30 setembro 2007

Descrição

É manhã de domingo e chove. Pusemos a tocar o Music for Egon Schiele de Rachel’s. O som do chuveiro da J. reproduz o da chuva no interior da casa. A L. gatinha sobre o soalho de madeira brilhante e clara, brinca com uma das minhas botas. As vidraças têm riscos de bátegas do lado de fora e os nossos rostos encostados do lado de dentro. A água escorre pelos carris inclinados do eléctrico. Seguem paralelos para lá da curva em que os deixamos de os ver.

21 setembro 2007

A biografia de cada dia

"Um dia onde cabe uma vida inteira". Era o que eu escreveria na cinta do "Sábado", do Ian McEwan, se trabalhasse na Gradiva. Finalmente li-o. Num instante. Mas talvez na Odisseia dublinense que andas a ler, Tiago, caiba mais alguma coisa no dia que apenas uma vida inteira. As biografias afligem-me porque resumem as grandes vidas a um livro, a um artigo de jornal, a um obituário, a uma frase. Deviam ser escritas assim: um livro para cada dia de vida dos biografados e cada um de nós seria uma biblioteca imensa.

30 agosto 2007

A primeira coisa parecida com uma palavra da L. foi Olá. Não sei se é um indício de que vai ser muito simpática ou de que vai gostar tanto de gelados como os pais.

29 agosto 2007

Um banho de imersão ao chegar a casa, sem medo de molhar o livro. A marca no capítulo dezassete, onde se fica a saber que L. Bloom admira na água, entre outras coisas, a inquietação das suas ondas e partículas superficiais visitando em turnos todos os pontos do litoral; o seu apaziguamento após a devastação. Andei perdido neste livro durante dez anos ou algumas semanas, de ilha em ilha. Agora estou quase a chegar a Ítaca, no n.º 7 de Eccles Street, Dublin. Regressei a casa e a temperatura da água vai diminuindo gradualmente na banheira, sobre a praia.

23 agosto 2007

Posta de Nicósia - on religion

O Tiago tem razão. Aliás, conta-se uma história que ilustra bem esse exemplo, sobre os irlandeses. Encontravam-se dois e perguntavam-se: és ateu católico ou ateu protestante? É isso, a religião como produtora de uma determinada cultura. Nesse sentido também sou um ateu católico. Não sou, comprovadamente, um ateu muçulmano.

Penso que a religião deve ser absolutamente respeitada. Mas do ponto de vista indivudual. Ninguém tem nada a ver com a confissão que quem quer que seja professa. Isso é uma coisa de cada um para si mesmo. O problema é que as igrejas são comunidades, e as comunidades são fenómenos grupais e os grupos projectam uma mundovisão, e depois há mundovisões que chocam e às vezes isso é o fim do mundo.

Escrevo em Nicósia, capital de Chipre. Cheguei hoje de Beirute. Ora Beirute é um dos muitos exemplos de como uma sociedade em que se a religião não saísse da soleira da porta ou do adro do templo, tudo seria mais fácil para todos. Neste contexto, a religião não tem qualquer utilidade para a política: há cristão, cristãos maronitas, xiitas, sunitas, eu sei lá. Os cristão têm o presidente, os sunitas o primeiro-ministro e os xiitas o presidente do parlamento. Ou seja, para além de todas as confusões, nem sequer falam uns com os outros. acredito nos benefícios individuais da religião em muitos casos, mas duvido muito dos benefícios da religião para a política.

Por que sou cristão

(O texto do Vítor é um bom ponto de partida para uma reflexão que há muito andava para fazer. O título é baseado no de uma palestra proferida por Bertrand Russell em 1927: Why I Am not a Christian.)

Em todos os congressos há alguém na plateia que, depois de o orador ter terminado, se levanta, pede a palavra e começa a descrever uma qualquer ideia excêntrica. Chegou a minha vez de pedir o microfone: sou um ateu católico. Não acredito em qualquer tipo de transcendência, sobrenatural ou misticismo. Acredito que o universo existia antes de nós e que eu não existirei depois de mim. Sou culturalmente católico. Há rituais que cumpro porque sinto que fazem sentido. Se tivesse crescido nas selvas da Amazónia, provavelmente tinha pintado o tronco e jejuado para marcar a puberdade. Assim, fui crismado. O ponto essencial é não me sentir vinculado a nenhuma autoridade. Aceito o que quero e rejeito o resto. Basta-me que Jesus Cristo tenha sido homem. Acredito na tolerância, no perdão com arrependimento e no auxílio aos mais desfavorecidos. Não é uma posição confortável, mas sinto que seria uma hipocrisia maior rejeitar totalmente a minha educação católica sem me apetecer, só por ser mais popular.
A utilidade social da religião é uma ideia que alguns autores foram trazendo para a filosofia política ao longo dos tempos. Não é essa a minha posição. É uma religião meramente pessoal. Aguardo serenamente a excomunhão e o relâmpago.

A mão do Baptista

No Montenegro, o mais jovem país do mundo, há uma mão de São João Baptista, num mosteiro ortodoxo. Na mesma urna, que os monges adoram e abrem para mostrar aos turistas, está um lenho da cruz de Cristo. Olhei para aqueles objectos sagrados a ver se sentia alguma coisa, se me invadia assim um pequeno frisson religioso e nada. Tornei-me ateu e não há nada a fazer.

22 agosto 2007

Uma enorme indolência. Desejar a destino de Hans Castorp, na Montanha Mágica: ir visitar um primo a uma casa de repouso e acabar internado. Uma cadeira longa, uma manta nas pernas, um livro aberto abandonado sobre o peito. Apanhar o comboio que desce para o vale, eventualmente, mas só lá para o Outono.

21 agosto 2007

Um passageiro, sempre com a ponta do bilhete a sair da ponta dos dedos, para mostrá-lo logo que o peçam, para confirmarem o direito à viagem, no banco de trás, o vidro baço, entre a gravidade e a graça, num autocarro nocturno.

20 agosto 2007

French-kissing

Desdobrámos o mapa de estradas. A meio caminho entre Grândola e o Carvalhal há uma povoação chamada Beijinho de Água. Quando passámos por lá, na manhã seguinte, a placa indicava Brejinho de Água. Mais verosímil mas menos poético. Consultei vários mapas e o erro repete-se. Podemos facilmente imaginar um geógrafo solitário a esconder uma gralha por entre as linhas que se bifurcam e interseccionam. As prensas só tiveram depois de multiplicar o erro, torná-lo credível. A meio caminho entre dois lugares há um beijinho de água.

29 julho 2007

Hoje a temperatura está mais elevada fora do que dentro dos nossos corpos. A meteorologia aconselha à introspecção. Lá fora não há nada. Lisboa está quase deserta, com ilusões de água no alcatrão a escaldar. As circunstâncias excepcionais parecem justificar comportamentos excepcionais. A partir dos trinta e sete graus e meio as convenções sociais são abolidas. Na Rua Garrett uma mulher vendia poesia. Perguntei-lhe a quanto estava o poema. Dois euros, mais do que as cerejas. Perto de Belém, meia dúzia de crianças chapinhava dentro de uma fonte, sob o olhar atento das mães. Num parque de estacionamento público, no carro ao lado do nosso, um casal estava a ter sexo tórrido no banco de trás. Mudámos de lugar, para não os incomodarmos, apesar de a sombra ser a mais cerrada. Estendemos uma manta na relva, debaixo de uma árvore, frente ao rio.

25 julho 2007

Variação sobre uma frase de Nixon

Quando as democracias ocidentais reflectem sobre si próprias, imaginam-se Atenas, mas quando se olham ao espelho vêem Roma.

24 julho 2007

Segundo as más línguas da época, Epicuro gostava de fazer sessões tardias de filosofia, vomitava duas vezes por dia por excesso de comida e desfrutava da companhia de quatro senhoras, que apelidavam de Hedeia (Docinho), Erotion (Amorzinho), Nikidion (Pequena Vitória) e Mammarion (Grandes Mamas)*. Depois, já sabemos, veio a Escolástica, a questão dos universais, o imperativo categórico e a filosofia nunca mais foi a mesma.

(* A fonte da história é o livro de Anthony Gottlieb, The Dream of Reason)

20 julho 2007

Quem me conhece sabe que os meus genes heterossexuais foram totalmente dirigidos para as mulheres. Não sobrou nada para os automóveis. Não sei quanto cilindros é suposto terem, nunca comprei a Automotor e acho que só a Volta à França em Bicicleta é mais aborrecida que o Grande Prémio do Mónaco. Durante alguns anos optei mesmo por não ter automóvel e fazer as minhas viagens pela cidade a ler no banco de trás dos transportes públicos.
Por motivos inesperados o prazer da condução voltou. Quando comprámos o carro, ele vinha com leitor de cassetes. As minhas e as da J. já estavam guardadas no caixote do lixo da história, no fundo de um armário, para onde o avanço da tecnologia as mandou. Foi possível voltar a ouvir coisas que nos ajudaram a suportar a adolescência, pela mesma ordem em que as gravámos, com os mesmos cortes abruptos. Ontem, cruzei a noite e o Eixo Norte-Sul ao som de Sugar Kane dos Sonic Youth.

13 julho 2007

O Vítor passou a outro e não ao mesmo e, como o Mário de Sá-Carneiro, o outro sou eu-próprio.
Os últimos cinco livros que li: Na Praia de Chesil, Ian McEwan; Civilization and Its Discontents, Sigmund Freud; Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss; A Estrada, Cormac McCarthy; A Peste, Albert Camus.

30 junho 2007

O dueto astronómico


O alemão Johannes Kepler sofria de visão dupla. O dinamarquês Tycho Brahe usava uma cana do nariz em prata para substituir a de osso, irremediavelmente danificada num duelo. Este par de improváveis astrónomos encontrou-se em Praga no magnífico ano de 1600. Ambos devem ter apreciado uma vista parecida a esta há 400 anos, sobre o Vlatva, com a lua a tocar nos pináculos do castelo da cidade. Kepler baseou-se na exactidão dos cálculos de Brahe - protegido do habsburgo Rudolfo II -, para aperfeiçoar o seu sistema solar, quando ainda se acreditava que era a terra o centro do universo. Esta história dava um romance: dois astrónomos e matemáticos brilhantes, um rei à beira da loucura e os charlatões que o rodeavam.

A Ponte que faz existir

No maior ícone de Praga, a ponte medieval Carlos IV, acotovelam-se os turistas. Para ouvir falar checo sobre a ponte, é preciso lá chegar antes das oito da manhã, quando ainda nem há vendedores de bugigandas instalados. A ponte define, faz existir, não se limita a ligar margens que já lá estão. É verdade. Escreveu Heidegger.

«A ponte reúne, enquanto passagem que cruza, ante as divindades - quer pensemos explicitamente, ou visivelmente dermos graças pela sua presença como na figura do santo da ponte, quer essa presença divina seja obstruída ou mesmo afastada completamente. A ponte reúne em si e a seu modo Terra e Céu, divindades e mortais»

Heidegger, citado por Banville em Imagens de Praga




Praça, sol e cerveja



Diz Banville que a «cerveja checa sabe a campos de feno crestando sob o sol de Verão». Na verdade, bebi muita cerveja checa, meio litro de cada vez, debaixo de um sol esplêndido enquanto em Lisboa chovia. Esta praça da Cidade Velha, como as praças de todas as velhas capitais europeias viu mortes e execuções, invasores a chegar e invasores a ir, viu histórias que nos dias de hoje custa a crer.

Praga, livros e papel pardo

Praga é uma cidade bela e aprazível, e mais seria não fossem as hordas de turistas a deambular a toda a hora (aliás, como nós). Como o irlandês Banville escreveu, os checos não parecem um povo alegre. Mas há grandes coincidências, lá isso há. O hábito de forrar os livros com papel pardo, por exemplo: para evitar os informadores? Hoje não. Tiago, tu deves saber responder a esta dúvida existencial.

«Os habitantes de Praga são os mais circunspectos citadinos. Passageiros nos eléctricos e no metro retiram cuidadosamente a sobrecapa dos livros que trouxeram para ler durante a viagem, por mais inócua que seja; alguns chegam mesmo a encaderná-los com papel castanho para ocultar o título das lombadas. Compreensível, claro, numa cidade há tanto tempo tão cheia de informadores, e os velhos hábitos são difíceis de abandonar».

in Imagens de Praga, de John Banville (Edições Asa; trad. Teresa Casal)

05 junho 2007

O café da manhã

Com a idade, os hábitos vão-se fixando. O pequeno almoço é um dos rituais mais inflexíveis do meu dia, e se falha um dos pequenos elementos da alimentação matinal, não começo bem a jornada. Quando estou fora, em viagem, pode ser-me penoso prescindir dele. Ora, é mais ou menos assim: um iogurte, cremoso ou de pedaços, normalmente magro e de morango; uma ou duas torradas de pão alentejano com queijo flamengo que se começa a derretar com o quentinho da fatia (também pode ser queijo fresco, ou requeijão); uma banana a ficar para o maduro; um chá verde numa caneca, para ajudar a empurrar uma série de comprimidos. No fim de tudo, o café.

O café tem especial importância no ritual. É o remate. A cereja em cima do bolo. O fim do momento onde começa o meu dia. Agradeço, por isso, a todos os meus amigos que contribuíram para tornar as minhas manhãs ainda mais agradáveis com aquela máquina nova. Sabe bem. E apareçam lá em casa para tomar um cafezinho. Obrigado.