21 janeiro 2007

Slows: da pastilha ao SMS

A minha amiga Dulce Garcia escreveu esta semana uma crónica para a revista Domingo do Correio da Manhã sobre essa instituição da nossa adolescência que era, meus amigos e amigas, o slow. A leitura do texto fez-me lembrar as matinés de sexta-feira no Desportivo Grandolense, que podiam alternar com matinés na sede do PPD ou na Música Velha (que ficava na porta ao lado e era afecta ao PCP, para que não haja equívocos). Era o grande tormento da Associação de Pais do liceu, onde o presidente da dita perorava contra esses antros de iniciática perdição (em tabaco, álcool, sexo, drogas, faltas injustificadas, sabia-se lá...). Ora esse pai, o presidente, era exactamente o pai de uma das mais requisitadas moças para o grande momento dos slows, embalantes, dos finais dos anos 80. Aquilo era assim: primeiro, iam os casais de namorados; depois, seguiam os quase-quase namorados e os galãs das curtes irresistíveis; depois seguiam os mais tímidos ou aqueles cujas conquistas exigiam mais "tácticas". Uma dessas tácticas - e aqui some-se todo o romantismo que o momento podia envolver - era, segundo o meu amigo Alberto, a "táctica da pastilha". Consistia em tirar a pastilha da boca (Gorila, de preferência), de forma mais ou menos evidente, antes de pegar na rapariga, e esperar pelo sinal. Se ela também deitasse fora a sua, a curte estava garantida. Como é que se faz hoje? Manda-se um SMS?

18 janeiro 2007

A foggy day...

Este domingo, no Parque das Nações, ainda pensei que me podia cruzar com o D. Sebastião a correr, a andar de bicileta ou a passear o cão. Que bela manhã de nevoeiro...

Foto: Vítor Matos

A inveja da sorte

Os confettis no passeio faziam-me, confesso, alguma inveja. Quando eu morava na rua do Arsenal, na Baixa, tinha a duas portas da minha uma casa da sorte, que assinalava assim, com papelinhos cor-de-rosa e fitas de Carnaval o prémio de um cliente, confirmando-se que os sortudos tinham ali a sua casa. Nunca os deitaram por mim, que não jogava lotaria nem totoloto. A excepção foi quando ganhei nove euros, no Euromilhões, em que joguei levado pela febre de um jackpot. Afinal, quando fui levantar o prémio, tinha deixado caducar a data. Não tive direito a confettis.

Zeus e danaes

Na única vez que fui experimentar a sensação de enfiar moedas numa slot-machine, no Casino Estoril, assisti a um fenómeno curioso. Antes da abertura das portas já inúmeras pessoas se distribuíam ao longo de uma linha de partida imaginária e à hora certa parecia a Saída dos Operários das Fábricas Lumière ou uma corrida de reclamação de terras no Far West: pessoas a correr para ocuparem as máquinas que tinham passado a noite anterior a engravidar de moedas. Assisto a algo semelhante quando passo de manhã frente a uma casa de apostas da Rua de Alcântara. Pouco antes das nove horas já há uma fila de pessoas à espera que a porta se abra. Lá dentro apenas se vende totobolas, totolotos, euromilhões e raspadinhas. Um vício estranho e que, como todos os outros, não pode esperar.

16 janeiro 2007

A L. descobriu a mão. E chucha indiscriminadamente o mindinho, o seu-vizinho, o pai-de-todos, o fura-bolos e o mata-piolhos.

15 janeiro 2007

Iwo Jima e Guiné

As "Bandeiras dos Nossos Pais", de Clint Eastwood, é um grande filme: boa narrativa em trança, filme complexo, e imagens de guerra talvez melhores que o desembarque na Normandia do Soldado Ryan. Mais do que a crueldade, mostra a crueza da guerra, a sorte e o azar dos acasos, mas sobretudo a memória. "Doc" passou toda a vida a ouvir chamar "Socorriista!!". Conheço homens que estiveram com o meu pai na Guiné que também ouvem as vozes da guerra durante a noite, que não os deixam dormir e os desesperam. Nós temos homens como os de Iwo Jima entre nós. Só não temos é como tornar esses sentimentos evidentes com grandes filmes, porque não temos meios (e se calhar talento) para os fazer.
[A nossa lista de mundos infinitos foi actualizada. O único critério para retirar ligações foi a inexistência de posts há mais de seis meses. Espero que a limpeza de ano novo não seja encarada como uma forma de punição. O critério aplica-se a todos nós, que escrevemos contra o tempo: publish or perish.]

14 janeiro 2007

Guilherme de Faria, poeta sobre quem o José Rui Teixeira está a preparar a tese de doutoramento, suicidou-se na Boca do Inferno, onde o mar é revolto. O fim estaria mais apropriado para Rimbaud ou Baudelaire, que eram poetas malditos mas morreram numa cama. Não sei qual foi a influência do Simbolismo em Guilherme de Faria, mas é preciso carregar a certeza de uma culpa sem redenção para não tentar pelo menos o Purgatório.

11 janeiro 2007

Três anos... é algum tempo!

Como nos casamentos, convém de vez em quando refazer os votos. Este blogue, meus amigos, fez antes de ontem três anitos. Para que os votos se renovem, aqui se reposta o texto inaugural de Através dos Espelhos. Aproveitando a ocasião, e parecendo que o tempo é circular, inaugurei hoje, com o João Cândido Silva, outro blogue, o Elevador da Bica. Não, não deixarei de escrever aqui, para infelicidade dos meus amigos, mas fá-lo-ei num registo mais aproximado da prosa do quotidiano do Tiago (aproximado, sim, porque eu não sei escrever bem como ele), e os assuntos mais políticos e de comentário ficam para o elevador. Continuem a aparecer porque nós continuaremos os nossos reflexos.

09 Janeiro 2004
Primeiro reflexo

O espelho é um objecto estranho. Por reflectir a realidade, e sobre ela, mas não ser a própria realidade, abre infinitas possibilidades de distorção. Por isso, neste blogue, teremos por vezes uma realidade convexa ou côncava. Basta dobrarmos ligeiramente a superfície, mais por motivos estéticos do que ideológicos. Não para distorcer a realidade, mas para construir outras representações dela. A sensação poderá ser, para quem lê, a de caminhar pelo meio das galerias de espelhos dos parques de diversões, onde nós e tudo o resto que as atravessa passa do grotesco ao ridículo com um passo, do semelhante ao desigual. Também gostamos do jogo de distorcer pessoas, devolvendo-lhes depois os rostos intactos. Os espelhos têm ainda outra característica, que não escapa a todos que se debruçam sobre eles*: a profundidade. Se nos aproximarmos, parece que podemos cair para o outro lado. Neste blogue seremos seres intermédios entre Giordano Bruno e Alice: acreditamos na infinidade dos mundos e usamos os espelhos para entrar neles.

No mundo da política, da sociedade, da cultura, da ciência. Entramos e tudo nos é estranho. Contamos o que vemos. Regressamos aparentemente iguais. Depois ardemos todas as noites nas fogueiras ateadas com as folhas escritas. E espelhos somos nós também, porque reflectimos as realidades conforme a nossa superfície foi sendo talhada: não pronunciamos verdades absolutas, que não as temos, mas aquelas que o nosso espelho de água devolve aos que se miram em nós, como o lago que chorou a morte de Narciso porque se reflectia nos olhos do jovem enquanto ele admirava o seu próprio reflexo. É através de um falacioso espelho de feira - a maneira de cada um de nós ver o mundo -, que aqui projectamos a imagem que temos dele. Sejam bem-vindos

Tiago Araújo/Vítor Hermes

*Como Umberto Eco (Sobre os Espelhos e Outros Ensaios ,Difel) ou Jorge Luis Borges (Obras Completas, Teorema).

10 janeiro 2007

O vestido cor de fogo

A história é triste. Fanny morre. Era a segunda mulher de Henry Wadsworth Longfellow, poeta americano que viveu entre 1807 e 1882. Segundo se conta, Fanny estava a selar um envelope com caracóis de cabelo que tinha cortado a duas das suas filhas mais novas e o seu vestido incendiou-se. Longfellow tentou salvá-la e ficou com queimaduras no rosto, que ocultou com uma barba durante o resto da vida. A imagem de Longfellow a abraçar a mulher para tentar extinguir o fogo que a consumia é de uma beleza trágica. Se a isso juntarmos caracóis de cabelo selados em envelopes parece-me que temos o espírito do século XIX.

09 janeiro 2007

Room service

A caminho do pequeno-almoço vi, junto à porta de um dos quartos do hotel, um tabuleiro com o pouco que sobrou de um fondue de chocolate e morangos. Na maçaneta estava pendurado um sinal de do not disturb. Ao passar, sem ruído, pensei que do lado de dentro deviam estar duas pessoas sem receio de expor os restos da sua paixão ou uma a tentar esconder a totalidade do seu isolamento.

03 janeiro 2007

O talho


O interessante na pintura mais recente de Lucian Freud é o modo indiferente e amoral com que pendura as peças de carne pelo espaço. Não é como a de Francis Bacon, em que a carne já está retalhada no gancho que a suporta, gerando repulsa e necrofilia. Nos quadros de Freud, as pessoas não foram apanhadas num qualquer momento especial das suas vidas. Estão inertes, sonolentas, prostradas e o desejo existirá antes ou depois daquele momento. Não sabem que estão a ser pintadas ou não têm forças para oferecer resistência.

02 janeiro 2007



Um jornal inglês calculou que Lucian Freud, o pintor britânico, teve cerca de quarenta filhos ilegítimos ao longo da vida. Tive oportunidade de ver uma retrospectiva da pintura de Freud em Veneza, num museu com vista sobre a Praça de São Marcos. Foi provavelmente a exposição individual que mais me marcou até hoje. Ao ler a notícia, quase dois anos depois, percebo porque é que grande parte da obra é composta por representações de nus.

01 janeiro 2007

Filas e Felicidade

Por falar em felicidade e economia, na semana entre o Natal e o Ano Novo, deparei-me com três curiosas filas, que em comum têm apenas o facto de a uma pessoa se seguir outra, com a paciência de esperar o tempo que for preciso pelo seu lugar, de modo a satisfazer determinada necessidade.

- Uma fila enorme na rua Garret, no Chiado, de gente a comprar café na loja da Nespresso (nota: não estava lá o George Clooney e as bombocas de café podem encomendar-se pela Net);

- Uma fila enorme na Fundação Gulbenkian para ver a exposição do Amadeu Souza-Cardoso (nota: a mostra está aberta nas sextas-feiras até à meia-noite);

- Uma fila enorme diante de uma carrinha branca, no jardim Constantino, de sem-abrigo a receber malgas de sopa (eram mais copos de plástico), para aconchegar o estômago.

Bem, isto foi uma hipótese de auto-resposta ao meu post anterior.

PIB e Felicidade

A edição especial de fim de ano da Economist levanta uma questão interessante: a relação entre desenvolvimento económico e felicidade.

Somos 3% mais felizes quando a economia cresce 3%? Somos mais felizes na China, onde a economia cresce loucamente, na Finlândia, onde os indicadores de desenvolvimento são os melhores do mundo, nos Estados Unidos, onde fica a capital do Império, ou em Belize onde o pessoal anda de chinelos a dar mergulhos entre os corais?

Uma vez entrevistei um economista ilustre, um senhor idoso chamado David Landes, que escreveu um este livro: "A Riqueza e a Pobreza das Nações", porque é que umas são mais ricas e outras mais pobres. Ele dizia qualquer coisa como isto: nos países desenvolvidos, a felicidade é um subproduto. Perguntei-lhe se podíamos medir a felicidade. Ele disse que não. Para que é que tudo isto serve, então? Ele respondeu-me com a história de um livro que estava escrever, sobre herdeiros de grandes fortunas, dizendo que fulano de tal passava o dia a jogar ténis e a andar em grandes carros... não seria feliz? Mas não seríamos nós, eu jovem e ele velho, mais felizes porque até gostamos de trabalhar?

Não sei onde esta conversa toda nos poderia levar...
"The past is no good to us. The future is full of anxiety. Only the present is real - the here-and-now. Seize the day".

Conversa de dr. Tamkin para Wilheim em "Seize the Day", de Saul Bellow