Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
31 maio 2005
28 maio 2005
Ensaio sobre a cegueira
A relação entre o sexo e a perda de visão é um mito urbano que ganhou novos desenvolvimentos. Segundo o Expresso desta semana, investigadores americanos estão a estudar «50 casos de cegueira (total ou parcial) supostamente relacionados com o uso do Viagra». Na Idade Média era a masturbação, razão pela qual lhe terão chamado Idade das Trevas – e que a confirmar-se teria provocado uma epidemia de cegueira mais fulminante que a peste negra. Nas últimas décadas seria a pornografia a contribuir para a perda de visão nos adolescentes, pela dificuldade em lerem (verem) revistas com pouca luz ou por cansarem a vista a tentar perceber cenas de filmes caseiros de má qualidade. A relação entre o sexo e a perda de visão pode ser apenas um mito, mas sempre me deixa mais orgulhoso das minhas dioptrias.
27 maio 2005
A nossa lepra incurável
A Dona Ema foi ao baú do sótão desencantar esta maravilhosa antiguidade mais actual do que nunca:
"Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação económica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.(...)
Temos um déficit de 5.000 contos. Esta é a negra, a terrível, a assustadora verdade. Quem o promoveu? Quem o criou? De que desperdícios incalculáveis se formou? Como cresceu? Quem o alarga? É o governo? Foram estes homens que combatem, foram aqueles que defendem, foram aqueles que estão mudos? Não. Não foi ninguém. Foram as necessidades, as incúrias consecutivas, os maus métodos consolidados, a péssima administração de todos, o desperdício de todos. Depois, as necessidades da vida moderna, de terrível dispêndio para as nações. Como na vida particular, cresceram as superfluidades, o vão luxo, o aparato consumidor, mais precisões, mais gastos, a vida internacional tornou-se tão cara que mais ou menos todas as nações estão esfomeadas e magras.(...)
O déficit tornou-se um vício nacional, profundamente arraigado, indissoluvelmente preso ao solo, como uma lepra incurável."
Eça de Queiroz, 1867
"Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação económica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.(...)
Temos um déficit de 5.000 contos. Esta é a negra, a terrível, a assustadora verdade. Quem o promoveu? Quem o criou? De que desperdícios incalculáveis se formou? Como cresceu? Quem o alarga? É o governo? Foram estes homens que combatem, foram aqueles que defendem, foram aqueles que estão mudos? Não. Não foi ninguém. Foram as necessidades, as incúrias consecutivas, os maus métodos consolidados, a péssima administração de todos, o desperdício de todos. Depois, as necessidades da vida moderna, de terrível dispêndio para as nações. Como na vida particular, cresceram as superfluidades, o vão luxo, o aparato consumidor, mais precisões, mais gastos, a vida internacional tornou-se tão cara que mais ou menos todas as nações estão esfomeadas e magras.(...)
O déficit tornou-se um vício nacional, profundamente arraigado, indissoluvelmente preso ao solo, como uma lepra incurável."
Eça de Queiroz, 1867
26 maio 2005
António das Pêgas, o manageiro
A este veterano do montado, de olho azul e 72 anos, chamam-lhe António das Pêgas. É manageiro para os lados de Santiago do Cacém, o que significa comandar um rancho de homens e mulheres que fazem trabalho sazonal para os lavradores lá da zona. Aqui apanhei-o a beber pelo cocharro, durante uma tirada de cortiça serrana, para os lados das Vendas do Roncão. Vê-se pela maneira como olha a objectiva que é um tipo vaidoso, do género velho gaiteiro. Meneia as ancas como o John Wayne, mas no lugar da pistola leva um machadinho.
O ofício exige saber popular misturado com ditâmes de Bruxelas: ao lado da machada transporta uma corda com os centímetros exactos do diâmetro legal mínimo do tronco dos sobreiros que tiram a primeira cortiça virgem. Abraça um chaparrinho com o cordel e diz este já pode ser. Depois toca num frondoso com a palma da mão e conclui que foi maltratado numa época antiga, por tiradores brutos, sem sensibilidade no machadar, que feriram a carne da árvore em dia de chuva. É preciso muito ouvido para sentir a lâmina entrar sem castigar o tronco. O prémio do bom tirador - para além do prémio do fim do dia, os dezasseis contos da jorna -, é quando a cortiça "arrota" ao descolar do tronco num canudo perfeitinho, a bela prancha que há-de dar com que enrolhar uma pinga da melhor.
O António das Pêgas não havia de gostar de saber dos conluios entre os nossos governantes e os interesses privados para abater sobreiros em troca de campos de golfe. Ele não teria jeito para caddy, mesmo com aquele menear de ancas à cowboy.
25 maio 2005
Admirável leveza do ser
Sinto-me livre, leve, feliz, sintonizado com os astros, ansioso por ler livros que acumulei, por ver coisas que nunca vi, por fazer o que nunca fiz, por viver estes quinze dias como se fossem anos. Estou de fériiiaaas!
Este monstro imposto
Não quero pagar mais impostos porque os últimos governos não governaram. É como dar cada vez mais comida a um bicho cada vez mais gordo, que precisa de cada vez mais de comida porque está cada vez mais gordo. Não é preciso matá-lo. Basta obrigá-lo a uma dieta rigorosa, fazer umas lipoaspirações, e, se for preciso, meter-lhe uma banda gástrica: acabar com o emprego para toda a vida na função pública, com serviços supérfluos e ineficazes, com as prestações para quem não precisa, e despedir os comprovadamente incompetentes. Eliminar os benefícios fiscais da banca e da construção civil, ser implacável para qualquer restaurante que não passe a factura, para qualquer empresa que fuja aos impostos. A doer. De cabo a rabo.
23 maio 2005
Notas marginais
Dependendo do ponto de vista, sublinhar livros de bibliotecas públicas pode ser encarado como um acto de egoísmo ou de altruísmo. Pode sublinhar-se sem pensar nos leitores seguintes ou a pensar nos leitores seguintes. Neste segundo caso, sublinhar é um acto exploratório de procura das frases ou dos pensamentos mais importantes, empreendido para poupar trabalho aos leitores futuros. Poderíamos chamar a estes sublinhadores fazedores de mapas, não fosse o perigo de tornar sedutora uma actividade tão irritante. Por vezes os riscos são complementados com extensas anotações na margem lateral da mancha impressa, oferecendo o texto e a sua exegese na mesma página. O que apetece, nestes casos, é comentar o comentário do leitor anterior, iniciando uma espiral infinita de notas marginais.
22 maio 2005
Viva o Porto e as equipas que festejam longe daqui
Percebe-se assim a razão de um alentejano que vive em Lisboa ser do FC Porto: o sossego. Das duas vezes em que o Sporting foi campeão nacional não dormi com os gritos dos que não tinham ficado "em casa", amontoados aos berros na Praça do Município. Agora, estas coisas vermelhuscas vá de lhe darem com o S - L - B à pressão do ar pulmunar, as apitadelas dos carros, os piões das motas, os raters. Mas pior é a barulheira que para aqui vai de uns altifalantes a darem música pimba e trash metal com letras à Benfica, decerto com o patrocínio de alguma entidade oficial esquecida de uns quantos miseráveis que ainda vivem na Baixa. Quero dormir. E bibó Porto! , que quando faz a festa, festeja longe daqui e me deixa duplamente feliz.
21 maio 2005
Cunhas
Isaltino Morais contou que Marques Mendes lhe meteu uma cunha para o comandante Azevedo Soares (hoje vice-presidente do PSD) ser administrador da Águas de Portugal. Ele, que era ministro do Ambiente, acedeu ao pedido e agora denuncia a sua própria conivência nesta história de conluio. Quem muito atira pedras ao ar... Quem é que deu guarida a Marques Mendes na Universidade Atlântica, cuja maioria do capital é da câmara de Oeiras, quando o actual presidente do PSD era apenas deputado?
20 maio 2005
Dilemas
A primeira grande decisão de um pai e de uma mãe: escolher o nome do filho, aquela tatuagem entranhada, cerzida ao ser, que nunca sai e o vai acompanhar toda a vida. Acho que estou a acusar o peso da responsabilidade.
18 maio 2005
O défice de felicidade e as contas públicas
Grande novidade, o défice das contas públicas portuguesas é preocupante: chegará aos sete por cento? Depois da derrota do Sporting e da expectativa em torno do Boavista-Benfica, é esta a maior preocupação do nosso honesto povo. Contabilizamos o nosso desenvolvimento a partir de dados absolutamente mensuráveis, mas eu cá, nos dias de total irresponsabilidade, estou-me nas tintas para o défice.
Há coisas na vida que não se medem. Um dia perguntei a um historiador estrangeiro, que tinha escrito um livro sobre o desenvolvimento das nações, se ele sabia se as pessoas eram mais ou menos felizes antigamente, quando eram mais pobres e menos desenvolvidas, ou hoje, rodeadas de tecnologia. Ora ele encolheu os ombros e disse que não fazia ideia. Tinha escrito no dito livro que a felicidade era um subproduto do desenvolvimento.
Ora, vamos lá teorizar um bocadinho sobre isto: um povo que canta fado mas nunca ganhou o festival da canção, que foi à final do Euro e perdeu logo com os gregos, que vai aos magotes pagar promessas a Fátima agradecendo qualquer ponta de felicidade como um favor da divina providência, que bate recordes de boletins do euromilhões na esperança de enriquecer, e que consome cada vez mais antidepressivos, precisa de muito mais que de ultrapassar o défice.
O défice está no meio de nós, omnipresente, a escutar atrás das portas e tolher-nos os movimentos porque não estamos contentes porque não somos felizes e não somos felizes porque não estamos contentes. Nós somos o défice. Erradicá-lo era como deitar os Jerónimos a baixo. Não podíamos ser pobres e desgovernados, até tolos, mas ao mesmo tempo evoluirmos nos critérios de convergência da máxima felicidade?
Há coisas na vida que não se medem. Um dia perguntei a um historiador estrangeiro, que tinha escrito um livro sobre o desenvolvimento das nações, se ele sabia se as pessoas eram mais ou menos felizes antigamente, quando eram mais pobres e menos desenvolvidas, ou hoje, rodeadas de tecnologia. Ora ele encolheu os ombros e disse que não fazia ideia. Tinha escrito no dito livro que a felicidade era um subproduto do desenvolvimento.
Ora, vamos lá teorizar um bocadinho sobre isto: um povo que canta fado mas nunca ganhou o festival da canção, que foi à final do Euro e perdeu logo com os gregos, que vai aos magotes pagar promessas a Fátima agradecendo qualquer ponta de felicidade como um favor da divina providência, que bate recordes de boletins do euromilhões na esperança de enriquecer, e que consome cada vez mais antidepressivos, precisa de muito mais que de ultrapassar o défice.
O défice está no meio de nós, omnipresente, a escutar atrás das portas e tolher-nos os movimentos porque não estamos contentes porque não somos felizes e não somos felizes porque não estamos contentes. Nós somos o défice. Erradicá-lo era como deitar os Jerónimos a baixo. Não podíamos ser pobres e desgovernados, até tolos, mas ao mesmo tempo evoluirmos nos critérios de convergência da máxima felicidade?
Patinagem artística
O Sporting fez coisas bonitas, como diria o do bigode. Mas infelizmente, como notava o comentador, isto não é patinagem artística. É patinagem.
O meu amigo Luís Miguel Afonso escreveu este comentário ao post sobre o "Fundamentalista Medieval":
Todas estas palavras deixam-me com a certeza que algo não vai bem com esta sociedade. Ao ouvir as opiniões de uns e de outro, pergunto-me a mim mesmo se estará alguém a usar a razão naquilo que diz ou se apenas se decidiu dar voz à inquietação que sobressalta da alma de cada um. De um lado, o Padre de Lordelo, que longe do politicamente incorrecto, mostrou antes uma falta de sensibilidade (e presença de espírito) extrema. Errou no tempo e no modo como quis marcar a sua posição. Do outro, os indignados da sociedade... A estes, sinceramente, não consegui ainda perceber a causa da indignação. Terá sido pelas circunstâncias em que o disse? Será por o clérigo ter dado a entender que é pior morrer uma criança no seio da mãe do que uma criança de cinco anos? Terá sido por ter tido a ousadia de considerar que um bébé no seio materno é realmente um bébé? Qual destas razões (ou outras...) terá causado a indignação de cada um?Tudo me leva crer que não terá sido pela primeira razão que apontei. Pelo menos, na maioria dos indignados. A esses gostava de deixar aqui as seguintes questões: Qual é a diferença entre a morte de um adulto e a de uma criança? Qual a diferença entre a morte de uma criança de 5 anos e a de um bébé de 6 meses? E depois de responderem com a razão a estas questões, tentem aplicar a vossa resposta a esta derradeira questão: qual será a diferença entre a morte de um bébé no seio materno e a de um adulto? Apenas um testemunho para aqueles que nunca ouviram o coração do seu filho a bater e as suas pequenas mãos a dizer adeus enquanto se aconchegam dentro do ventre da sua mãe: um bébé com 12 semanas através de uma máquina de ecografia parece mesmo um bébé...
Não, meu caro Afonso, neste caso o problema não está em saber se um bebé no seio da mãe é realmente um bebé. Aqui a coisa não é preto ou branco. O problema é a graduação que é feita pelo padre, ao considerar que a vida de uma criança de cinco anos, brutalmente assassinada, vale menos do que um feto na barriga de uma mãe. Eu respeito a opinião das pessoas que são contra o aborto. Eu votei sim no referendo, mas dificilmente apoiaria a realização de um aborto que me dissesse respeito. A questão em debate é outra: o fundamentalismo a que me referi reside no facto de o padre valorar mais aquilo que são os ditâmes gerais da Igreja em relação ao aborto do que a vida daquela criança em concreto. Mais: ele não valorizou a vida daquela família que teve de o ouvir a dizer tamanho disparate, e que foi à Igreja buscar algum consolo.
PS: a resposta do Afonso pode ser lida aqui nos comentários
Todas estas palavras deixam-me com a certeza que algo não vai bem com esta sociedade. Ao ouvir as opiniões de uns e de outro, pergunto-me a mim mesmo se estará alguém a usar a razão naquilo que diz ou se apenas se decidiu dar voz à inquietação que sobressalta da alma de cada um. De um lado, o Padre de Lordelo, que longe do politicamente incorrecto, mostrou antes uma falta de sensibilidade (e presença de espírito) extrema. Errou no tempo e no modo como quis marcar a sua posição. Do outro, os indignados da sociedade... A estes, sinceramente, não consegui ainda perceber a causa da indignação. Terá sido pelas circunstâncias em que o disse? Será por o clérigo ter dado a entender que é pior morrer uma criança no seio da mãe do que uma criança de cinco anos? Terá sido por ter tido a ousadia de considerar que um bébé no seio materno é realmente um bébé? Qual destas razões (ou outras...) terá causado a indignação de cada um?Tudo me leva crer que não terá sido pela primeira razão que apontei. Pelo menos, na maioria dos indignados. A esses gostava de deixar aqui as seguintes questões: Qual é a diferença entre a morte de um adulto e a de uma criança? Qual a diferença entre a morte de uma criança de 5 anos e a de um bébé de 6 meses? E depois de responderem com a razão a estas questões, tentem aplicar a vossa resposta a esta derradeira questão: qual será a diferença entre a morte de um bébé no seio materno e a de um adulto? Apenas um testemunho para aqueles que nunca ouviram o coração do seu filho a bater e as suas pequenas mãos a dizer adeus enquanto se aconchegam dentro do ventre da sua mãe: um bébé com 12 semanas através de uma máquina de ecografia parece mesmo um bébé...
Não, meu caro Afonso, neste caso o problema não está em saber se um bebé no seio da mãe é realmente um bebé. Aqui a coisa não é preto ou branco. O problema é a graduação que é feita pelo padre, ao considerar que a vida de uma criança de cinco anos, brutalmente assassinada, vale menos do que um feto na barriga de uma mãe. Eu respeito a opinião das pessoas que são contra o aborto. Eu votei sim no referendo, mas dificilmente apoiaria a realização de um aborto que me dissesse respeito. A questão em debate é outra: o fundamentalismo a que me referi reside no facto de o padre valorar mais aquilo que são os ditâmes gerais da Igreja em relação ao aborto do que a vida daquela criança em concreto. Mais: ele não valorizou a vida daquela família que teve de o ouvir a dizer tamanho disparate, e que foi à Igreja buscar algum consolo.
PS: a resposta do Afonso pode ser lida aqui nos comentários
14 maio 2005
O Fundamentalista medieval
«Matar uma pessoa no seio materno é mais grave do que matar uma pessoa que não se pode defender. Uma menina de cinco anos pode reagir, pode chorar, queixar-se»", disse à TSF o padre do Lordelo, Domingos Oliveira, assumindo assim o que já tinha afirmado na homilia da missa de sétimo dia em nome da Vanessa, a menina assassinada por familiares no Porto.
Se o Papa Bento XVI é um homem contra os relativismos modernos, que diria ele do relativismo medieval defendido por este obscuro padre? Mais vale um homicídio tardio que um aborto precoce? Um homem que diz isto numa casa onde há quem acredite haver uma presença Deus está do lado do bem ou do lado do mal?
Qual a diferença entre o padre Domingos e os apedrejadores de mulheres islâmicos? O que fará a hierarquia da Igreja em relação a ele? Com que consolo saíram daquela missa as almas dos familiares da criança? As palavras do padre Domingos são um segundo crime contra aquela criança: a profanação de uma alma inocente.
Se o Papa Bento XVI é um homem contra os relativismos modernos, que diria ele do relativismo medieval defendido por este obscuro padre? Mais vale um homicídio tardio que um aborto precoce? Um homem que diz isto numa casa onde há quem acredite haver uma presença Deus está do lado do bem ou do lado do mal?
Qual a diferença entre o padre Domingos e os apedrejadores de mulheres islâmicos? O que fará a hierarquia da Igreja em relação a ele? Com que consolo saíram daquela missa as almas dos familiares da criança? As palavras do padre Domingos são um segundo crime contra aquela criança: a profanação de uma alma inocente.
13 maio 2005
Linha
As diferenças entre o centro de saúde e o Estádio de Alvalade, por estes dias, são de escala e não de substância. É tão difícil arranjar uma consulta para o médico de família como para o final da Taça EUFA. Em ambos, há pessoas que vão acampar para lá com dias de antecedência. Mas o que é um acontecimento raro para os adeptos de futebol, tornou-se num desporto regular para grande parte da terceira idade com insónia. Muitos é certamente pelo vício do jogo, uma alternativa grátis ao bingo. A expectativa e o prazer de saber se o número da senha tem prémio. Hoje não me saiu nada.
12 maio 2005
Abater sobreiros: o crime de traição à pátria de Nobre Guedes e Costa Neves
Quando no fim do Verão o meu avô Hermes me oferecia uma nota de cinco contos, era porque tinha vendido a cortiça lá do brejo. Toda a vida olhei para os sobreiros com respeito, sinal de riqueza e posses na terra de onde venho. Os homens destas fotografias tiradas em 2002 na Serra de Grândola ganham 16 contos por dia na recolha do petróleo alentejano. Toda a gente ganha alguma coisa, neste negócio. A produção portuguesa de cortiça domina o mercado mundial, mas não chega para todas as encomendas. O bem é escasso para uma produção mundial cada vez maior de garrafas de vinho a precisarem de ser rolhadas...
Por isso fico tão irritado quando me abatem os chaparros, é uma coisa de pele. Este caso da Portucale em Benavente deixa-me danado, e não é só por causa da falta de sombra para bater umas sornas: um ministro do ambiente (Nobre Guedes) e outro da Agricultura (Costa Neves) a mandarem abater mais de dois mil sobreiros para fazerem um empreendimento turístico só mostra que ainda não ultrapassámos o velho modelo de (sub)desenvolvimento. Se dantes era só betão, agora é betão mais relva para o golfe. O Grupo Espírito Santo fez um comunicado ridículo a dizer que tinha plantado cinco mil sobreiros noutro local. Só que desses, poucos vingarão. E a primeira tirada de cortiça virgem é feita só aos primeiros 40 ou 50 anos da árvore. E a segunda tirada aos 60 anos ainda não é da maior qualidade. Não é preciso haver tráfico de influências para eles serem culpados de um crime lesa-pátria.
A mente humana é selectiva, mas também é inconstante. Não é incomum, numa segunda leitura de um texto, não compreender porque é que sublinhei determinadas passagens, que na altura me terão parecido importantes. Um exemplo: «Os poetas, dos órficos gregos aos nossos contemporâneos, vivem em culturas de culpa, em que o formalismo mágico da sabedoria poética viconiana é necessariamente inaceitával.» Agora me lembro, não sublinho apenas o que me parece importante. Por vezes, sublinho para tentar compreender mais tarde. A combinação entre beleza e incompreensão do fragmento também é um factor relevante para o acto.
A morte de Vítor Hermes
Hermes pode não ser bonito mas é um nome alado. Era o nome do meu avô, Hermes Rodrigues da Silva, e sempre gostei dele sobretudo pelo significado. Hermes, para os gregos, era o filho de Zeus e de Maia, neto de Atlas. Nasceu numa caverna no monte Cilene, na Arcádia e manifestou imediatamente uma admirável maturidade precoce e qualidades de inteligência extraordinárias. Era um recém nascido quando fugiu do berço para a Piéria. Adorava travessuras. Era um deus divertido. Roubou os bois de Apolo. Na Odisseia, Homero refere-se sempre a ele como Hermes, o matador de Argos. É o deus dos ladrões e o seu mensageiro, músico e encantador. Um belo nome. A sua pior tarefa era conduzir as almas do mundo dos vivos ao reino das Sombras. Um deus ocupado, portanto.
O meu primo, da minha idade, chamava-se Tito Hermes. Morreu aos 25 anos num desastre de mota. Esta era uma pequena homenagem. O pai dele chama-se Joaquim Hermes. A minha mãe não recebeu o nome, mas é conhecida como a Maria José Hermes. Durante muito tempo o meu irmão assinou Rui Hemes. Na minha terra ninguém sabe quem é o Vítor Matos. Seria preciso acrescentar: é um dos Hermes. Mas esta semi-clandestinidade durante um ano e tal de blogue incomoda-me. Devolvo-me ao mundo dos mortais com o meu nome de mortal: passo a assinar os posts com o meu nome verdadeiro: Vítor Matos.
O meu primo, da minha idade, chamava-se Tito Hermes. Morreu aos 25 anos num desastre de mota. Esta era uma pequena homenagem. O pai dele chama-se Joaquim Hermes. A minha mãe não recebeu o nome, mas é conhecida como a Maria José Hermes. Durante muito tempo o meu irmão assinou Rui Hemes. Na minha terra ninguém sabe quem é o Vítor Matos. Seria preciso acrescentar: é um dos Hermes. Mas esta semi-clandestinidade durante um ano e tal de blogue incomoda-me. Devolvo-me ao mundo dos mortais com o meu nome de mortal: passo a assinar os posts com o meu nome verdadeiro: Vítor Matos.
10 maio 2005
A vida antes do «Pictionary»
A história é conhecida. William S. Burroughs – autor beat que escreveu Naked Lunch –, bêbedo, decide brincar ao Guilherme Tell com a sua mulher, um revólver e um copo com água. Joan Vollmer aparentemente achou boa ideia, mas também já não estava muito sóbria. Estavam no México, de visita a casa de uns amigos e talvez se tenha instalado um silêncio constrangedor. Como se provou alguns segundos mais tarde, foi um dos desbloqueadores de conversa mais infelizes da história das relações sociais. William acerta em cheio na cabeça e Joan e o copo com água acabam ambos estilhaçados no chão. A história não tem moral – a não ser talvez a de que a brincadeira resulta melhor com frutos do que com objectos de vidro –, apenas uma constatação: a escassez de pensamento racional no neto (William S. Burroughs) de um homem que enriqueceu a produzir máquinas de calcular (Burroughs Adding Machine Company).
09 maio 2005
Sobre referendos e a prioridade da democracia sobre as concepções de bem
Nem todos os assuntos deveriam poder ser objecto de deliberação colectiva. Nas democracias liberais existe um razoável consenso em torno desta ideia. Não é por isso estranho ouvir-se dizer com alguma frequência que a liberdade individual não se referenda ou que a vida não se referenda. Existem questões que não deveriam depender da vontade de uma maioria conjuntural, cuja salvaguarda deveria estar consagrada a nível constitucional, mas numa sociedade em que ainda não chegou a acordo sobre todas elas, a democracia deve ter prioridade sobre as diversas concepções de bem. A alternativa à deliberação democrática é, no extremo, a guerra civil. Existem assuntos e tempos extremos que merecem uma guerra civil, para todos os outros, os limites à deliberação democrática são tão extensos e frágeis como os da própria democracia liberal.
Sobre referendos e o princípio representativo
No Federalista N.º 10, James Madison traça a distinção entre uma república, um tipo de governo baseado na representação, e uma democracia pura. Segundo ele, a principal vantagem da primeira sobre a segunda seria: «to refine and enlarge the public views, by passing them through the medium of a chosen body of citizens, whose wisdom may best discern the true interest of their country». A ideia de que a tomada de decisões por representantes eleitos não é apenas um mecanismo inevitável em sociedades complexas, em que os cidadãos não podem reunir-se eles próprios para decidir tudo a todo o momento, mas preferível, esteve sempre de alguma forma presente nos debates teóricos sobre a democracia representativa. Desde algumas concepções elitistas de direita sobre a existência de uma aristocracia natural até algumas concepções elitistas de esquerda sobre o partido como a vanguarda do proletariado. As assembleias representativas têm legitimidade para tomar decisões em nome dos cidadãos que as elegem, mas não contra eles, de forma preventiva, quando existam dúvidas sobre se o conteúdo da sua deliberação será diferente da opinião dos seus representantes.
08 maio 2005
07 maio 2005
06 maio 2005
Dia feliz
Mexia as mãozinhas, esperneava, confortável, num conforto morno que nunca mais voltamos a sentir. E lá estava, no écrã. O rapaz.
O terceiro "D"
Em simultâneo com a presença na final do Euro 2004, temos em três anos consecutivos uma equipa portuguesa nas finais das competições europeias. Parabéns ao Sporting! Portugal é finalmente uma nação desenvolvida. O José Barroso deve andar cheio de cachecóis e gravatas da sorte lá pelos corredores de Bruxelas.
05 maio 2005
Antes do tempo
Existem vários testes práticos para se avaliar se uma pessoa é conservadora ou progressista, cuja total falta de validade científica não deve impedir-nos de os utilizar com segurança. Um dos mais conhecidos é o da máquina do tempo: se encontrássemos uma estacionada em segunda fila, com a chave na ignição, visitaríamos o passado ou o futuro? As probabilidades apontam para que um conservador viajasse até ao passado e um progressista até ao futuro. Pessoalmente, prefiro uma variante: interrogarmo-nos se teremos nascido demasiado cedo ou demasiado tarde. A maioria dos conservadores sentirá que nasceu demasiado tarde, que a idade de ouro da humanidade já terá passado. A maioria dos progressistas achará o contrário. Perante o dilema, acho que nasci demasiado cedo. Não porque não me compreendam, porque esteja demasiado à frente do meu próprio tempo ou qualquer outra explicação fascista do género. Apenas porque a exploração espacial está apenas no começo, é provável que não venha a assistir às primeiras colonizações de planetas desabitados, ainda não se descobriram energias limpas capazes de satisfazerem as nossas necessidades inesgotáveis de consumo e a genética é ainda uma ciência quase inexplorada. Este último ponto é bastante importante. Embora não acredite na imortalidade da alma, tenho esperança que a ciência nos aproxime da imortalidade do corpo ou, pelo menos, do prolongamento da vida. Neste aspecto, como em outros, a humanidade tem progredido em sentido inverso aos relatos da Bíblia. No Génesis contam-nos que os primeiros homens viviam muito tempo e que a esperança média de vida tem vindo a decrescer consideravelmente. Adão viveu 930 anos, Set 912, Enós 905, Quenan 910, Maalaleel 895, Jéred 962, Henoc 365, Matusalém 969, Lamec 777, Noé 950. Mas os últimos homens viverão certamente muito mais.
We have more beginnings
As primeiras rugas de expressão começaram a notar-se. Podíamos deixar-nos envelhecer graciosamente mas optámos por fazer um lifting. Baixámos as luzes: decidimos passar a ter imagens e queremos que a experiência de atravessar os espelhos seja semelhante à de entrar numa sala escura de cinema, na matiné de um filme estranho em que o espectador está sentado numa sala vazia com a cumplicidade do projeccionista e do arrumador. É favor desligar os telemóveis durante a sessão e não fazer muito barulho com as pipocas.
Vítor (projeccionista) e Tiago (arrumador)
[O nosso sistema de comentários teve uma morte súbita. Já o substituímos por um novo mas, infelizmente, as mensagens antigas perderam-se no limbo dos comentários.]
Vítor (projeccionista) e Tiago (arrumador)
[O nosso sistema de comentários teve uma morte súbita. Já o substituímos por um novo mas, infelizmente, as mensagens antigas perderam-se no limbo dos comentários.]
03 maio 2005
O estilo, qual estilo?
Santana Lopes disse ontem à SIC-Notícias que apreciava o estilo de José Sócrates. Ora, o estilo de Sócrates - que é mais uma gestão criteriosa de silêncios do que uma medição cuidadosa de palavras -, está exactamente nos antípodas do estilo espalhafatoso que Santana cultivou desde a primeira hora. Ou estaria o Pedro a referir-se àquele fato Hugo Boss que vai tão bem com a gravatinha de uma só cor do primeiro-ministro? É que, de facto, o homem tem estilo...
Aborto empurrado para outro inquilino
Não surpreeende. Jorge Sampaio não vai convocar o referendo sobre a despenalização do aborto. Já tinha avisado que não o faria para uma data que prejudicasse a participação popular: ou seja, Julho, como obrigavam os prazos legais. Quem como Sampaio deseja despenalizar o aborto, tem de concordar que, dado o calendário eleitoral, a pergunta só deve ir a votos em 2006. Nem já, nem com as autárquicas, nem com as presidenciais.
O Presidente usou de um bom senso elementar: mais vale adiar o referendo um ano do que fazê-lo mal e à pressa (com menos de 50% de votantes), o que nos deixaria mais sete ou oito anos reféns da situação actual.
Sócrates perdeu, mas já pode dizer à esquerda do seu partido que tentou; e assim ganhou tempo com mais um debate inútil para que não se falasse da governação. Mendes ganhou, condicionando com a sua chantagem a estratégia do PS e do Presidente - que desejam o referendo europeu em conjunto com as autárquicas e por isso precisam do PSD para a revisão constitucional. Para já, o aborto foi empurrado com a barriga para o próximo inquilino do Palácio de Belém. Esperemos que Cavaco seja sensível...
O Presidente usou de um bom senso elementar: mais vale adiar o referendo um ano do que fazê-lo mal e à pressa (com menos de 50% de votantes), o que nos deixaria mais sete ou oito anos reféns da situação actual.
Sócrates perdeu, mas já pode dizer à esquerda do seu partido que tentou; e assim ganhou tempo com mais um debate inútil para que não se falasse da governação. Mendes ganhou, condicionando com a sua chantagem a estratégia do PS e do Presidente - que desejam o referendo europeu em conjunto com as autárquicas e por isso precisam do PSD para a revisão constitucional. Para já, o aborto foi empurrado com a barriga para o próximo inquilino do Palácio de Belém. Esperemos que Cavaco seja sensível...
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