O Público traz hoje em manchete: "Estudo denuncia curvas ilegais no IP4 e no Eixo Norte/Sul".
Sugiro que também se estudem as curvas ilegais na recta de Pegões...
Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
30 junho 2005
29 junho 2005
First day at the office
Quando começamos num novo emprego podemos pensar que são as grandes mudanças que podem perturbar o frágil equilíbrio dos dias úteis. Para elas temos a adrenalina do desconhecido. São as pequenas alterações do quotidiano, os pormenores, que podem tornar-se inquietantes. Por exemplo, conseguir dominar a técnica de lavar os dentes sem molhar a gravata. À primeira vista é simples. A mão direita maneja a escova de dentes enquanto a esquerda resguarda o pingente de pano mais perto do diafragma. Mas também temos de controlar o fluxo da água e é nesses momentos, em que abrimos e fechamos a torneira, que a gravata corre o risco de se encostar à borda do lavatório. Pode parecer fútil mas é difícil tentar resolver os problemas do mundo com uma gravata molhada.
23 junho 2005
Mr. Dalloway
Henry Perowne disse que ele próprio compraria o peixe. Não é com esta frase mas é com este espírito que começa Sábado, o novo livro de Ian McEwan. A Clarissa Dalloway do século XXI é um homem e guia um Mercedes S 500 pelas ruas da moderna cidade de Londres. Não tem uma festa para preparar, apenas um jantar de família com sopa de peixe-anjo. A acção desenrola-se num único dia – como os livros fundadores do romance moderno (Ulisses, Mrs. Dalloway) – e por isso não é de estranhar que esteja cheio de descrições pormenorizadas de actividades do quotidiano ou que sobre muito espaço para reflexões sobre a condição humana nas sociedades contemporâneas. Escrito cerca de setenta e cinco anos depois do de Virginia Woolf, o livro não está atrasado, é uma actualização.
22 junho 2005
A Rh+
Fui dar sangue. O edifício do Instituto Português do Sangue fica no mesmo complexo hospitalar do Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos. Sempre que vou a sair do portão sinto um calafrio de expectativa. Penso que podem mandar-me parar e que tenho de protestar que não sou maluco. Imagino depois o porteiro a dizer, com voz condescendente , enquanto carrega no botão de alarme: «-Eu sei, eu sei. Mas vista só esta bonita camisa branca para ver se lhe fica bem. Muito bem. Agora cruze os braços para eu poder apertar as correias.»
Durante a vaga de calor
Por ser o dia mais longo do ano e estar muito calor, ontem à noite eu e a Joana não ficámos em casa a disputar o nosso espaço vital frente à ventoinha. Andámos pelas ruas do Bairro Alto e acabámos na Eterno Retorno, uma livraria especializada em obras de filosofia e teatro. Folheámos o jornal e alguns dos bons livros em segunda mão e observámos os movimentos do gato da casa. Esteve deitado em cima do piano, deambulou entre as mesas e subiu para cima do balcão. Apesar de não podermos ser caracterizados propriamente como cat lovers, gostámos deste. Achámos que tinha um ar inteligente. Talvez seja inevitável num gato que passa todo o dia entre livros de filosofia.
21 junho 2005
Poucaterra não há calha
Com a mesma velha locomotiva a fazer força, o comboio europeu, agora de 25 carruagens atulhadas de ambições, anda forçosamente mais devagar. E com vagões pesados como o francês, o holandês e o britânico a meterem travões a fundo, a composição é forçada a parar num apeadeiro a meio de nenhures.
Numa metáfora feliz, o Durão Barroso primeiro-ministro disse uma vez que a União Europeia era um grande avião sem piloto. Onde é que pára agora o maquinista? Talvez haja maquinista, mas acabou-se a ferrovia...
Numa metáfora feliz, o Durão Barroso primeiro-ministro disse uma vez que a União Europeia era um grande avião sem piloto. Onde é que pára agora o maquinista? Talvez haja maquinista, mas acabou-se a ferrovia...
18 junho 2005
O megafone racista
Foi um mau espectáculo, qualquer um dos directos da manifestação de skins nas televisões. Se os directos por vezes são bons, às vezes encerram perigos. Apenas cinquenta nazis sem qualquer peso na sociedade conseguiram hoje ter uma audiência de milhões de portugueses e passar uma mensagem perigosa de forma gratuita, através do megafone hertziano (o jornalismo trata da recolha, selecção, hierarquização e tratamento da informação, daí que a forma preferível de cobertura da manif fosse a da peça trabalhada em diferido). De qualquer forma, os directos são inevitáveis, e assim os organizadores conseguiram o que desejavam: propaganda nazi e xenófoba à hora do almoço familiar do fim-de-semana.
Mas há coincidências tramadas. Minutos depois de um cabeça-rapada perorar sobre a expulsão dos imigrantes com o exemplo da expulsão de mouros - junto à Mouraria onde tantos anos os muçulmanos conviveram com os cristãos -, uma nova peça do telejornal devolvia a estes sabujos um espelho ao qual não gostariam de se ver.
A polícia britânica montou alarmes na casa dos emigrantes portugueses que vivem numa vilória inglesa para os proteger de ataques racistas e xenófobos (por parte de outros brancos), na sequência dos protestos por causa de um homicídio alegadamente cometido por um português. O problema é o mesmo, nem vale a pena dizê-lo, posto ao contrário.
Dar voz e ouvidos a esta gente é abrir o caminho a males que repousavam fechados na nossa caixa de Pandora. O que eles dizem é tão ridículo, irracional, e brutal que parecem inofensivos aos seres dotados de razão. O perigo é o que eles representam. As esquerdas e as direitas democráticas têm de ter um discurso claro sobre segurança, apresentar medidas viáveis, e uma ideia sobre como lidar com a imigração, os bairros degradados e a integração. Se não ocupam o espaço vazio, esta gente aproveitará as brechas.
Mas há coincidências tramadas. Minutos depois de um cabeça-rapada perorar sobre a expulsão dos imigrantes com o exemplo da expulsão de mouros - junto à Mouraria onde tantos anos os muçulmanos conviveram com os cristãos -, uma nova peça do telejornal devolvia a estes sabujos um espelho ao qual não gostariam de se ver.
A polícia britânica montou alarmes na casa dos emigrantes portugueses que vivem numa vilória inglesa para os proteger de ataques racistas e xenófobos (por parte de outros brancos), na sequência dos protestos por causa de um homicídio alegadamente cometido por um português. O problema é o mesmo, nem vale a pena dizê-lo, posto ao contrário.
Dar voz e ouvidos a esta gente é abrir o caminho a males que repousavam fechados na nossa caixa de Pandora. O que eles dizem é tão ridículo, irracional, e brutal que parecem inofensivos aos seres dotados de razão. O perigo é o que eles representam. As esquerdas e as direitas democráticas têm de ter um discurso claro sobre segurança, apresentar medidas viáveis, e uma ideia sobre como lidar com a imigração, os bairros degradados e a integração. Se não ocupam o espaço vazio, esta gente aproveitará as brechas.
17 junho 2005
O que diz Immanuel
Diz Kant que «a felicidade não é um ideal da razão, mas da imaginação, que assenta somente em princípios empíricos dos quais é vão esperar que determinem uma conduta necessária para alcançar a totalidade de uma série de consequências de facto infinita.» (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1785) A felicidade é um bem subjectivo, que cada indivíduo constrói de modo diferente, a cada momento, a partir de elementos infinitos. É por isso que, segundo Kant, não pode ser erigida como padrão de moralidade. Está calor, as venezianas estão fechadas e na sombra da sala o sopro da ventoinha incide directamente sobre o meu corpo inerte no sofá. Talvez isto seja de algum modo a felicidade, mas não me passaria pela cabeça tentar torná-lo lei universal.
13 junho 2005
Um vida bem vivida
Ficou-me na memória uma frase de Álvaro Cunhal numa entrevista em que ele disse ter vivido uma vida bem vivida, qualquer coisa assim, ou que só vale a pena a vida se for para ser bem vivida. A dele viveu-se ao sabor de um ideal derrotado. Talvez o tenha percebido de 1989 para cá, mas não é isso que importa agora, porque os bolcheviques em Portugal foram definitivamente derrotados há 30 anos. O que é de invejar na vida desse homem é tê-la vivido bem, mesmo com os piores sacrifícios por que passou. Como seria o mundo se nos dedicássemos assim àquilo em que acreditados, ou apenas se acreditássemos nalguma coisa? Como seria o mundo se todos levássemos vidas que valem a pena viver-se?
11 junho 2005
Leitura de férias
Tirando as próprias ilhas gregas, não deve haver melhor lugar para ler a Odisseia que as praias de baías rochosas da costa Vicentina. Parece que conseguimos compreender melhor os infortúnios de Ulisses e dos seus companheiros deitados na areia, que depois trazemos connosco entre as páginas do livro em pequenas ilhas. Estou mais bronzeado, mais descansado e, como Ulisses, estou de regresso a casa.
04 junho 2005
O Vítor foi para Norte. Eu sigo para Sul. Durante mais ou menos uma semana este estabelecimento fica Encerrado para descanso do pessoal. Gostaria de prometer um diário de viagem, com descrições da costa alentejana e do nosso repouso num monte corticeiro, mas é difícil escrever quando nos estamos a divertir. Talvez seja por isso que a maior parte dos romances são depressivos, mas esse é um tema que fica para outro post.
31 maio 2005
28 maio 2005
Ensaio sobre a cegueira
A relação entre o sexo e a perda de visão é um mito urbano que ganhou novos desenvolvimentos. Segundo o Expresso desta semana, investigadores americanos estão a estudar «50 casos de cegueira (total ou parcial) supostamente relacionados com o uso do Viagra». Na Idade Média era a masturbação, razão pela qual lhe terão chamado Idade das Trevas – e que a confirmar-se teria provocado uma epidemia de cegueira mais fulminante que a peste negra. Nas últimas décadas seria a pornografia a contribuir para a perda de visão nos adolescentes, pela dificuldade em lerem (verem) revistas com pouca luz ou por cansarem a vista a tentar perceber cenas de filmes caseiros de má qualidade. A relação entre o sexo e a perda de visão pode ser apenas um mito, mas sempre me deixa mais orgulhoso das minhas dioptrias.
27 maio 2005
A nossa lepra incurável
A Dona Ema foi ao baú do sótão desencantar esta maravilhosa antiguidade mais actual do que nunca:
"Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação económica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.(...)
Temos um déficit de 5.000 contos. Esta é a negra, a terrível, a assustadora verdade. Quem o promoveu? Quem o criou? De que desperdícios incalculáveis se formou? Como cresceu? Quem o alarga? É o governo? Foram estes homens que combatem, foram aqueles que defendem, foram aqueles que estão mudos? Não. Não foi ninguém. Foram as necessidades, as incúrias consecutivas, os maus métodos consolidados, a péssima administração de todos, o desperdício de todos. Depois, as necessidades da vida moderna, de terrível dispêndio para as nações. Como na vida particular, cresceram as superfluidades, o vão luxo, o aparato consumidor, mais precisões, mais gastos, a vida internacional tornou-se tão cara que mais ou menos todas as nações estão esfomeadas e magras.(...)
O déficit tornou-se um vício nacional, profundamente arraigado, indissoluvelmente preso ao solo, como uma lepra incurável."
Eça de Queiroz, 1867
"Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação económica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.(...)
Temos um déficit de 5.000 contos. Esta é a negra, a terrível, a assustadora verdade. Quem o promoveu? Quem o criou? De que desperdícios incalculáveis se formou? Como cresceu? Quem o alarga? É o governo? Foram estes homens que combatem, foram aqueles que defendem, foram aqueles que estão mudos? Não. Não foi ninguém. Foram as necessidades, as incúrias consecutivas, os maus métodos consolidados, a péssima administração de todos, o desperdício de todos. Depois, as necessidades da vida moderna, de terrível dispêndio para as nações. Como na vida particular, cresceram as superfluidades, o vão luxo, o aparato consumidor, mais precisões, mais gastos, a vida internacional tornou-se tão cara que mais ou menos todas as nações estão esfomeadas e magras.(...)
O déficit tornou-se um vício nacional, profundamente arraigado, indissoluvelmente preso ao solo, como uma lepra incurável."
Eça de Queiroz, 1867
26 maio 2005
António das Pêgas, o manageiro

A este veterano do montado, de olho azul e 72 anos, chamam-lhe António das Pêgas. É manageiro para os lados de Santiago do Cacém, o que significa comandar um rancho de homens e mulheres que fazem trabalho sazonal para os lavradores lá da zona. Aqui apanhei-o a beber pelo cocharro, durante uma tirada de cortiça serrana, para os lados das Vendas do Roncão. Vê-se pela maneira como olha a objectiva que é um tipo vaidoso, do género velho gaiteiro. Meneia as ancas como o John Wayne, mas no lugar da pistola leva um machadinho.
O ofício exige saber popular misturado com ditâmes de Bruxelas: ao lado da machada transporta uma corda com os centímetros exactos do diâmetro legal mínimo do tronco dos sobreiros que tiram a primeira cortiça virgem. Abraça um chaparrinho com o cordel e diz este já pode ser. Depois toca num frondoso com a palma da mão e conclui que foi maltratado numa época antiga, por tiradores brutos, sem sensibilidade no machadar, que feriram a carne da árvore em dia de chuva. É preciso muito ouvido para sentir a lâmina entrar sem castigar o tronco. O prémio do bom tirador - para além do prémio do fim do dia, os dezasseis contos da jorna -, é quando a cortiça "arrota" ao descolar do tronco num canudo perfeitinho, a bela prancha que há-de dar com que enrolhar uma pinga da melhor.
O António das Pêgas não havia de gostar de saber dos conluios entre os nossos governantes e os interesses privados para abater sobreiros em troca de campos de golfe. Ele não teria jeito para caddy, mesmo com aquele menear de ancas à cowboy.
25 maio 2005
Admirável leveza do ser
Sinto-me livre, leve, feliz, sintonizado com os astros, ansioso por ler livros que acumulei, por ver coisas que nunca vi, por fazer o que nunca fiz, por viver estes quinze dias como se fossem anos. Estou de fériiiaaas!
Este monstro imposto
Não quero pagar mais impostos porque os últimos governos não governaram. É como dar cada vez mais comida a um bicho cada vez mais gordo, que precisa de cada vez mais de comida porque está cada vez mais gordo. Não é preciso matá-lo. Basta obrigá-lo a uma dieta rigorosa, fazer umas lipoaspirações, e, se for preciso, meter-lhe uma banda gástrica: acabar com o emprego para toda a vida na função pública, com serviços supérfluos e ineficazes, com as prestações para quem não precisa, e despedir os comprovadamente incompetentes. Eliminar os benefícios fiscais da banca e da construção civil, ser implacável para qualquer restaurante que não passe a factura, para qualquer empresa que fuja aos impostos. A doer. De cabo a rabo.
23 maio 2005
Notas marginais
Dependendo do ponto de vista, sublinhar livros de bibliotecas públicas pode ser encarado como um acto de egoísmo ou de altruísmo. Pode sublinhar-se sem pensar nos leitores seguintes ou a pensar nos leitores seguintes. Neste segundo caso, sublinhar é um acto exploratório de procura das frases ou dos pensamentos mais importantes, empreendido para poupar trabalho aos leitores futuros. Poderíamos chamar a estes sublinhadores fazedores de mapas, não fosse o perigo de tornar sedutora uma actividade tão irritante. Por vezes os riscos são complementados com extensas anotações na margem lateral da mancha impressa, oferecendo o texto e a sua exegese na mesma página. O que apetece, nestes casos, é comentar o comentário do leitor anterior, iniciando uma espiral infinita de notas marginais.
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