31 dezembro 2004

As ruínas circulares

Existe um tempo circular, marcado pela recorrência das estações, e um tempo linear, marcado pela sucessão dos anos. Os nossos antepassados reuniam-se em planícies ou cumes de montanha para celebrarem solstícios, nós comemoramos passagens de ano. Esta alteração nos rituais de celebração adequa-se provavelmente melhor ao carácter da vida moderna: não mudamos ao ritmo das estações; vivemos num tempo aberto e não fechado sobre si próprio, lento. Continuamos a habitar «ruínas circulares», mas existem mais saídas para o labirinto.
Como é que esta tragédia vai mudar as nossas vidas? O terramoto de 1755 (o sismo, a tsunami, e o incêndio), uma das maiores catástrofes conhecidas do mundo civilizado daquele tempo, ajudou a moldar as mentalidades. Em pelno Ilumunismo, deixámos de acreditar que os males naturais eram enviados por Deus para punir os males morais dos homens, ou mais simplesmente, para castigar os pecados. Nesse momento, a natureza ganhou o carácter de neutralidade que ainda tem hoje. E agora, duzentos e cinquenta anos depois, com tantas imagens e testemunhos que na Lisboa pombalina não havia? Embora esta seja uma visão eurocênctrica, parece que o 11 de Setembro (e cerca de três mil mortos) vão contribuir mais para definir o nosso futuro enquanto Mundo do que as dezenas de milhar de mortos causados pela tsunami. Um acidente é uma fatalidade e nada a fazer. Quando há uma mão humana a comandar o mal tudo muda. Mas o holocausto não foi há 50 anos e a humanidade não permaneceu a mesma?

25 dezembro 2004

Do outro lado do espelho - VI

O Chico Malveiro bebeu o último copo de tinto já a chorar, na tasca do algarvio, junto à praça das palmeiras.
- Então hoje, esta noite, você aqui ó amigo Malveiro? Não vai comer o bacalhau e as couves com a sua Maria?
O Malveiro voltou a cair em si, apesar do vinho. Sentou-se e chorou outra vez.
- Estou aqui a chorar porque a Maria ficou em casa sozinha a chorar porque vim aqui... Se eu fosse para casa esta já não era uma noite triste, porque é sempre... estas noites...
- Ó amigo Malveiro deixe-se de balbuciar. Venha lá comigo.
Levado pelo braço, desceu a avenida. À vigésima quinta amoreira que ladeia a estrada bateu à sua própria porta e gritou - Maria do Carmo! A seu lado ela limpou-lhe o suor do rosto, falando baixinho - Francisco, acorda... Sabes que não podes vestir esse pijama quente no Verão porque tens pesadelos. Queres água?

23 dezembro 2004

Nasceu a Carolina. A Carla vai ter de comer filhoses de hospital e o Pedro vai ter de se juntar ao seu presépio pessoal na maternidade. Nós, pastores ou reis magos, iremos vê-los mais tarde. Parabéns, feliz Natal.

22 dezembro 2004

Espelho mau, espelho mau - VIII

Espera-se a todo o momento ouvir uma ideia da boca de José Sócrates. Há quem tenha os foguetes preparados para quando o fenómeno ocorrer. Pedir uma maioria absoluta sem se saber para quê soa muito a santanista. E chegar ao poder assim sem se estar preparado, como estamos a ver, dá mal resultado. Guterres preparou-se anos e Durão sentou-se no trono pelo menos um ano antes do que esperava. Por este caminho o país não se endireita. Vamos continuar a viver num regime de comédia trágica que nos faz rir primeiro e chorar depois. Alguém sabe como estão as quotas de imigração da Nova Zelândia?

Do outro lado do espelho - V

Voltei a conversar longamente com Deus depois do meu neuropsicólogo estimular com choques eléctricos o lóbulo temporal que me causava os ataques de epilepsia. Dessa vez quase tive uma visão piedosa, como se fosse um pastorinho de Fátima. Ainda não percebi se é o meu cérebro fantasioso que é crente se sou eu que acredito. Tenho de voltar a tomar os comprimidos inibidores da transcendência porque a minha sugestão natural para achar que Ele existe está a tornar-se demasiado forte.

Espelho mau, espelho mau - VII

Facadas nas costas, diz ele, que se atira para trás cada vez que vê uma coisa afiada e vai caindo, caindo, para cima das facas que vê no caminho. Ora ontem foi ver Santana e Bagão de facas longas apontadas a Ferreira Leite. Ainda vamos ver os ministros deste Governo às navalhadas de rectaguarda com os do anterior.

20 dezembro 2004

Leitor externo

Acredito por momentos na validade de algumas teorias idealistas quando visito bibliotecas. Passo a tarde mais em lugares criados concretamente no cérebro do que numa mesa da biblioteca. Os estudantes lêem muito longe de mim, em outras cidades. Quando ponho os auscultadores, o fenómeno amplifica-se: estou em São Petersburgo, num bar da 52nd Street e na biblioteca da Faculdade de Letras. Sou um leitor externo e só agora entendo o significado da classificação.
Não consigo ler o Cântico Negro de José Régio («Ninguém me diga: ‘vem por aqui’! [...] // Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, / - Sei que não vou por aí!») sem pensar na semelhança de alguns versos com os de Lisbon Revisited de Álvaro de Campos («Assim, como sou, tenham paciência! / Vão para o diabo sem mim, / Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! / Para que haveremos de ir juntos?»). E o tom de Noite antiquíssima de Álvaro de Campos («Vem, Noite antiquíssima e idêntica [...] Vem, vagamente, / Vem, levemente, / Vem sozinha, solene, com as mãos caídas / Ao teu lado») lembra-me alguns versos de Romeu e Julieta de Shakespeare («Come Night, come Romeo [...] Come gentle night...»). Não acho que todos os poetas sejam meros continuadores de um longo poema universal e não tenho nenhuma teoria sobre os limites do plágio ou do contágio. Esta não é uma observação sobre a influência, é mais sobre a leitura do que sobre a escrita: as palavras não se esgotam, repetem-se.
As traduções das letras dos Joy Division são más. As traduções das letras dos Joy Division não podem ser boas. Há bastante tempo que partilho com o Zé Pedro este desconforto. O erro é estrutural, nenhum tradutor pode atenuar a estranheza. (A Assírio & Alvim tem duas edições, uma com tradução de Paulo da Costa Domingos e de mais alguém cujo nome não me recordo e a outra de José Alberto Oliveira.) Não conseguimos simplesmente ler os poemas, ouvimo-los mentalmente em português com a música original. É indiferente se «o amor nos destroçará» ou se «nos dilacerará», nunca chegará para «tear us apart». É como tentar ler aquele soneto da Florbela Espanca sem ouvir a voz do Luís Represas a querer amar-nos perdidamente.

Dezoito de Dezembro

Sónia, Gonçalo, Luísa, Andreia, Pedro Saragoça, Pedro Santos, Carla/Carolina, Armando, Paulo, Ana Luísa/Gustavo, Pedro, Rodrigo, Vítor, Carla, Catarina, Paula, Xana, Cláudia, Nuno Moura, Maísa, Irene, Ireneu, Francisco, Mafalda, Mafalda de Castro, Miguel, Hugo Franco, Dina, Zé Pedro, obrigado. Obrigado à Isabel que teve de cobrir a inauguração de quarenta metros de tronco de natal e a todos os outros que não puderam aparecer. Obrigado ao fofo de Belas gigante e ao travesseiro da Piriquita por se terem deixado comer passivamente. Obrigado à Joana, que tem sempre boas surpresas preparadas para mim.

17 dezembro 2004

O niilismo e a taxa metabólica

Num artigo já com alguns anos, Stephen Jay Gould escreve sobre a taxa metabólica dos mamíferos. Ao que parece, há uma relação entre o tamanho do corpo e o ritmo do metabolismo e os animais com um metabolismo mais acelerado vivem menos tempo (os mais pequenos respiram e morrem mais depressa). Vivem aproximadamente o mesmo tempo biológico, mas a ritmos diferentes. Segundo estimativas, os mamíferos tendem a respirar cerca de 200 milhões de vezes no espaço da sua vida e, como respiram uma vez por cada quatro batimentos cardíacos, os seus corações batem cerca de 800 milhões de vezes. Antes que comecem a fazer contas, Gould explica que os seres humanos escapam a este padrão geral, vivendo cerca de três vezes mais tempo do que os outros mamíferos do mesmo tamanho: os pulmões respiram 600 milhões de vezes e o coração bate 2400 milhões de vezes. Já é um pouco tarde para começar a contar, mas sei que, pelo menos, vou passar a respirar muito mais devagarinho.

16 dezembro 2004

Espelho mau, espelho mau - VI

Qual é coisa qual é ela, que antes de o ser já o era?
a) O cherne.
b) A pescada.
c) A coligação PSD-CDS/PP.
d) O carapau de corrida.
Nos séculos XVI e XVII descobriram-se muitas ilhas imaginárias, com constituições perfeitas e habitantes pacíficos. Os oceanos eram perigosos e um naufrágio era uma bênção concedida aos marinheiros imaginários. Encontravam Utopia (More), Oceana (Harrington) ou Bensalem. Esta última é descrita por Francis Bacon em Nova Atlântida: uma ilha centrada na ciência e nos frutos da ciência. Da mistura entre filosofia política e ficção científica, o que mais me interessou quando li a fábula foi a ocupação de uma das divisões da classe dirigente. É constituída por homens que navegam para outros países em busca de livros e de conhecimento. Chamam-lhes mercadores de luzes (merchants of light). Actualmente, temos uma coisa parecida mas com um nome muito menos fascinante, são os bolseiros e já não navegam, andam de avião. Do cais em frente à minha janela chegam e partem navios; não sei se me candidate a uma bolsa ou se viaje clandestino.

15 dezembro 2004

Num daqueles livros que se lêem na adolescência, o narrador descreve os dias que passou num quarto, sem a noção do tempo, sob o efeito de uma droga qualquer. Também eu vivi pelo relógio sem ponteiros de Morangos Silvestres nestas duas últimas semanas, sem ter tomado nada. Acabei a tradução de um livro difícil, comemorei a dissolução do parlamento e a evaporação do governo (passagem do estado líquido ao gasoso), vi A Costa dos Murmúrios, participei na maratona gastronómica de recepção ao Ruca, assisti ao empate do Sporting em Alvalade, não escrevi postais de Natal, li pouco. Já preguei os ponteiros ao relógio: estou atrasado, estou muito atrasado. Estou de volta.

14 dezembro 2004

Espelho mau, espelho mau - V

A coligação vai descoligada a votos com uma aliança firmada para coligar-se a seguir. De que cor é o cavalo branco de D. José?

Do outro lado do espelho - IV

Aquele homem tinha-se alimentado toda a vida de uma incubadora de sonhos, muito transparente, pendurada na sala como se fosse um aquário por cima da telefonia. Conforme os anos passavam e os tempos se tornavam mais modernos, mais deprimido ficava com a realidade. Então, para fugir do mundo que o iludia com empirismos, punha os óculos de mergulhador e aspirava pelo tubo da incubadora os sonhos sedimentados ora em camadas ora em forma de maçanetas que lhe abriam novas passagens.

Um dia, já os tempos eram muito modernos, porque tinham passado muitos anos, não aguentou. Partiu a incubadora e fez dos sonhos a realidade, à qual só regressou verdadeiramente já era muito velho. Quando saiu da clínica de desintoxicação, onde tinha entrado entre a vida e a morte - com o cérebro a querer expandir-se pelos orifícios da cabeça com tantas imaginações -, prometeu que nunca mais se punha a levitar à frente das pessoas esfumando-se para dentro de chaleiras quando concedia três desejos surreais. Para lhe proibir a actividade, as autoridades alegaram que a satisfação plena prejudicava a economia.

13 dezembro 2004

Espelho mau, espelho mau IV

Santana demitiu-se e bem. Mas a notícia (no Público) de que pretendia abandonar funções só vinca ainda mais as verdadeiras características dele. Este homem tem vertigens e quando olha para baixo de um lugar alto atira-se em desespero, se ninguém lhe joga a mão.

12 dezembro 2004

Espelho mau, espelho mau III

Dias Loureiro já tinha aconselhado Santana Lopes a demitir-se, e disse-o numa entrevista à TSF. Pedro concordou porque não lhe iam perdoar estar no cargo sem ter sido eleito.

Agora só lhe resta agradecer a Sampaio por ter dissolvido a Assembleia, deixando-o aparecer como a vítima (se ele próprio se demitisse era sinal de fraqueza); ou então pode aproveitar a embalagem e atirar-se ao Presidente por o ter feito primeiro-ministro, quando era mais que visto que isso só o ia prejudicar (um Santana virgem de acção governativa seria muito mais eficaz em campanha eleitoral). E, já agora, dizer ao 'Manel' (Dias Loureiro) que com amigos destes...

11 dezembro 2004

Se eles até ganham é que vai ser o bonito

... E Sampaio falou.
Para dizer tudo o que já se sabia, tão óbvias eram as suas razões. Foi assassino quando disse que as reacções [da maioria] à sua decisão ainda reforçaram mais essa certeza. Talvez as reacções do PS à nomeação de Santana, há quatro meses, tenham funcionado de forma simétrica. Só que fruto da decisão de Sampaio o PS mudou. Agora, com um discurso como este, onde se percebe a desconfiança pessoal absoluta do Presidente em Santana Lopes, que condições políticas terá Sampaio para dar posse a um Governo Santana/Portas, se a actual maioria ganhar as eleições, o que não é completamente disparatado?

08 dezembro 2004

Espelho mau, espelho mau II

Santana nunca percebeu o papel de primeiro-ministro. Quando revelou em público a conversa tida no Palácio de Belém - e a tripla negação de Sampaio à pergunta da dissolução -, não percebeu que aquela tinha sido uma conversa entre dois titulares de órgãos de soberania unipessoais, e não uma troca de palavras entre o Pedro e o tio Jorge. Nunca se vai perceber se estava a falar a verdade, porque jamais alguém de Belém vai dizer o que se passou naquela sala. Santana Lopes transportará esse ónus de traição da confiança institucional durante a campanha eleitoral. E, se ganhar as eleições, a confiança entre os dois será tanta que terá de fazer como Eanes e Balsemão que gravavam as conversas para não haver dúvidas.
Nô mais, ficção, nô mais! Desce tu, Musa, a de sorriso loução, ganha-me a benevolência dos meus concidadãos e diz-me: Há emenda para este país?
Últimas frases do livro de Mário de Carvalho Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina (Caminho)

05 dezembro 2004

Espelho mau, espelho mau I

Obrigatório ler o artigo de Vasco Pulido Valente, no Público de hoje, sobre os maus políticos e tudo o resto que também é mau. Mas se todos nos olhássemos ao espelho que VPV segura, corríamos para a Ponte 25 de Abril numa romaria suicida colectiva.

Do outro lado do espelho III

Olho para cima. Na fachada do edifício estende-se o cartaz imenso daquela campanha publicitária que se repete há três Invernos, para coincidir com o Natal: "Adopte uma pessoa abandonada. Ofereça uma vida." Entro. Respondo a um questionário ao computador. Tenho o perfil indicado. Quando chega a minha vez, uma mulher de branco conduz-me pelos corredores até aos aposentos. "Esta semana tem sido uma loucura, levaram-nos quase tudo, são boas prendas, sabe..." Pois, penso eu, ao preço que estão as coisas... Ela abre a última porta e deixa-me em frente a uma fila de quartos com portas de vidro. "Pronto, pode escolher, já só temos estes quatro, mas daqui a uns dias devemos ter mais. Quando quiser, chame".

Perco-me tempos sem fim a andar de um lado para o outro diante das pequenas celas. Havia uma namorada abandonada a chorar sentada de cócoras a um canto. Um ministro remodelado a redigir decretos para não perder o jeito. Um velho sentado na cama, de bengala na mão, como se estivesse num banco de jardim. E uma menina encontrada num hipermercado, não reclamada pelos pais, a jogar num telemóvel. Escolhi o ministro. Mandei entregar dali a três dias e paguei o transporte. Fica bem na minha secretária, bem penteado e com a sua gravata, tem lá muito com que escrever despachos, faz-me companhia a beber um uísque ao serão e a minha mulher acha o máximo ter gente importante lá em casa.

03 dezembro 2004

Borges quer meter-se "nisto"?

No último post, questionava quem quer meter-se nisto, na política, tendo em conta o modo como estão as coisas. Hoje, António Borges diz numa entrevista ao Diário Económico: "Portugal atravessa um momento em que ninguém com responsabilidades pode afirmar ‘eu fico de fora’". É uma atitude patriótica, desde que seja consequente com as palavras ditas. Resta saber quem está com Borges no PSD para expulsar a chamada moeda má. Mas agora, quatro meses depois do tempo certo, pode ser tarde de mais...

02 dezembro 2004

The end of the affair

A falta de legitimidade é uma coisa terrível, por mais legalidades que justificassem a nomeação de Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro. O homem nunca se sentiu legitimado, foi sempre uma espécie de adolescente vigiado pelos tutores. Isso ficou provado durante estes longos quatro meses trapalhões, em que o Governo andou trôpego e o PSD passou o tempo encalhado em si mesmo. De qualquer maneira, valeu a pena para sabermos o que vale Santana em S. Bento. Jorge Sampaio percebeu e emendou a mão, com todas as consequências que isso agora vai ter.

Vivemos em democracia. Num regime semi-parlamentar - ou mais para o semi-presidencial desde há dois dias (ou desde há quatro meses) -, ir a eleições não pode ser um drama. Mais dramático seria viver com um Governo artificial, ligado à máquina, a precisar de oxigénio a toda a hora, sem autonomia para respirar. Mas se não é um drama, não deixa de ser grave que agora funcionamos em ciclos de dois anos. Das próximas eleições devia sair um Governo de maioria, fosse de quem fosse, para isto normalizar.

Só que a realidade e a Constituição estão desfazadas: as pessoas votam para o primeiro-ministro, que não é eleito, e não para os representantes parlamentares; o sistema partidário não permite um esquema de alianças possíveis à direita e à esquerda como vemos noutros países europeus; e o Presidente da República é percebido como uma Rainha de Inglaterra ou um notário que, de facto, como vemos, não é.

Vivemos uma crise de regime. Da maneira que as coisas estão, quem vai querer meter-se nisto?