25 setembro 2005

A criação do mundo



Para o Miguel, ao quarto dia

Assim como quando uma pessoa morre o mundo acaba, quando alguém nasce o mundo é criado. Para quem tem poucos momentos de vida, não interessa se o universo foi criado há milhões de anos e continua a expandir-se ou se o seu próprio nascimento foi produto de uma evolução a partir de aminoácidos, da substituição de seres estranhos por seres estranhos e de uma longa sucessão de relações sociais determinadas, no fundamental, pelo acaso. Para o Miguel o mundo foi criado na última quinta-feira. E, em certo sentido, também para a Carla e o Vítor.

Tudo foi criado em simultâneo, mas não pode ser conhecido em simultâneo. Todos os povos têm mitos fundadores e, no nosso, ao quarto dia foram criados as estrelas, o Sol e a Lua. «Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra». É um dia importante e está a chegar ao fim. O de amanhã também vai ser comprido: são criados os seres marinhos e as aves. Dorme bem.

23 setembro 2005

O Equinócio da minha vida



Aqui, nesta hora indizível, a cabecita do Miguel assomava-se ao mundo e estreava os pulmoezitos novos. Aqui, neste minuto feliz, às 17h56, no momento do Equinócio de Outono, quando o dia tem exactamente a mesma duração da noite, a 22 de Setembro do ano da graça de 2005, senti aquilo. E isso não se descreve. No primeiro segundo, parece que olhamos para nós mesmos às avessas, como uma personagem de Borges que encontra o seu sósia. Ontem, da primeira vez que o vi em cima da barriga da mãe, umbilicalmente ligado ainda, tudo fez sentido com uma limpidez cristalina mas inexplicável. Todos os pontos do cosmos convergiram ali, enquanto reconhecia o meu filho. Enchi-me de ar, de perfumes de jardins e de rosas e de quatro ventos frescos cardeais e de todos os lugares mágicos e de fantasia do mundo. Viver até agora valeu a pena para ser atravessado por estes segundos de alegria e perplexidade.

20 setembro 2005

A vida d.f.

Em criança, intrigava-me a existência dos meus pais antes de eu ter nascido. Como era possível?Agora mudei de posto. Intriga-me a minha existência depois de o Miguel nascer, daqui a umas horas - o que significa durante esta semana. Dizia-me o meu médico: "Olhe que isso é um corte epistemológico na vida de um homem". Como nunca ouvi dizer que cortes epistemológicos precisassem de anestesia, deve ser porque não doem, mas esta coisa de estar quase a ser pai (e a Carla mãe) deixa-me nervoso, pelo menos um bocadinho, pois. Aí vem a vida d.f. (depois de filhos). Este é um dos meus últimos dias a.f. (antes de filhos). E não serão dias fáceis, que tenho muito que fazer. Apetecia-me andar por aí a apanhar sol e a pensar na vida. Mas, por agora, se tenho saudades é do futuro.

19 setembro 2005

O duelo: Carmona vs Carrilho


Aquilo foi a prova de que afinal eles são como nós, como a gente, piores que o pessoal, a malta, a maralha, a canalha. O duelo Carmona vs Carrilho refuta o argumento de que os políticos estão longe das pessoas, dos eleitores, enfim, do povão. Eles são povo, interpretam na perfeição a atitude discursiva alfamista ou madragoeira, são verdadeiras varinas, naifistas do Cais do Sodré, rufiões da baixaria. Interpretam aquilo que a condição humana tem de mais genuino: o instinto do ataque e o reflexo da defesa, a fúria, o olho-por-olho-dente-por-dente. Ah gandas homens, pá!

Aquilo não devia ter ficado por ali. Se eles fossem cavalheiros... Se aqueles dois rufiões fossem cavalheiros à séria, nunca tinham aplicado tantos golpes abaixo da cintura. Se fossem cavalheiros, no final, quando Carrilho recusou o cavalheiresco aperto de mão, Carmona havia de ter pegado na bengala e quebrado a dita na cabeça dura de Dom Manuel Maria; quando Dom Manuel Maria ouvisse Dom António Pedro a chamar-lhe "ah grande ordinário", havia de lhe dar dois ou três sopapos, já que ele dá a Cara Por Lisboa, e depois marcavam um duelo nas traseiras da Sé e, assim, com sorte, víamo-nos livres de ambos.

Há mínimos a cumprir em política: não basta ser sério, ter ideias e boas intenções, é preciso saber estar, porque é no domínio público que a política decorre. Como é que estes dois homens tratariam um munícipe reclamante? Ao pontapé? O que o debate nos mostrou é que Lisboa será governada por um dos dois, infelizmente.

18 setembro 2005

O nosso blogue foi pela primeira vez bloqueado por um firewall, com a mensagem: The site atraves-dos-espelhos.blogspot.com was blocked, it is in the Restricted Pornography category. É uma grande vitória para nós, mas também é um sinal de que talvez precisemos de elevar a qualidade dos temas e dos textos. Peço-vos por isso que reflictam agora sobre este excerto de um texto de Cícero, que transcrevo na língua em que soa melhor, a original.

Cum enim saepe mecum ageres ut de amicitia scriberem aliquid, digna mihi res cum omnium cognitione tum nostra familiaritate visa est. Itaque feci non invitus ut prodessem multis rogatu tuo. Sed ut in Catone Maiore, qui est scriptus ad te de senectute, Catonem induxi senem disputantem, quia nulla videbatur aptior persona quae de illa aetate loqueretur quam eius qui et diutissime senex fuisset et in ipsa senectute praeter ceteros floruisset, sic cum accepissemus a patribus maxime memorabilem C. Laeli et P. Scipionis familiaritatem fuisse, idonea mihi Laeli persona visa est quae de amicitia ea ipsa dissereret quae disputata ab eo meminisset Scaevola. Genus autem hoc sermonum positum in hominum veterum auctoritate, et eorum inlustrium, plus nescio quo pacto videtur habere gravitatis; itaque ipse mea legens sic afficior interdum ut Catonem, non me loqui existimem.

17 setembro 2005

Inspiração em Sade


Meu caro Tiago,

Tenho uma solução para o problema enunciado por ti no post anterior: há 200 anos, a solução foi encontrada pelo Marquês de Sade. Ele escreveu coisas tão criminosas que conseguiu ir parar à cadeia onde encontrou inspiração para escrever outras ainda mais criminosas.

Ora Sade, frustrado que estava com os prazeres finitos da tortura, assassinato e traição, procura em cada personagem um um crime tão hediondo cujos efeitos sejam eternos, de modo a causar, nas suas palavras: "Um caos de tais proporções que provocasse a corrupção geral ou um distúrbio tão formal que, mesmo depois da minha morte, os seus efeitos ainda se sentissem".

Juliette, uma das suas personagens mais vis, chega a enunciar esse objectivo do autor, Sade. O de cometer "um crime moral, o crime que se comete a escrever". Sendo assim, o crime que pode cometer-se a escrever, ao contrário do que desejarias, Tiago, teria de ser absolutamente inaceitável do ponto de vista moral. Até inacessível, difícil de igualar, por assim dizer, do ponto de vista da maldade.

Mas creio que o Marquês de Sade não levantou a questão dos funcionário públicos. Não era preciso. O Conde José Sócrates já os faz sentir tão culpados por existirem que o melhor era mesmo optarem entre o suicídio ou a escrita de um romance. E um romance faz menos mal à saúde que um suicídio, daí ser mais aconselhável. De preferência, um romance moralmente inaceitável. Talvez seja mais fácil ir parar à prisão sendo funcionário público, por autopunição imposta, do que escrevendo o livro mais execrável que possa ter existido. Mas são os dias que correm. Pelo menos tu és funcionário público: eu não sou isso nem suficientemente malévolo para escrever um romance que valha a pena ser lido...

12 setembro 2005

É sabido que uma boa parte dos grandes escritores do passado passou pela prisão em alguma altura da vida. E nem todos injustamente. Alguns escreveram mesmo as obras que os celebrizaram em celas frias e húmidas percorridas por insectos, com traças a rodearem a chama da vela e o resto das tretas que costumamos associar ao encarceramento no nosso imaginário. Este dado não prova a existência de uma relação entre a mente criminosa e a escrita que tenha escapado a Cesare Lombroso, mas apenas entre esta e a disponibilidade de tempo. Com esta teoria na cabeça tenho folheado o Código Civil em busca de um crime moralmente aceitável e punido com uma pena adequada a um romance. Nada muito extenso, trezentas ou quatrocentas páginas (ou um ou dois anos, se preferirem). Como vivemos em democracia, os únicos que se poderiam adequar não estão lá, os crimes que garantem o estatuto de prisioneiro político.

A acreditar numa reportagem que vi há algum tempo existe uma alternativa mais moderna à prisão: o funcionalismo público. Era sobre o modernismo brasileiro e o estudioso tinha chegado à conclusão de que a maior parte dos grandes poetas e escritores do movimento, como Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto, eram funcionários públicos. A relação escapa-me mas parece-me um bom argumento para uso dos sindicatos e contra a diminuição do peso do estado.

09 setembro 2005

Para a Isabel e o Ruca

Juliet: Three words dear Romeo, and good night indeed:
If that thy bent of love be honourable,
Thy purpose marriage, send me word to-morrow,
By one that I'll procure to come to thee,
Where and what time thou wilt perform the rite,
And all my fortunes at thy foot I'll lay,
And follow thee my Lord throughout the world.

William Shakespeare, Romeo and Juliet

07 setembro 2005

Por falar em brindes de publicações periódicas, acho que desde o Restaurador Olex que nenhum anúncio televisivo contribuiu tanto para a manutenção de um estereótipo como o novo do Jornal 24 Horas. O Jornal está a fazer uma promoção em que oferece, periodicamente, um azulejo. Colecciona-se e, no final, como um puzzle, fica-se com um tabuleiro com o símbolo do Benfica. O estereótipo está na imagem final. Aparece o tabuleiro já completo junto a uma imperial e a um prato de tremoços, como que para demonstrar a utilidade do objecto. Quanto a mim, acho que seria muito melhor se pintassem os azulejos, mas isso já trata de outro vício sobre o qual não vou escrever aqui.
Bernard Mandeville escreveu, na passagem para o século XVIII, Fable of the Bees, um poema filosófico em que procurava demonstrar que os vícios privados podem constituir virtudes públicas. O livro deve ter servido de amparo a muitas gerações de fumadores, opiómanos, coleccionadores de brindes de publicações periódicas mas, tenho que confessar, deixa-me bastante preocupado com a minha fraca contribuição para o bem comum. O problema acaba por ser mais de tradução do que de contribuição. Mandeville fala em vícios (vices) no sentido de defeitos pessoais. Segundo ele, por exemplo, a avareza contribuiria para a prodigalidade, a cobardia para o cumprimento da lei, a luxúria para o desenvolvimento da indústria, a vaidade e futilidade para o comércio, etc. Não sei se isto me deixa mais descansado mas, pelo sim pelo não, vou dirigir-me à repartição das finanças mais próxima e pedir uma redução de impostos.

05 setembro 2005

Discurso de rentrée

While you were gone... arderam muitos campos de futebol de pinhal, caíram alguns aviões de maduro, nasceu o Pedro, o filho da Mafalda, um fenómeno meteorológico com nome de mulher arrasou vários estados norte-americanos, uma cidade foi submersa, Cavaco Silva não se assumiu como candidato à Presidência, o ajudante de Ferreira Torres tentou suicidar-se por ter medo de ser morto e falhou, cientistas descobriram que as vacas britânicas andaram a comer cinza de rituais de cremação hindus, não tive férias.

Lisboa aos meus pés

Entre uma chávena de café de saco e eu, o Castelo, ou o miradouro de S. Pedro de Alcântara, ou a Graça, e os edifícios das Amoreiras, ou o rio lá em baixo, e tanto telhado ondulando até Almada. Ainda bem que há lugares em Lisboa por descobrir. Neste caso, trata-se do 4º andar de um hotel fora de moda na Graça - a Albergaria Senhora do Monte, mais conhecida por estrangeiros que frequentada por lisboetas. Pode tomar-se um pequeno alomoço ou beber um copo à noite com a melhor de todas as vistas sobre Lisboa. Recomendo.

01 setembro 2005

A bochecha da República


Há Repúblicas que têm bustos. Portugal tem bochechas.

Mais providencial que isto era difícil. "Como poderia eu abster-me de participar, neste momento de crise, de desorientação e de indiferença, quando amplos sectores da sociedade civil e da política me pediram tão insistentemente para avançar?", disse ontem Mário Soares quando apresentou a candidatura a Belém.

Primeiro: não podia abster-se de participar. Porque não pode a República viver sem Soares? Os cemitérios estão cheios de gente insubstituível e de homens providenciais. D. Sebastião nunca chegou a aparecer, houve um dia que Salazar morreu, Sá Carneiro desapareceu, Cunhal foi-se e o país por aí continua. Caso Soares se abstivesse de participar, que desgraça se abateria sobre nós?
Segundo: a crise e a desorientação. Imaginamos que contributos poderá Mário Soares trazer para afastar esta crise que nos sufoca? Que norte nos apontará, para orientar a nossa deriva e para combater a nossa indiferença? A indiferença acentua-se quando as pessoas se deparam sempre com a mesma coisa, as mesmas caras ao longo dos anos...
Terceiro: os apelos da sociedade civil e política. Ao desespero de Sócrates, Soares respondeu: vamos lá dar cabo do Cavaco. Vamos ver como correm os debates, vamos ver... Todos os "basta!" que Soares disse nos últimos tempos vão ser-lhe atirados à cara durante a campanha e alguém dirá: com esta história recente, quem vai acreditar numa palavra do que o senhor diz?

Porém, se todos os Guterres e Vitorinos desta vida fossem menos egoístas e tivessem a disponibilidade viril para o combate que este homem de 80 anos mostra, não haveria cromos repetidos na nossa colecção.

Foto: Jean Gaumy, Magnum Photos, 1975