Afinal, Paulo Gorjão voltou aos posts e o Bloguítica não acabou, como foi anunciado pelo próprio. Terá sido apenas uma experiência do autor para testar a reacção dos seus leitores?
Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
31 janeiro 2005
Espelho mau, espelho mau - XI
O viril sr. Lopes disse num almoço com mulheres - onde estas lhe glosaram as virtudes de playboy - que o outro candidato gostava mais "de outros colos". Isto quer dizer o quê? Que Santana está de cabeça perdida e que se adivinha uma campanha suja.
Quando olhamos para o País vemos um filme dos Mounty Pyton. E rimos. Depois percebemos que também lá estamos dentro e desesperamos.
Quando olhamos para o País vemos um filme dos Mounty Pyton. E rimos. Depois percebemos que também lá estamos dentro e desesperamos.
28 janeiro 2005
O Bloguítica, blogue de Paulo Gorjão,terminou ontem, assim, de repente. É pena. A blogosfera fica mais pobre e nós também.
Espelho mau, espelho mau - X
O sr. Lopes vai processar as empresas de sondagens se os resultados não forem os que estão a ser (repetidamente) previstos: Santana mostra aqui toda a sua raça democrática. E se o resultado do PSD ainda for pior do que as previsões, quem é que ele processa?
Entrada no meu bloco de notas Journal de Bord, com o Corto Maltese na capa, minha companhia sempre que me considero em viagem:
"26SET04 - Washington DC, Museu do Holocausto
Aqui à minha frente estão os beliches de madeira que dizem ser os de Auschwitz, onde se deitaram tantos milhares de pessoas destinadas a morrer a seguir, como carneiros. Em carneirada para o matadouro, lentos, cruzaram aquelas portas de madeira, ali, as que explicam na legenda ser as do Bloco: os homens e as mulheres, e as crianças. Todos inocentes até do facto de estarem vivos, o seu único crime. Enquanto escrevo, oiço as vozes que ecoam com os relatos dos sobreviventes. O que mais me impressiona: os objectos pessoais desalmados, o mar de sapatos desirmanados, o monte de malas de viagem cada uma com um nome, e a um nome corresponde alguém, e em cada objecto está um eu. E os cabelos... Pior de tudo: as experiências laboratoriais, filmadas pelos nazis, que vemos numas televisões colocadas num fosso, para as crianças não conseguirem olhar. A frieza da morte. A banalidade de tudo aquilo, uma profunda náusea. Tanta gente..."
"26SET04 - Washington DC, Museu do Holocausto
Aqui à minha frente estão os beliches de madeira que dizem ser os de Auschwitz, onde se deitaram tantos milhares de pessoas destinadas a morrer a seguir, como carneiros. Em carneirada para o matadouro, lentos, cruzaram aquelas portas de madeira, ali, as que explicam na legenda ser as do Bloco: os homens e as mulheres, e as crianças. Todos inocentes até do facto de estarem vivos, o seu único crime. Enquanto escrevo, oiço as vozes que ecoam com os relatos dos sobreviventes. O que mais me impressiona: os objectos pessoais desalmados, o mar de sapatos desirmanados, o monte de malas de viagem cada uma com um nome, e a um nome corresponde alguém, e em cada objecto está um eu. E os cabelos... Pior de tudo: as experiências laboratoriais, filmadas pelos nazis, que vemos numas televisões colocadas num fosso, para as crianças não conseguirem olhar. A frieza da morte. A banalidade de tudo aquilo, uma profunda náusea. Tanta gente..."
27 janeiro 2005
Auschwitz, 60 anos, diz respeito a todos: que faríamos nós para o evitar?
Isto diz respeito a toda a gente: a discussão sobre Auschwitz já não deve ser acerca da impossibilidade de pensar sobre um mal infinitamente absoluto, ou que entretanto se tornou absolutamente banal para os seus praticantes. A comemoração dos 60 anos da libertação do campo de extermínio nazi deve fazer-nos pensar também noutras coisas. Durante aqueles anos houve demasiada gente a saber o que se passava e não fez nada: na Alemanha, na Croácia, na Roménia, em França, na Polónia, por todo o lado. Cidadãos que seriam pessoas decentes numa sociedade em paz pactuaram com o crime inimaginável por omissão (é claro que há as excepções, mas são tão excepcionais que os seus nomes são conhecidos: no Museu do Holocausto em Washington há uma exposição com as fotografias e os nomes daqueles que ajudaram os judeus. Entre eles o do cônsul português de Bordéus).
Isto diz respeito a cada um de nós: o que é que eu faria, como me comportaria perante uma situação idêntica? Do que estaríamos dispostos a abdicar e como lutaríamos para que não fosse posta em marcha uma máquina tão tenebrosa debaixo dos nossos olhos? No limite, se assumirmos que jamais pactuávamos com uma sociedade que nos impelia para a prática de crimes, podemos aplicar esta ética do comportamento a outras situações menos catastróficas: se eu não pactuaria com situações limite como esta, mesmo que o pagasse com a privação da liberdade ou da própria vida (é fácil dizer), qual é o meu limite enquanto cidadão? Quais são os crimes que eu permito que o meu Estado cometa? Qual é o meu contributo para contrariar a passividade geral, que leva a aceitar as coisas tal como elas estão? Por que razão uma ditadura durou tanto tempo em Portugal?
Finalmente: qual é a diferença entre mim, cidadão português comum, e os alemães normais que viviam subjugados ao nazismo, mas que nada fizeram quando viram o filhos chamados para aquela guerra, ou quando perceberam que as famílias judias estavam a desaparecer? Se países de gente civilizada permitiram o Holocausto, o que nos garante que hoje estamos a salvo de nós mesmos e da natureza do mal que nos assola de tempos a tempos, e é conteporizado pela passividade de grandes maiorias? A resignação, tanto do lado dos carrascos como das vítimas, é uma das calamidades da Humanidade. Esta efeméride devia lembrar-nos disso.
Isto diz respeito a cada um de nós: o que é que eu faria, como me comportaria perante uma situação idêntica? Do que estaríamos dispostos a abdicar e como lutaríamos para que não fosse posta em marcha uma máquina tão tenebrosa debaixo dos nossos olhos? No limite, se assumirmos que jamais pactuávamos com uma sociedade que nos impelia para a prática de crimes, podemos aplicar esta ética do comportamento a outras situações menos catastróficas: se eu não pactuaria com situações limite como esta, mesmo que o pagasse com a privação da liberdade ou da própria vida (é fácil dizer), qual é o meu limite enquanto cidadão? Quais são os crimes que eu permito que o meu Estado cometa? Qual é o meu contributo para contrariar a passividade geral, que leva a aceitar as coisas tal como elas estão? Por que razão uma ditadura durou tanto tempo em Portugal?
Finalmente: qual é a diferença entre mim, cidadão português comum, e os alemães normais que viviam subjugados ao nazismo, mas que nada fizeram quando viram o filhos chamados para aquela guerra, ou quando perceberam que as famílias judias estavam a desaparecer? Se países de gente civilizada permitiram o Holocausto, o que nos garante que hoje estamos a salvo de nós mesmos e da natureza do mal que nos assola de tempos a tempos, e é conteporizado pela passividade de grandes maiorias? A resignação, tanto do lado dos carrascos como das vítimas, é uma das calamidades da Humanidade. Esta efeméride devia lembrar-nos disso.
26 janeiro 2005
Num artigo publicado no último número da revista Relações Internacionais, Mónica Dias transcreve uma citação de Woodrow Wilson sobre a democracia:
Democracy is, of course, wrongly conceived when treated as merely a body of doctrine. It is a stage of development. The democratic state is not a piece of developed theory, but a piece of developed habit. It is not created by aspirations or by new faith; it is built up by slow custom. Its process is experience, its basis old wont, its meaning national organic oneness and effectual life. It comes, like manhood, as the fruit of youth: immature peoples cannot have it, and the maturity to which it is vouchsafed is the maturity of freedom and self-control, and no other. It is conduct, and its only stable foundation is character.
Isto poderá esclarecer-nos sobre o fundamento das supostas analogias entre os pensamentos de política externa de Woodrow Wilson e de George W. Bush. Há em ambos uma mistura de idealismo, de messianismo e de excepcionalismo americano. Mas na política de Bush parece existir também o desejo de libertar à força povos não democráticos, que a aproxima mais do imperialismo napoleónico que do idealismo wilsoniano. Ambos acreditam que um mundo de estados democráticos será mais pacífico (e mais seguro para os próprios Estados Unidos), mas parecem divergir sobre a viabilidade de transições para a democracia impostas por uma força militar externa. No Domingo, as eleições no Iraque poderão ajudar a provar uma das teses.
Democracy is, of course, wrongly conceived when treated as merely a body of doctrine. It is a stage of development. The democratic state is not a piece of developed theory, but a piece of developed habit. It is not created by aspirations or by new faith; it is built up by slow custom. Its process is experience, its basis old wont, its meaning national organic oneness and effectual life. It comes, like manhood, as the fruit of youth: immature peoples cannot have it, and the maturity to which it is vouchsafed is the maturity of freedom and self-control, and no other. It is conduct, and its only stable foundation is character.
Isto poderá esclarecer-nos sobre o fundamento das supostas analogias entre os pensamentos de política externa de Woodrow Wilson e de George W. Bush. Há em ambos uma mistura de idealismo, de messianismo e de excepcionalismo americano. Mas na política de Bush parece existir também o desejo de libertar à força povos não democráticos, que a aproxima mais do imperialismo napoleónico que do idealismo wilsoniano. Ambos acreditam que um mundo de estados democráticos será mais pacífico (e mais seguro para os próprios Estados Unidos), mas parecem divergir sobre a viabilidade de transições para a democracia impostas por uma força militar externa. No Domingo, as eleições no Iraque poderão ajudar a provar uma das teses.
Há três dias que me ando a preparar para a chegada da vaga de frio polar. Comprei algumas latas de atum, tirei as luvas do fundo da gaveta e só não calafetei portas e janelas porque nunca percebi muito bem a técnica. Tenho saído pouco de casa, sinto-me como um americano dos anos 50 que construiu um bunker no quintal para sobreviver a um inverno nuclear. A vaga está atrasada mas a data de validade do Atum Ramirez só expira no final de 2008. A minha mãe manda-me ter cuidado com os aquecedores.
A vida é feita destas escolhas difíceis. Hoje há dois clássicos em horários incompatíveis. Dá o Benfica-Sporting na RTP 1 (19h45) e passa o Garganta Funda na Cinemateca (21h30). Nunca vi o filme, por isso não sei se a técnica da Linda Lovelace é melhor que a do Pedro Barbosa (ao que parece, joga bem com ambas as amígdalas). Provavelmente ainda não é hoje que vou ficar a saber.
24 janeiro 2005
Antologia da facada
Neste país político fala-se muito agora de facadas nas costas, ou onde quer que sejam elas, mas não há facada como esta facada escrita por André Malraux na "Condição Humana" (Livros do Brasil, trad. Jorge de Sena):
"(...) Iria agora acordar! Com uma pancada capaz de atravessar uma tábua, Tchen deteve-o num ruído de musselina rasgada, misturado a um choque surdo. Sensível até à ponta da lâmina, sentiu o corpo saltar de ricochete para ele, devolvido pelo colchão de arame. Retesou raivosamente o braço para o conter: as pernas vieram juntas para o peito, como atadas uma à outra; distenderam-se num repente. Deveria ferir de novo; mas como retirar o punhal? O corpo continuava de lado, instável e, apesar da convulsão que acabara de o sacudir, Tchen tinha a impressão de o manter fixado à cama com a sua curta arma sobre a qual pesava com toda a sua massa. Pelo enorme buraco do mosquiteiro via-o demasiado bem: as pálpebras tinham-se aberto - teria acordado? -, os olhos estavam brancos. Ao longo do punhal o sangue começava a surgir, negro àquela falsa luz. No seu peso, o corpo, prestes a tombar para a direita ou para a esquerda, encontrava ainda vida. Tchen não podia largar o punhal. Através da arma, do seu braço retesado, e a sua espádua dorida, estabelecia-se uma comunicação de angústia entre aquele corpo e ele até ao fundo do seu peito até ao coração convulso, única coisa que mexia no quarto. Estava absolutamente imóvel; (...) sem que nada de aparente tivesse acontecido, teve a certeza que aquele homem estava morto (...). Estava só com a morte, num lugar sem homens, molemente esmagado ao mesmo tempo pelo horror e pelo gosto do sangue".
"(...) Iria agora acordar! Com uma pancada capaz de atravessar uma tábua, Tchen deteve-o num ruído de musselina rasgada, misturado a um choque surdo. Sensível até à ponta da lâmina, sentiu o corpo saltar de ricochete para ele, devolvido pelo colchão de arame. Retesou raivosamente o braço para o conter: as pernas vieram juntas para o peito, como atadas uma à outra; distenderam-se num repente. Deveria ferir de novo; mas como retirar o punhal? O corpo continuava de lado, instável e, apesar da convulsão que acabara de o sacudir, Tchen tinha a impressão de o manter fixado à cama com a sua curta arma sobre a qual pesava com toda a sua massa. Pelo enorme buraco do mosquiteiro via-o demasiado bem: as pálpebras tinham-se aberto - teria acordado? -, os olhos estavam brancos. Ao longo do punhal o sangue começava a surgir, negro àquela falsa luz. No seu peso, o corpo, prestes a tombar para a direita ou para a esquerda, encontrava ainda vida. Tchen não podia largar o punhal. Através da arma, do seu braço retesado, e a sua espádua dorida, estabelecia-se uma comunicação de angústia entre aquele corpo e ele até ao fundo do seu peito até ao coração convulso, única coisa que mexia no quarto. Estava absolutamente imóvel; (...) sem que nada de aparente tivesse acontecido, teve a certeza que aquele homem estava morto (...). Estava só com a morte, num lugar sem homens, molemente esmagado ao mesmo tempo pelo horror e pelo gosto do sangue".
23 janeiro 2005
Do outro lado do espelho - VII
Piu! O Albino ali sentado a fumar a ver os pássaros, prisioneiro e ao mesmo tempo carcereiro, sumia-se a pouco e pouco como o uísque da garrafa de JB. Há duas semanas que tinha dado naquilo, para desespero da mulher e da filha. Estava doido. Fechava-se na gaiola dos pássaros, ou melhor, na casa do quintal feita por ele para guardar os pássaros, e ficava ali todo o dia a ver as aves, a soprar fumaças e a somatizar o álcool. Piu! Os canários, sobretudo os amarelos, gostavam daquela estranha presença quieta de olhar vazio. E ele via nos canários alaranjados uma marca de nobreza vai lá saber-se porquê, talvez por assistir a certas reverências quando esses mudavam de poleiro. A meio do dia deixava de pensar. Piu! Da parte da manhã pensava na pesca, nas saudades de ir à pesca, mas trazia sempre tanto peixe, tinha a arca congeladora tão cheia, que acabava por comer só peixe congelado. Não valia a pena, como tanta coisa na vida. Piu! Sabia que a parte da tarde começava quando a mulher batia à porta da gaiola e lhe dizia que eram horas de almoçar. Mas ele não comia. Piu! E da parte da tarde não pensava porque o cérebro lhe parava. Piu! Quando o Albino começou a comer alpista e a defecar no chão da gaiola enquanto piava em cima de uma cadeira, a mulher assustada, sabendo das histórias suicidas na família, chamou o médico e os bombeiros. Ele só se deixou levar quando chegou o veterinário. "Não estou doente", disse. "Tenho só um grãozinho na asa. Piu!".
20 janeiro 2005
Tenho lido, de modo intermitente, a Correspondência entre António José Saraiva e Óscar Lopes. Alguns assuntos discutidos: a interpretação dos Lusíadas, o Positivismo e o Racionalismo, Montaigne e Descartes, o Budismo, a metáfora do mundo interior, a unificação (subjectivo-[ob]jectivo) pela teoria da praxis de Marx, o Maneirismo literário. Mas há um tema transversal à maioria das cartas: as dificuldades financeiras. Talvez isso possa ser interpretado simplesmente como uma variação do velho problema filosófico da relação mente-corpo.
Isto é só um exemplo (ou a tradução como subsídio de desemprego): Um moço meu amigo de grande valor, que está a estudar aqui, encontra-se em grande dificuldade porque não obteve uma bolsa do governo francês com que contava. Teve a melhor classificação de Lógica da Sorbonne de há vários anos a esta parte. Trabalha com o L. Goldmann. Para se aguentar procura trabalho de traduções em Portugal. Chama-se Fernando Gil – sabes de alguma tradução que lhe possa ser confiada? (António José Saraiva, 30 de Maio de 1963.)
Isto é só um exemplo (ou a tradução como subsídio de desemprego): Um moço meu amigo de grande valor, que está a estudar aqui, encontra-se em grande dificuldade porque não obteve uma bolsa do governo francês com que contava. Teve a melhor classificação de Lógica da Sorbonne de há vários anos a esta parte. Trabalha com o L. Goldmann. Para se aguentar procura trabalho de traduções em Portugal. Chama-se Fernando Gil – sabes de alguma tradução que lhe possa ser confiada? (António José Saraiva, 30 de Maio de 1963.)
19 janeiro 2005
Private Joke
década, s. fem. Série de dez; dezena. Período de dez anos ou dez dias. Narrativa hist. que descreve um período de dez anos.
(a carta da paixão)
Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça
[...]
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
[...]
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
Bergman e pipocas. Não é com frequência que conseguimos juntar as duas palavras numa frase. (A responsabilidade é repartida entre o realizador sueco, a Joana e os cinemas Millenium Alvaláxia. A Joana quis comprar um chocolate, mas eu sugeri-lhe as pipocas só para poder escrever este post e frustrar possíveis acusações de pseudo-intelectualismo.)
Saraband é um filme assombroso e assombrado, com planos arrumados, longos diálogos e monólogos que nos revelam como os indivíduos podem ser bons e maus para diferentes pessoas, em diferentes situações, a complexidade das relações familiares. Apesar de nunca o ter estudado convenientemente, julgo que foi Foucault que escreveu sobre a opressão por parte das pessoas que nos são mais próximas, dos limites à liberdade auto-impostos. Julgo que o filme é sobre isso ou também sobre isso. O resto é sobre as outras obsessões de Bergman, como o sentimento de perda e o passar do tempo.
Nota: Desconfortável, na última fila do cinema, a Joana só conseguiu saborear convenientemente as pipocas quando Johan decidiu ouvir música clássica num volume bastante elevado. Obrigado ao compositor, que não consegui identificar.
Saraband é um filme assombroso e assombrado, com planos arrumados, longos diálogos e monólogos que nos revelam como os indivíduos podem ser bons e maus para diferentes pessoas, em diferentes situações, a complexidade das relações familiares. Apesar de nunca o ter estudado convenientemente, julgo que foi Foucault que escreveu sobre a opressão por parte das pessoas que nos são mais próximas, dos limites à liberdade auto-impostos. Julgo que o filme é sobre isso ou também sobre isso. O resto é sobre as outras obsessões de Bergman, como o sentimento de perda e o passar do tempo.
Nota: Desconfortável, na última fila do cinema, a Joana só conseguiu saborear convenientemente as pipocas quando Johan decidiu ouvir música clássica num volume bastante elevado. Obrigado ao compositor, que não consegui identificar.
18 janeiro 2005
Leio: também o ar na casa é diferente desde que tenho estas janelas duplas novas. Dei por este facto mediante um pão embalado numa película. Abri com dificuldade a embalagem. Visto que não o pude realizar apenas com a força das minhas mãos, recorri a uma faca. A introdução da faca desencadeou um som curiosamente comovente que tinha quase algo de um suspiro, até de um último suspiro. Ao dar uma dentada no pão tinha a sensação ESTE PÃO ESTÁ MORTO. Absorveu o ar e morreu disso. Várias vezes ao dia abro as janelas inquietantes, apesar do barulho do trânsito.
Música Láctea (Alexandria, 2004) é um monólogo sobre a semelhança entre os reflexos de detergente na superfície do chá e as manchas de petróleo no mar, definições do dicionário Brockhaus, a relação entre o medo e a asma e outras lógicas do quotidiano. Thomas Strittmatter absorveu demasiado ar, morreu em 1995 com 33 anos.
Música Láctea (Alexandria, 2004) é um monólogo sobre a semelhança entre os reflexos de detergente na superfície do chá e as manchas de petróleo no mar, definições do dicionário Brockhaus, a relação entre o medo e a asma e outras lógicas do quotidiano. Thomas Strittmatter absorveu demasiado ar, morreu em 1995 com 33 anos.
Pitbull!! Terrier!!!
No final, parecia um filme do Kusturica: toda a gente bêbeda num casamento a dançar em cima da mesa e a dar tiros para o ar. Há meia hora acabou o concerto da No Smoking Band, ou Zabranjeno Pusenje, no Coliseu dos Recreios de Lisboa, com Emir Kusturica (o cineasta) na guitarra e uma banda de nove músicos loucos a fazer uma paródia que não devia caber numa só noite. O segundo encore acabou com com dezenas de miúdas do público a dançar no palco, no meio dos músicos (ou seriam artistas de circo?), numa explosão de energia onde só não houve tiros de pistolas, nem guerra fraticida, nem garrafas partidas na cabeça, nem gangsters a cheirar coca nos carris do comboio, nem putas a fugir de mafiosos balcânicos, nem gordas a arracar pregos com a força do cu (como nos filmes). Houve o mesmo ritmo da alegria cigana do cinema, a subversão do óbvio, a diversão pura (Pitbull!! -- Terrier!!)... E os números de ilusionismo do violinista, que não tocou de pernas para o ar mas fez outras acrobacias musicais. Há noites que valem por todo o dia, como esta. Uma paródia.
13 janeiro 2005
Através de UM ANO na blogosfera!
Para comemorar o primeiro aniversário do nosso blogue reeditamos o post inaugural, o Primeiro reflexo:
O espelho é um objecto estranho. Por reflectir a realidade, e sobre ela, mas não ser a própria realidade, abre infinitas possibilidades de distorção. Por isso, neste blogue, teremos por vezes uma realidade convexa ou côncava. Basta dobrarmos ligeiramente a superfície, mais por motivos estéticos do que ideológicos. Não para distorcer a realidade, mas para construir outras representações dela. A sensação poderá ser, para quem lê, a de caminhar pelo meio das galerias de espelhos dos parques de diversões, onde nós e tudo o resto que as atravessa passa do grotesco ao ridículo com um passo, do semelhante ao desigual. Também gostamos do jogo de distorcer pessoas, devolvendo-lhes depois os rostos intactos.
Os espelhos têm ainda outra característica, que não escapa a todos que se debruçam sobre eles*: a profundidade. Se nos aproximarmos, parece que podemos cair para o outro lado. Neste blogue seremos seres intermédios entre Giordano Bruno e Alice: acreditamos na infinidade dos mundos e usamos os espelhos para entrar neles. No mundo da política, da sociedade, da cultura, da ciência. Entramos e tudo nos é estranho. Contamos o que vemos. Regressamos aparentemente iguais. Depois ardemos todas as noites nas fogueiras ateadas com as folhas escritas.
E espelhos somos nós também, porque reflectimos as realidades conforme a nossa superfície foi sendo talhada: não pronunciamos verdades absolutas, que não as temos, mas aquelas que o nosso espelho de água devolve aos que se miram em nós, como o lago que chorou a morte de Narciso porque se reflectia nos olhos do jovem enquanto ele admirava o seu próprio reflexo. É através de um falacioso espelho de feira - a maneira de cada um de nós ver o mundo -, que aqui projectamos a imagem que temos dele.
Sejam bem-vindos outra vez
Tiago Araújo/Vítor Hermes (ou Matos, conforme a circunstância)
*Como Umberto Eco (Sobre os Espelhos e Outros Ensaios ,Difel) ou Jorge Luis Borges (Obras Completas, Teorema).
O espelho é um objecto estranho. Por reflectir a realidade, e sobre ela, mas não ser a própria realidade, abre infinitas possibilidades de distorção. Por isso, neste blogue, teremos por vezes uma realidade convexa ou côncava. Basta dobrarmos ligeiramente a superfície, mais por motivos estéticos do que ideológicos. Não para distorcer a realidade, mas para construir outras representações dela. A sensação poderá ser, para quem lê, a de caminhar pelo meio das galerias de espelhos dos parques de diversões, onde nós e tudo o resto que as atravessa passa do grotesco ao ridículo com um passo, do semelhante ao desigual. Também gostamos do jogo de distorcer pessoas, devolvendo-lhes depois os rostos intactos.
Os espelhos têm ainda outra característica, que não escapa a todos que se debruçam sobre eles*: a profundidade. Se nos aproximarmos, parece que podemos cair para o outro lado. Neste blogue seremos seres intermédios entre Giordano Bruno e Alice: acreditamos na infinidade dos mundos e usamos os espelhos para entrar neles. No mundo da política, da sociedade, da cultura, da ciência. Entramos e tudo nos é estranho. Contamos o que vemos. Regressamos aparentemente iguais. Depois ardemos todas as noites nas fogueiras ateadas com as folhas escritas.
E espelhos somos nós também, porque reflectimos as realidades conforme a nossa superfície foi sendo talhada: não pronunciamos verdades absolutas, que não as temos, mas aquelas que o nosso espelho de água devolve aos que se miram em nós, como o lago que chorou a morte de Narciso porque se reflectia nos olhos do jovem enquanto ele admirava o seu próprio reflexo. É através de um falacioso espelho de feira - a maneira de cada um de nós ver o mundo -, que aqui projectamos a imagem que temos dele.
Sejam bem-vindos outra vez
Tiago Araújo/Vítor Hermes (ou Matos, conforme a circunstância)
*Como Umberto Eco (Sobre os Espelhos e Outros Ensaios ,Difel) ou Jorge Luis Borges (Obras Completas, Teorema).
Surgiram dois bons blogues com o começo do ano: o Margens de Erro, do Pedro Magalhães, e o da literatura, do valter hugo mãe, do Jorge Melícias, do Pedro Sena-Lino e do João Paulo Sousa. Na próxima reunião do comité central do blogue vou propor que sejam pendurados aqui ao lado.
Este blogue fez um ano há alguns dias. Esquecemo-nos de comemorar. Pensei escrever um post sobre a relação entre isso e os primeiros sintomas de alzheimer, mas já não me lembro muito bem do que queria dizer nele.
Este blogue fez um ano há alguns dias. Esquecemo-nos de comemorar. Pensei escrever um post sobre a relação entre isso e os primeiros sintomas de alzheimer, mas já não me lembro muito bem do que queria dizer nele.
11 janeiro 2005
05 janeiro 2005
Espelho mau, espelho mau - IX
Não seria de estranhar, se ele próprio não fosse um homem de futebol. Santana Lopes pensa de forma aritmética e não matemática. Faz contas. Não resolve equações. Por isso, quando os cálculos se desenrolam, chega ao fim com um resultado tão diferente daquele que candidamente tinha previsto. O futebol tem a ver com o que se segue:
1. Pôncio Monteiro, debatedor portista no Donos da Bola (Santana era o do Sporting e Fernando Seara o do Benfica), foi escolhido como nº2 no distrito do Porto para sacar votos aos adeptos do FCP que estavam irremediavelmente perdidos por causa das guerras de Rui Rio com o clube da cidade.
2. Pôncio, mesmo respondendo que sim ao apelo de Santana, acabou por dizer o que verdadeiramente pensava de Rio, porque não é um político, e porque gosta mais do seu clube do que do seu partido. E, já agora, dizer mal de Rio até dava votos ao PSD entre os portistas mais ferrenhos;
3. Logo, foi um erro político convidar o senhor, porque misturar estas coisas dá sempre mau resultado, quer as estratégias funcionem quer não funcionem. Neste caso o critério foi péssimo. 4. Pôncio foi afastado através de um processo no mínimo estranho, uma situação muito pior do que ter sido convidado. Santana foi mais uma vez enxovalhado em público com argumentos não muito diferentes daqueles que o seu ex-amigo Henrique Chaves usou.
5. Com tudo isto, o PSD não só não conquista os portistas que recusam votar PPD, como fez aparecer outra mão cheia deles que nem quer ouvir falar no partido.
6. Santana fez as contas de somar e de subtrair com o coração (sabe como as pessoas reagem emotivamente ao futebol), e obteve mais um resultado negativo porque não percebeu a equação onde estava a mexer.
1. Pôncio Monteiro, debatedor portista no Donos da Bola (Santana era o do Sporting e Fernando Seara o do Benfica), foi escolhido como nº2 no distrito do Porto para sacar votos aos adeptos do FCP que estavam irremediavelmente perdidos por causa das guerras de Rui Rio com o clube da cidade.
2. Pôncio, mesmo respondendo que sim ao apelo de Santana, acabou por dizer o que verdadeiramente pensava de Rio, porque não é um político, e porque gosta mais do seu clube do que do seu partido. E, já agora, dizer mal de Rio até dava votos ao PSD entre os portistas mais ferrenhos;
3. Logo, foi um erro político convidar o senhor, porque misturar estas coisas dá sempre mau resultado, quer as estratégias funcionem quer não funcionem. Neste caso o critério foi péssimo. 4. Pôncio foi afastado através de um processo no mínimo estranho, uma situação muito pior do que ter sido convidado. Santana foi mais uma vez enxovalhado em público com argumentos não muito diferentes daqueles que o seu ex-amigo Henrique Chaves usou.
5. Com tudo isto, o PSD não só não conquista os portistas que recusam votar PPD, como fez aparecer outra mão cheia deles que nem quer ouvir falar no partido.
6. Santana fez as contas de somar e de subtrair com o coração (sabe como as pessoas reagem emotivamente ao futebol), e obteve mais um resultado negativo porque não percebeu a equação onde estava a mexer.
04 janeiro 2005
A Adília Lopes publicou Poemas Novos (&etc). São novos e mais curtos, como têm sido os dos últimos tempos. Individualmente, têm menos interesse do que as longas narrativas de outros livros (O Decote da Dama de Espadas, A Continuação do Fim do Mundo ou Florbela Espanca Espanca). Intercalados com citações, observações e comentários, reconduzem-nos ao universo de Adília a metamorfosear-se em Maria José de Oliveira.
(Nota posterior: Apesar de à primeira leitura poder não parecer, este texto é uma tentativa de crítica positiva ao livro. Li e gostei.)
(Nota posterior: Apesar de à primeira leitura poder não parecer, este texto é uma tentativa de crítica positiva ao livro. Li e gostei.)
No Mercador de Veneza, Antonio dá uma libra da sua carne como garantia para um empréstimo de três mil ducados por três meses. Quando o prazo termina e não consegue devolver o dinheiro, Shylock prepara-se para lhe cortar a pound of flesh nearest his heart. Para mim, a solução mais evidente e teatral seria retirar-lhe o próprio coração, que é um músculo e carne. Um atlas de anatomia explica-me a razão. Uma libra corresponde a 453,597 gramas e o coração humano médio pesa cerca de 300 gramas. Como em outras peças de Shakespeare, o coração não seria suficiente.
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