10 fevereiro 2004

Do lado de lá do espelho II

«E que tal se tem dado com os comprimidos?», perguntou o filosiatra do outro lado da mesa. «Bem, parece-me», respondeu o paciente. «Mesmo assim, houve um dia em que disse "até amanhã, se Deus quiser". Mas pensei logo a seguir que, se Deus não quisesse, não haveria amanhã, ou não haveria eu ou talvez pudesse nem haver a outra pessoa. Seria um disparate. Acho que é um efeito... De resto, nem tenho pensado muito em Deus. Têm-me feito bem. Acho...».
«Acho eu que vai ter de passar a tomar duas cápsulas logo pela manhã, e manter o comprimido antes do deitar. Vamos aumentando a dose. Não é normal que o seu organismo continue com essa tendência transcendental positiva, depois deste tempo todo a tratar-se», adiantou-se o filosiatra, dos mais respeitados do país.
«Não sei... o doutor é que sabe. Herdei esta tendência para acreditar dem Deus, sempre tentei evitá-lo, a minha mãe era muito religiosa, e o senhor está a ver... não é de um dia para o outro que uma pessoa bloqueia essa fé, é uma coisa genética...»
O filosiatra, ateólogo conceituado, respirou fundo. «Sim, mas vai ver que melhora. Vamos inibir os neurotranscendoreceptores quando encontrarmos a dose certa. Há quem reaja mais depressa que o senhor. As estatísticas do laboratório dizem que a partir desta dose, 70% dos pacientes ficam inibidos da tendência natural para acreditarem. Você vai curar-se».
O paciente despediu-se e saiu. Sentiu-se melhor e deu graças por não dar graças a Deus por estar a sentir-se melhor.

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