do pensamento e sobre isso deveríamos guardar silêncio. Os sonhos são uma reorganização das memórias e por isso os dos bebés devem ser repetitivos e limitados, o que só torna mais estranho o facto de sorrirem durante o sono. Devem sonhar simplesmente por imagens: de biberões, do peito da mãe, dos padrões de cores das mantas que os cobrem. Interessante também é o facto de, aparentemente, as crianças sonharem ainda na barriga da mãe. Suponho que sonhos escuros, de líquido amniótico e vozes humanas longínquas. Mas sobre isso seguem o conselho de Wittgenstein, guardam silêncio.

07 março 2005

O facto de ser homem nunca me tinha colocado na posição de espectador externo da minha própria vida. Quando, num dia luminoso, a máquina me ofereceu a imagem do pequeno ser de 12 semanas a chuchar no dedo, dentro da barriga da Carla, percebi isso. O corpo da mulher confunde-se primeiro com o do filho. O homem tem de esperar. Mas não pela alegria de ouvir aquele coração bater tão depressa. De perceber que dali virá aquela pessoa. Um mistério de uma vida. Um eu cujo maior erro é pensar que será nosso. Tão filho que ainda sou e tão depressa serei pai. A ecografia é uma emoção da tecnologia moderna. Mas não explica tudo isto que é tão grande.
Entro numa sala e uma mulher vestida com uma bata de enfermeira manda-me despir e deitar na marquesa. Três hipóteses: é um velho sonho recorrente de adolescente; é o guião de um filme porno de má qualidade; estou num laboratório de análises clínicas. Como já não tenho 15 anos, ela só me mandou despir da cintura para cima e não venho entregar uma piza nem arranjar o lavatório, devo estar mesmo a fazer um electrocardiograma. Sem alterações no ritmo cardíaco.

04 março 2005

03 março 2005

Nas velhas fotografias de família há sempre um primo afastado com um dedo no nariz ou uma roupa hilariante e que raramente é convidado para os churrascos no quintal. Com o passar dos anos vai sendo progressivamente esquecido e a única prova da sua existência é a própria fotografia amarelecida no fundo do baú. No Livro III da Geografia Estrabão descreve os Lusitanos e reveste de sentimentos contraditórios o sentido de orgulho pelos antepassados.

Dizem dos lusitanos que são hábeis nas emboscadas e explorações, vivos, usam armamento ligeiro, e são astutos nas manobras. Têm um escudo pequeno de dois pés de diâmetro, côncavo pela frente e seguro por correias pelo que não leva braçadeira nem pega, e transportam além disso um punhal ou uma faca. A maioria veste cotas de linho, são raros os que as usam de malha e cascos com três penachos, e os restantes, cascos de nervos. Os que andam a pé usam grevas e carregam vários dardos cada um. Alguns usam também lanças, cujas pontas são de bronze. Diz-se de alguns dos que habitam nas imediações do rio Douro que levam um modo de vida lacónico, que utilizam duas vezes ao dia os aliptérios [locais onde se untavam de gordura antes dos exercícios], tomam banhos de vapor que se desprende de pedras incandescentes, banham-se em água fria e fazem apenas uma refeição por dia, com limpeza e sobriedade. Os lusitanos são dados a sacrifícios e examinam as entranhas sem separá-las do corpo; fixam-se ainda nas veias das costas e adivinham palpando. Fazem também previsões pelas entranhas dos seus prisioneiros de guerra, a quem cobrem de saios. Assim, quando são feridos pelo arúspide [sacerdote] nas entranhas, adivinham em primeiro lugar pela forma como tombam. Cortam as mãos aos prisioneiros e consagram as direitas. [Geografia, III, 3, 6; traduzido de uma edição espanhola]

02 março 2005

Frio glaciar e seco. Esta conjugação de factores meteorológicos evoca-me sempre imagens do National Geographic das estepes centrais da Patagónia, na Argentina, e do deserto de Atacama, no Chile, onde as sementes das rosas autóctones hibernam durante anos até haver chuva. Em Alcântara vivemos num ambiente controlado: não há condores a sobrevoar o deserto, a nossa sardinheira floriu mesmo sem chuva e o aquecedor trabalha ininterruptamente.

Reply to my critics

No processo que me foi levantado por negligência no tratamento deste blogue pelos seus poucos leitores habituais, tenho a honra de apresentar a primeira testemunha da defesa: Adam Smith (em cartas para a sua mãe)

I am just recovered of a violent fit of laziness, which has confined me to my elbow-chair these three months. [Oxford, 29-11-1743]

I am quite inexcusable for not writing to you oftener. I think of you every day, but always defer writing till the post is just going, and then sometimes business or company, but oftener laziness, hinders me. Tar water is a remedy very much in vogue here at present for almost all diseases. It has perfectly cured me of an inveterate scurvy and shaking in the head. [Oxford, 2-7-1744]

(A preguiça tem-me remetido à minha poltrona simbólica nos últimos tempos. Vou só comprar um frasco de tar water e volto já.)

01 março 2005

De casa ao trabalho: gostei do frio, de toda a gente abraçada a si mesma, encolhida no metropolitano, apertada nos casacos. Sei que uns flocos de neve cairam algures no Alentejo. Pareço um amigo islandês a dizer que tinha passado um Verão muito quente lá no país dele. "Quantos graus?", perguntei. "Vinte e nove", respondeu o Olarfur. Bem, isso é que foi uma festa. É como o nosso rigoroso Inverno sem chuva. Se cá nevasse...
A Olivedesportos comprou a Lusomundo. Não há maneira de aparecer a terceira via no PSD. Ainda não conhecemos o Governo do PS. O Porto e o Benfica empataram. Está frio. Faz sol na parede do meu escritório. Sobretudo está muito frio.