07 abril 2005

Era uma vez, ao pé da carpintaria do meu avô Hermes...

O meu avô Hermes, pai da minha mãe, era carpinteiro em Grândola, numa rua ao pé do Largo D. Jorge de Lencastre. A rua, que subia da praça (ou mercado), terminava numa esquina, na loja do Paga-Pouco. Estas memórias geográficas dos lugares onde brinquei ganham nitidez sempre que regresso. Paga-Pouco, talvez não muito, porque a loja foi crismada de "Barateiro". Vou ali ao "Barateiro", dizia a minha avó Mariana. Ou então: "Vamos à do Feio". O senhor Feio, que de facto nada tinha de bonito, era o barateiro que trabalhava no Paga-Pouco.

Adiante, havia a loja do sr. Bento, que vendia envelopes, selos e papel azul de 25 linhas. A poucos metros dali, onde o meu avô me mandava comprar maços de Provisórios, cheirava a cabedal a loja do sr. Décio (que ainda lá está), mais os artigos de caça e pesca, uma registadora gigante, e as conversas dos homens, tiro na lebre e pargos do tamanho de espadartes.

Mas o melhor era a Farmácia Pablo, fundada em 1901, com ares de 1901, onde o Rosa cheirava a vinho, com ares de 1950 e brilhantina no cabelo. Em frente ao balcão, três cadeiras de madeira, daquelas com o coração recortado nas costas, onde os velhos se sentavam à conversa: o meu avô, um campeão de bilhar, um padre, outros. Havia sempre freguesia a trocar conversa. Em cima do balcão, lá estava a balança, onde vi tantas vezes o meu irmão Rui a ser pesado quando bebé, e onde eu também o tinha sido. Ao lado, um velho reclame da Nestlé, uma relíquia gasta, anunciando umas papas já muito antigas, com um bebé pendurado no bico de uma cegonha.

Ora há pouco mais de uma semana dei que o Rosa já não lá estava. Um computador, grande novidade ao balcão, e nem rasto de cegonha. A imagética na qual eu acreditara desapareceu. Restavam as três cadeiras vazias com o coração. O Largo D. Jorge de Lencastre mudara: a Ludoteca é um edifício belíssimo, diante da qual nasceu um hotel de charme; o Décio lá está, mas, frente-a-frente, dois edifícios disputam o significado da mudança dos tempos. A antiga sede do PPD (histórica igreja e velho cinema), que era um prédio decandente, resplandescia com uma pintura nova; do outro lado do largo, a sede do PCP, dantes o único edifício em condições naquele lugar, é hoje o único a precisar de pintura nova...

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