29 novembro 2004

O Governo na incubadora

Cavaco Silva escreveu que os políticos competentes devem afastar os incompetentes. Henrique Chaves não esperou. Ainda não há garantias de substituição por um competente.

Não há memória de uma demissão tão violenta de um ministro, ainda por cima amigo e apoiante de sempre do primeiro-ministro. Tudo o que houver por detrás de tudo isto será mais grave do que possa pensar-se. E terá os seus efeitos no castelo de cartas governamental.

Ontem Santana Lopes fez um discurso com metáforas que ficam mal. Comparou o Governo a uma criança mal parida, aquilo a que ele chama "um parto difícil", assumindo que o Executivo está numa "incubadora", mas depois vêm os "irmãos mais velhos" - sim, o mesmo Cavaco Silva a quem ele apelou para Belém -, que dão "estalos e pontapés, em vez de o acarinhar". Isto é tudo ingenuidade?

É a declaração de fraqueza mais franca e trapalhona alguma vez feita por um primeiro-ministro.

Jorge Sampaio está neste momento reunido em Belém com um nascituro precoce que vive numa incubadora por ser imaturo para funções tão solenes. A pedir garantias de quê?

28 novembro 2004

As meninas de Picasso
Saímos do Museu Picasso para as ruas estreitas do bairro gótico de Barcelona, tão diferentes das Ramblas: trazíamos ainda os desenhos de infância, os primeiros retratos clássicos do pintor - ou não tivesse o pai dele sido professor de belas-artes -, tudo aquilo que não se imagina que Picasso pudesse ter pintado, como a cena realista de uma primeira comunhão com que ganhou um prémio aos 15 anos, mas levávamos na mente sobretudo o quadro e as dezenas de variações distorcidas das "Meninas", de Velasquez, vistas por ele.

As anchovas de Dalí
À procura de um bar de tapas, andámos às voltas pelo bairro até voltarmos à rua do museu e darmos com uma fila de gente que entrava para uma taberna a abrir a porta naquele exacto momento, sete da tarde: seguimos a procissão para o "Xampañet", sentámo-nos, pedimos tapas de tudo, repetimos, e acompanhámos as ditas, deliciosas, com um vinho branco espumoso, que não é espumante nem vinho verde, a que eles chamam o "cava". As melhores e a jogar com o vinho eram as de achovas, "as preferidas de Dalí", como estava destacado num artigo de jornal pendurado na parede, debaixo das pipas. Parece que o surrealista gostava de ir ali beberricar e petiscar as melhores anchovas da cidade. Uma fonte de inspiração a que fomos sensíveis. Pelo menos eu saí de lá um bocado mais surreal...

A sombra do vento
Na mesma noite, um pouco mais tarde, Fermín Romero de Torres era violentamente feito em papa quando ia a entrar para o mesmo "Xampañet", de tanta porrada que apanhava de um tal de inspector Francisco Javier Fumero, um esbirro e assassino do pior, da polícia política espanhola, que deixou o homem de costelas partidas e impróprio para consumo durante dias. Mesmo com tanto sangue, foi uma agradável surpresa: agora, quando viajo de férias, leio sempre um romance que se passe nos lugares onde vou, e foi o que aconteceu. Antes de dormir, li que Fermín queria comer umas tapas ao tal de "Xampañet", mas teve azar, e só quando revi as fotos na máquina digital confirmei, satisfeito, que era o mesmo lugar... "A Sombra do Vento", de Carlos Ruiz Zafón (Dom Quixote), ganhou prémios em 2001 e 2002 e é um best-seller mundial, mas não é um grande livro, apesar da história ser impulsionada pelos livros. Lê-se compulsivamente, mas vale duas estrelas em cinco. Para apreciar em viagens descontraídas de férias.

Irlandeses de Glasgow
Em Barcelona respira-se futebol. Depois da vitória sobre o Real Madrid, a cidade recebeu os adeptos listados de verde e branco (como o Sporting) do Celtic de Glasgow - o mesmo clube que o Porto venceu na final da Liga dos Campeões o ano passado (eh, eh!). Os escoceses enchiam os bares, os pubs e as ruas com cânticos de cerveja aos litros. Tudo normal. Menos a quantidade de bandeiras da Irlanda que desfraldavam pelas ruas e a ausência total da flâmula da Escócia. Depois de cruzadas quatro fontes muito entornadas e de sotaque impossível após um jogo que acabou empatado um igual, solucionei o mistério: o fundador do Celtic foi um irlandês, daí que o símbolo do clube seja um trevo de quatro folhas; os adeptos são maioritariamente de um bairro situado na West Wing de Glasgow, onde se fixaram os imigrantes irlandeses no início do século; os avós são irlandeses, eles são escoceses e não gostam lá muito de ingleses. Por isso nem eles perderam nem os da Catalunha ganharam. Afinidades...

21 novembro 2004

Voltando atrás: ontem quando chegámos as ruas estavam assustadoramente desertas. De vez em quando (aconteceu três vezes) ouvíamos as explosoes de alegria dentro das casas: golos contra os de Madrid. Perto da meia-noite as ruas estavam alagadas de gente a festejar. E quando eles gritam "Puta Espanha!" (cantando com a música do "Viva Espanha!") nao é a mesma coisa de quando os do Porto dizem que querem ver Lisboa a arder. Ao apanhar com isto logo na primeira noite percebe-se melhor o que é este país.

Gaudí, Picasso, Dalí:
Quando os artistas mudam a face de uma cidade, como Gaudí marcou esta, mudam a nossa vida: quem é o nosso Gaudí, o nosso Picasso, o nosso Dalí? Que artistas mudaram a nossa vida e a das nossas cidades? Assim também pecebemos melhor o que é o nosso país. Nao há como relativizar para percebermos a nossa verdadeira dimensao. A palidez...

Tudo ganha cor quando se chega a Barcelona em noite de jogo com o Real Madrid. Mais quando o Barca ganha por 3-0. Foguetes, festa e petardos na rua. Gritos de "puta es España". Foi uma rececpao de aniversario para a Carla.

20 novembro 2004

Vi no espelho que estou pálido. Sentei-me aqui ao computador. Do outro lado da rua, através da janela, o amarelo da parede do Arsenal da Marinha está pálido. Esta luz empalidece-nos a todos. O país também está pálido, na palidez do Governo, das oposições, das pessoas nos comboios de manhã ou a trabalhar no campo, na palidez das casas de emigrantes com azulejos de fora como há por aí, ou na palidez do Palácio de Queluz, que também o há. O país deve ver-se ao longe quando se quer vê-lo melhor. Daqui a nada vamos para Barcelona, onde o espírito das cores dos artistas da cidade absorvem a nossa palidez. Boa viagem! Obrigado. Talvez fiquemos por lá, nunca se sabe o efeito que certas cidades têm sobre as pessoas.

(Aceitam-se parabéns à Carla nos comentários, a partir da meia noite, porque faz anos amanhã, dia 21)

2046
É um filme curioso, lento, longo. As memórias são lugares de onde nunca se regressa, como em 2046. Cada plano é quase um quadro que apetece guardar. E as personagens perdidas são todas gente desesperada como tanta gente. Wong-Kar-Wai, depois de Disponível para Amar, está mais amargo. Demasiado. Nem quando as pessoas se divertem estão felizes. Que assim não seja.

Vieira da Silva
Na respectiva fundação, os quadros da artista dispersos pelo mundo em colecções particulares ou de instituções. Vale a pena ver, porque não sabemos quando voltarão a juntar-se. Ontem flutuei pelos espaços profundos de alguns quadros, outras dimensões que nos levam por eles a dentro como poucos, num movimento perpétuo de absorção do vidente.

18 novembro 2004

O Zé Pedro diz-me que este blogue está a ficar cada vez mais esquizofrénico. Uma parte de mim concorda com ele. Outra não. Outra ainda chama-se Olaf e não liga a essas coisas.

17 novembro 2004

A Ana Luísa está grávida. Depois do Rodrigo, o Gustavo. Nasce lá para a Primavera. Parabéns, amigos.

16 novembro 2004

Regressámos às Vicentinas, onde já não íamos há mais de um ano. É como ir visitar umas tias-avós solteiras ou entrar numa estalagem de aldeia. As tias fazem um chá e um bolinho para agradecerem a nossa visita. São um misto de Miss Jane Marple e daquelas velhotas simpáticas de um filme de Capra com o mau hábito de envenenarem os convidados. E com uma divisão social do trabalho muito rígida: umas despejam o arsénico sobre o bolo de amêndoa e outras descobrem quem o colocou. Hoje à tarde só houve uma vítima, o bolo de chocolate, e eu sou o suspeito do costume.

(Nota: Para quem não sabe, as Vicentinas é uma casa de chá, gerida por uma instituição de beneficência, na Rua de São Bento, perto do Rato. Não contem a muita gente.)

14 novembro 2004

Não sei se só acontece comigo mas, quando estou ainda longe da paragem, olho para trás e vejo que se aproxima o autocarro, começo automaticamente a ouvir a música do «Momentos de Glória». Porém, como nunca estou vestido com os calções e a t-shirt brancos e os sapatos de corrida, como os do filme, é muito mais difícil bater recordes. Ainda assim, sou medalha de prata de 38 (Calvário – Quinta de Barros) e medalha de bronze de 15 (Algés – Praça da Figueira). Para além disso, há muitos anos que detenho o recorde (ex-aequo com o Mário Leite) dos 200 metros Rua de São Pedro – Estação do Algueirão, obtido num dia memorável em que estávamos atrasados para a primeira aula e tínhamos idade para correr tão rápido.

12 novembro 2004

O panfleto santanista ou a regra do contraditório

O Governo vai editar um livro com as fotos e os extraordinários avanços do país nos primeiros 100 dias de governação com o sr. Santana Lopes em S. Bento. Deixamos aqui uma ideia e não cobramos um tostão: já agora, se fizessem uma publicaçãozinha trimestral para os pategos da nação saberem de fonte segura que alguém está a cuidar deles sem a interferência desse ruído anti-sr. Santana que tanto o apoquenta? Ao fim de 100 dias e já tanto para nos dizer. Aleluia. Viva o contraditório! Viva o panfleto anti-marcelista! E um especial obrigado à central de comunicação do sr. Sarmento.

Post-scriptum (que em latim quer dizer para além do post): Eles falam, falam, falam... essa é que é essa, porque quanto ao fazer, quando se faz não é preciso apregoar aos berros o que se fez aos quatro ventos. O povo pode ser aparvalhado, mas é menos parvo do que se pensa.

11 novembro 2004

Lembram-se de ter escrito aqui sobre a vaga de mulheres grávidas da minha geração. Agora, o período de gestação parece ter chegado ao fim. Nasceu o Miguel, o filho da Celita e do Nuno; o Francisco, o filho da Irene e do Ireneu; e o Tomás, o filho do José Rui Teixeira e da Ana. As boas-vindas para os três. O país não está grande coisa e o mundo um bocadinho pior, mas vamos tentar arrumar as coisas antes de terem aprendido a compreendê-las.

08 novembro 2004

A Avozinha América ou as diferenças genéticas entre a Europa e os EUA

Aquela mulher com mais de 70 anos era um retrato da América. Quando visitei o battleship USS Wisconsin, um navio de guerra fabuloso, da segunda guerra mundial (do Pacífico), que está ancorado em Norfolk, a velhota, que era um dos guias da visita, foi uma surpresa. Falava como um soldado ou um velho marinheiro antigamente embarcado naquele navio. Contava como os mísseis Tomahawk tinham sido ali instalados para a última missão operacional do navio durante a I Guerra do Golfo, na presença do Colin Powell, e onde tinham estado alojadas as ogivas com armamento químico - que, esclarece, graças a Deus, não foram usadas. Explicava como "our boys", os dela, tinham dado cabo dos japoneses na II Grande Guerra. Falava sempre num tom onde separava os bons dos maus com uma naturalidade impressionante. Não tinha, e pelo menos não demonstrava, grande piedade das vítimas dos ataques. Muito menos por iraquianos, por exemplo. Esclarecia que os longos canhões à proa não eram "canons", mas sim "guns", como se fosse um sargento-mor a corrigir recrutas, e descrevia-nos como eram as batalhas navais como se tivesse lá estado.

Quando nos afastámos dela, depois de nos ter falado da neta como se fosse uma doida que agora até andava a aprender japonês (vejam lá, a língua do inimigo), o meu colega alemão, jornalista do Merkur (um semanário nacional de grande tiragem na Alemanha), confessou-se impressionado com a naturalidade ou o orgulho com que a mulher falava da guerra e das armas. Lembrei-lhe que a avó dele, tal como as avozinhas europeias contemporâneas daquela avó americana, nunca poderiam ter um discurso igual porque as consequências das guerras na Europa não são apenas os corpos que chegam dentro dos sacos de plástico à pátria. A avozinha da América não sabe o que é ter a casa destruída em cada 20 anos; não sabe o que é ver a sua cidade completamente arrasada pelos raides aéreos do inimigo; nunca soube o que é ter a sua nação dividida pelas armas (a Guerra da sessessão, onde já vai?), nem conhece o ódio entre vizinhos, nem o medo de um inimigo a quem pode ver-se o rosto. Na Europa a guerra é ao pé de nós e ainda há memória. Ele, o alemão cujos avós conheceram o nazismo, concordou. Para a avó americana a guerra foi sempre lá longe, coisa de heróis.

É por estas e por outras, em coisas simples do quotidiano, que descobrimos que a América e a Europa são terras diferentes com outros códigos genéticos.

05 novembro 2004

O Ruca começa a trabalhar em Lisboa na segunda-feira. As boas-vindas são bem-vindas nos Comentários.
Sempre encarei os hábitos como rituais de uma religião natural. O mesmo jornal comprado na mesma tabacaria, a mesma italiana em chávena escaldada com meio pacote de açúcar e um croquete pela manhã. Nesta matéria, tenho percebido que os grandes evangelizadores são os empregados de café. Hoje entrei na pastelaria onde ultimamente tenho bebido o primeiro café da manhã, sentei-me a uma mesa e, antes que tivesse tido tempo de fazer o meu pedido, apareceu uma chávena à minha frente. Não gosto de ser previsível. Para mim, a cena mais triste da história da literatura é, em «A Morte de Carlos Gardel» de Lobo Antunes, a do casal que, para além de morar em Benfica, todos os Domingos comia frango assado. Se tomo um café sempre todos os dias antes de apanhar o autocarro não é por hábito mas por absoluta necessidade. Para conseguir ler e não ir a dormir todo o caminho, a babar o vidro que se pode «quebrar em caso de emergência».
Para que a vida não se torne a repetição de um mesmo dia, tenho desenvolvido ao longo do tempo alguns truques. Utilizar uma diferente combinação de transportes públicos para chegar ao mesmo lugar, deixar de frequentar os sítios onde já me adivinham o pensamento. Há quem possa considerar este comportamento um pouco obsessivo, mas esses são provavelmente aqueles que gostam de ver surgir do nada a sua bica escaldada.

(Agora que acabaram as eleições americanas, é bom poder voltar finalmente a assuntos mais sérios.)

A nova força do filho de Bush

Bush teve mais oito milhões de votos do que na primeira eleição, mau prenúncio se pensarmos que ele ia corrigir os erros do primeiro mandato. Lembro-me do Paulo Portas que nas campanhas eleitorais pedia a peixeiras e lavradores: "Dêe-me força!". Ora os americanos deram força, muito mais força, a George W. Bush. Que motivos tem ele para achar que errou ou para sentir que deve mudar a sua forma de agir? Tivesse ele errado assim tanto, não teria merecido a confiança de tanta gente. É assim mesmo, a democracia encerra alguns perigos, como fazer de toda uma nação a cúmplice de um erro colossal. E com esta legitimidade acrescida, arricamo-nos, desta vez sim, a ver a verdadeira natureza de Bush filho. Ainda tenho algumas esperanças de estar enganado...

03 novembro 2004

A nova acuidade de W.

A propósito de vitória de Bush, Jorge Sampaio disse esperar que a experiência do primeiro mandato de W. desse ao segundo «uma nova acuidade».

a) Será que Sampaio queria dizer "um novo cuidado"?
b) Será que isto é uma reminiscência eanista? Eanes teria dito "cuidade", "a cuidade"", ou "acuidade"?
c) Ou seria uma forma subtil, à Sampaio, de dizer para ele, o Bush, "andar mas é com cuidado", porque anda uma data de pessoal a jurar-lhe pela pele?
d) Sampaio quis passar a ideia de que ele próprio no segundo mandato é um rapaz muito mais acuitado?
e) Isto era um sinal para o Governo porque no segundo mandato Sampaio vai acuitar Santana?
d) O que é que afinal Sampaio quis dizer com isto?

Segundo o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora:
Acuidade - acume; agudeza; finura; penetração; perspicácia; subtileza.
Acuitado - aflito, triste.
Acuitar - acoitar; afligir; apoquentar; entristecer.

A disposição individual potencia a percepção meteorológica dos dias. Este acordou cinzento, com algum nevoeiro. Não vejo o rio e para oeste, ao que parece, há quem tenha ainda piores governantes do que nós.

W.

George W. Bush está prestes a anunciar a vitória nas eleições, para passar mais quatro anos nas nossas vidas. Definitivamente, que isto nos entre na cabeça: a América não é a Europa, os americanos não pensam como os europeus e Nova Iorque e a Calofórnia não representam aquilo que os Estados Unidos verdadeiramente são.

02 novembro 2004

ESPECIAL: ATRAVÉS DAS ELEIÇÕES AMERICANAS

Em quinze dias nos Estados Unidos podem ouvir-se muitas opiniões, mas o que mais me espantou, entre visitas ao Departamento de Estado, ao Pentágono, ao Congresso, ao Senado e a respeitados think-tanks, é que a Política Externa de Bush e de Kerry poderá não será radicalmente diferente. Este é um resumo muito ligeiro do que disseram algumas pessoas que ouvi, com um grupo que integrava.

Simon Serfaty : Eleições para os próximos 20 anos
Professor universitáro, analista político, foi durante mais de 10 anos director do Programa para Europa do Center for Strategic and International Studies (CSIS) (http://www.csis.org/)

Para Simon Serfaty, estas são “as eleições mais significativas desde 1948, em termos de implicações internacionais”. Nem Kerry nem Bush podem fugir das novas estratégias de segurança traçadas depois do 11 de Setembro, daí o professor considerar que “o que eles puserem em marcha vai definir o que será o mundo nos próximos 20 anos”.
Mas em que sentido é que podem prever-se essas mudanças? Serfaty diz que não está preocupado com “a transição de Bush para Kerry”, mas sim com a transição de “Bush para Bush”. E porquê? Porque “Bush é um homem de convicções, ele sente as coisas, não as explica ou compreende”. É o homem que respondeu a um jornalista que o seu filósofo preferido era Jesus Cristo, mas não se deu ao trabalho de dizer porquê, alegando que o outro não compreenderia. “Ele diz ‘I feel’ e não ‘I think’”. Para o analista do CSIS, a personalidade do indivíduo que se senta na Sala Oval pode fazer toda a diferença. “Kerry vai querer ir ao encontro dos europeus e reabrir o diálogo”. Mas a sua política dependerá das respostas que obtiver.

The Atlantic Council: Política externa europeia está à espera do resultado das eleições
Neste think-tank que se diz independente, mas onde estava um cartaz de apoio a Kerry, uma das altas responsáveis resumiu muito bem qual a sensação que se tem em Washington em relação aos governos europeus: “Aqui sente-se que os europeus estão à espera do resultado das eleições para avançarem na sua política externa. Isso é muito mau se Bush ganhar”. E ainda foi mais concreta: “Tenho avisado os nossos amigos a não esperarem grandes mudanças na nossa política externa. Não esperem mudanças fundamentais com uma alteração de administração. Esperar isso seria esperar em vão”. A diferença seria a seguinte: “Kerry pode ser mais activo a abordar o conflito israelo-palestiniano. Mas na questão multilateral isso depende de como os parceiros europeus reagirem. As administrações querem é eficácia”.

John Huslman, Heritage Foundation : Simpatia não é tudo
Para este republicano da fundação conservadora da escola realista (e não neoconservadora), o caso do Irão pode vir a ser o paradigma de uma alteração na Política Externa norte-americana. “Todos achamos que é útil encontrar uma solução diplomática. Todos temos medo que os israelitas tomem a situação nas suas mãos”. Os americanos estão muito preocupados com isto e Kerry não se cansou de o dizer na campanha.
Huslman diz que “Kerry começará por ir à Europa dizer que tudo se trata de uma questão de estilo”, mas o analista também entende que “não é esse o problema”. E concretiza: “Há pessoas da entourage de Kerry que acham que os países europeus não vão dar mais tropas [para o Iraque e o Afeganistão] só porque ele irá à Europa falar com os líderes de uma forma mais simpática”. No caso de haver um segundo mandato de Bush, “o tempo definidor será entre Janeiro e Fevereiro [com as eleições no Iraque]. No Partido Republicano haverá uma guerra civil entre realistas – que é a visão tradicional – e neoconservadores. Se Bush perder as eleições, os neocon serão os culpados”, considera.
As diferenças entre os dois candidatos serão mais de estilo, segundo Huslman. No caso do Irão, por exemplo, “Kerry terá maior capacidade para se coordenar com os três da União Europeia [Alemanha, França e Reino Unido] nos primeiros quatro meses. Se Bush disser que vai atacar, todos sabem que será assim”.

Congresista Robert Wexler, democrata, da Flórida: "A fresh new start"
Pertence ao sub-comité para a Europa
Claro que agora é contra a intervenção no Iraque, destacando a ida para a guerra com base em falsas premissas, mas tal como Kerry votou a favor. “A pessoas como eu, que não alinham com Bush, colocou-se a questão: vamos votar por Bush ou por Chirac?” Embora seja um democrata do tal Estado, a Flórida, concorda que as maiores diferenças entre Kerry e Bush “são uma questão de grau”. É o que se deduz também destas palavras: “Talvez o melhor fosse mudar de administração e ter mais credibilidade. A União Europeia tem um papel a desempenhar. Mas se a Europa não for séria, apenas os EUA podem actuar”. No caso concreto do Irão, Wexler concretizou melhor a sua opinião: “A Europa ainda parece incapaz em termos de vontade política, para dar os próximos passos, o que me leva a pensar que se a União Europeia não actuar, serão os EUA a ter de agir”. Ora que diferenças temos aqui para os maiores falcões da administração Bush? “Com Kerry seria diferente porque toda a abordagem da sua administração seria muito mais multilateral. Bush não tem credibilidade e com Kerry teríamos um ‘fresh new start’”.
No entanto, quando se fala da reconstrução do Iraque, ele responde aquilo que os seus eleitores gostariam de ouvir: “Estou é preocupado com a reconstrução da Flórida, não com o Iraque”. (A conversa tinha-se passado poucos dias depois dos furacões terem devastado o seu estado).

Senador Richard Lugar, presidente do Foreign Relations Committee
Richard Lugar falou ao grupo na sala da comissão de Senado que durante anos partilhou com o senador John Kerry. Portanto, apesar de ser republicano, diz conhecer bem o candidato democrata: “Kerry é muito como Bush. Ainda são as mesmas pessoas que o aconselham e eu conheço-as muito bem”.
É preciso retribuir tanto o bem como o mal: mas porque há-de ser precisamente à pessoa que nos fez bem ou mal? (Nietzsche, Para Além de Bem e Mal)

Um estudo divulgado há alguns dias estima que poderão ter morrido cerca de cem mil civis iraquianos desde o início da ocupação americana. Os números, sobre ou subavaliados, recordaram-me mais este aforismo moralmente errado (na vertente de retribuição do mal, obviamente).