146 - Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.
90 - Os homens graves e melancólicos ficam mais leves graças ao que torna os outros pesados, o ódio e o amor, e assim surgem de vez em quando à sua superfície.
74 - Um homem de génio é insuportável se, além disso, não possuir pelo menos duas outras qualidades: gratidão e asseio.
98 - Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde. (Nietzsche, Para Além de Bem e Mal)
São frases como estas que justificam o meu interesse por Nietzsche. Um interesse mais estético do que intelectual. As frases perfeitas são tão verdadeiras ou falsas como as outras. Não luto com monstros nem olho para abismos, por precaução, só venho à superfície respirar, tomo banho todos os dias. Já só me falta o génio e cicatrizante para os lábios.
Devemos à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta deste mundo. Por Vítor Matos e Tiago Araújo
27 setembro 2004
22 setembro 2004
Battlestar Galactica na Rua de São Pedro
Somos a geração mais melancólica ou estamos com a idade mais melancólica. Recomeçou ontem à noite a Galactica (SIC Radical). Quando acabou a reposição do primeiro episódio tive vontade de ir tocar às campainhas do Armando, do Pedro, do Paulinho, do Eduardo, do Paulo Sérgio,... para descerem à rua e começarmos a decidir quem é o Apollo e quem é o Starbuck. Mas o Eduardo mudou-se para o Porto, o Paulo Sérgio para o Algarve, o Paulinho regressou há pouco do Brasil e não sei onde está, muitos dos outros vivem em Alfa de Centauro, Aldebarã ou outros lugares longínquos com nomes suburbanos e a nossa rua é a de uma cidade-fantasma, por onde rolam aquelas plantas redondas dos westerns. Só o Armando e o Pedro é que continuam mais perto, mas somos poucos para formarmos uma esquadrilha de caças inter-galácticos.
O grau de sofisticação da tecnologia e dos efeitos especiais não é tão elevado e a ingenuidade da história e dos diálogos é maior do que me lembrava, mas não deixa de ser a melhor série de ficção científica de sempre.
(Armando, está bem, como és louro podes ser o Starbuck. Eu fico com qualquer outro, desde de acabe com a irmã do Apollo.)
O grau de sofisticação da tecnologia e dos efeitos especiais não é tão elevado e a ingenuidade da história e dos diálogos é maior do que me lembrava, mas não deixa de ser a melhor série de ficção científica de sempre.
(Armando, está bem, como és louro podes ser o Starbuck. Eu fico com qualquer outro, desde de acabe com a irmã do Apollo.)
16 setembro 2004
(Blood), Sweat and Tears
Foi com surpresa que acordei hoje de manhã, pois julgava ter assistido ao fim do mundo ontem à noite, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém. Cerca de vinte actores-bailarinos apresentaram o resultado final de um estágio orientado por Jan Fabre, com uma coreografia intitulada (Blood), Sweat and Tears. E houve de facto muitas lágrimas, muito suor e, provavelmente, muito sangue nas múltiplas hemorragias internas que os espectadores iam adivinhando nos corpos contorcidos e maltratados dos actores. (Talvez essa a razão para o Blood estar entre (), por o sangue ser interno.)
Há um fenómeno psicológico qualquer em que as vítimas começam a sentir simpatia pelos seus raptores. Só consigo encontrar essa justificação para o facto de ter gostado muito do espectáculo, apesar da prova psicológica a que fui submetido nos primeiros vinte minutos de corpos contorcidos, de choros e de gritos. Depois, corpos vestidos de negro, semi-vestidos de negro e nús; com muito suor e lágrimas e a utilização inteligente de um texto escasso. Sentia-se que a coreografia conseguia despertar emoções extremas não só nos bailarinos mas também nos espectadores que, a julgar por mim, começaram a sentir-se fisicamente extenuados. No final, não houve standing ouvation, mas apenas porque uns, como eu, estavam demasiado cansados para se levantarem, e outros queriam esconder possíveis erecções.
(Obrigado Nuno Moura, vai-nos mantendo informados.)
Há um fenómeno psicológico qualquer em que as vítimas começam a sentir simpatia pelos seus raptores. Só consigo encontrar essa justificação para o facto de ter gostado muito do espectáculo, apesar da prova psicológica a que fui submetido nos primeiros vinte minutos de corpos contorcidos, de choros e de gritos. Depois, corpos vestidos de negro, semi-vestidos de negro e nús; com muito suor e lágrimas e a utilização inteligente de um texto escasso. Sentia-se que a coreografia conseguia despertar emoções extremas não só nos bailarinos mas também nos espectadores que, a julgar por mim, começaram a sentir-se fisicamente extenuados. No final, não houve standing ouvation, mas apenas porque uns, como eu, estavam demasiado cansados para se levantarem, e outros queriam esconder possíveis erecções.
(Obrigado Nuno Moura, vai-nos mantendo informados.)
15 setembro 2004
Quando se começa a instalar um silêncio constrangedor, é habitual falar-se do tempo. Segundo o Instituto de Meteorologia, a previsão do estado do tempo no continente para amanhã é de céu geralmente limpo, com vento fraco (inferior a 15 Km/h) soprando moderado (15 a 25 km/h) de noroeste no litoral oeste durante a tarde. Pequena subida da temperatura, em especial nas regiões do interior. Neblina ou nevoeiro matinal. Para os dias seguintes, espero que o Vítor suba à superfície ou que caia uma boa trovoada, para manter o interesse.
12 setembro 2004
A nova biografia de Eichmann faz de nós genocidas
O historiador David Cesarini acabou de publicar uma nova biografia de Eichmann, onde contraria alguns argumentos de Hannah Arendt no famoso livro "Eichmann em Jerusalém", escrito nos anos 60 (traduzido em Portugal pela Tenacitas o ano passado). Em "Eichmann: His Life and Crimes", Cesarini diz que o nazi burocrata que concretizou a Solução Final à secretária, não só distinguia o bem do mal, como, apesar de não ser um psicopata, "aprendeu a odiar os judeus". Com isto ele conclui que uma pessoa à partida normal pode transformar-se num genocida, uma teoria que, aliás, não choca com a de Arendt, pelo contrário.
Numa entrevista ao Público, por Cláudia Monteiro (28 Agosto 04), Cesarini diz:
"A maioria das pessoas pensa que nunca poderia estar neste papel, que indivíduos perfeitamente normais nunca cometeriam este tipo de crime. O que Eichmann nos ensina é precisamente o contrário, que um ser humano normal pode tornar-se naquilo que os franceses chamam 'genocidaire', fora do quadro das explicações psicológicas e das explicações políticas sobre os regimes totalitários" - vejamos a Bósnia, Ruanda, Sudão: todos os assassinos são psicopatas ou robôts às ordens de um governo ou ideologia? Onde é que está a linha que separa a guerra do genocídio?
"Existem pessoas em Portugal que lutaram em guerras coloniais brutais e que não são psicopatas" - quem conhece antigos combatentes sabe o que fizeram esses jovens na guerra e o que eles não teriam feito se para lá não os tivessem levado. Mas aí, mais uma vez sobrepõe-se o colectivo ao individual, que é uma ordem do governo que condiciona a experiência dessas pessoas. Nunca tivessem ido à guerra, e nunca teriam matado um ser humano.
"A terrível verdade é que os seres humanos em situações de conflito são capazes de cometer genocídio" - será que a nossa espécie está assim tão condenada como diz Cesarini?
Ver artigo no Guardian sobre o livro.
Numa entrevista ao Público, por Cláudia Monteiro (28 Agosto 04), Cesarini diz:
"A maioria das pessoas pensa que nunca poderia estar neste papel, que indivíduos perfeitamente normais nunca cometeriam este tipo de crime. O que Eichmann nos ensina é precisamente o contrário, que um ser humano normal pode tornar-se naquilo que os franceses chamam 'genocidaire', fora do quadro das explicações psicológicas e das explicações políticas sobre os regimes totalitários" - vejamos a Bósnia, Ruanda, Sudão: todos os assassinos são psicopatas ou robôts às ordens de um governo ou ideologia? Onde é que está a linha que separa a guerra do genocídio?
"Existem pessoas em Portugal que lutaram em guerras coloniais brutais e que não são psicopatas" - quem conhece antigos combatentes sabe o que fizeram esses jovens na guerra e o que eles não teriam feito se para lá não os tivessem levado. Mas aí, mais uma vez sobrepõe-se o colectivo ao individual, que é uma ordem do governo que condiciona a experiência dessas pessoas. Nunca tivessem ido à guerra, e nunca teriam matado um ser humano.
"A terrível verdade é que os seres humanos em situações de conflito são capazes de cometer genocídio" - será que a nossa espécie está assim tão condenada como diz Cesarini?
Ver artigo no Guardian sobre o livro.
Há vezes em que triunfa o bem: uma lição do 11 de Setembro
As torres caíram há três anos. E o mundo mudou mesmo, como previram os comentadores, poucas horas depois dos atentados. A propósito do último post, sobre Hitler e por que o bem não triunfa no mundo, uma correcção: os passageiros do voo que se dirigia para Washington e que fizeram despenhar o avião numa zona sem perigo para terceiros, deviam ser os ícones do triunfo do bem moderno. Morreram. Morreriam de qualquer forma. Mas não morreram em vão. Há gente que está viva e nem sabe estar em dívida para com eles. O mal absoluto também foi derrotado pelo bem nesse dia.
10 setembro 2004
O lado humano de Adolf Hitler
O filme sobre os últimos 12 dias de Hitler, "Der Untergang" (O Crepúsculo), do realizador Oliver Hirchbiegel, só estreia no dia 16 na Alemanha, mas já está a criar polémica. Porque a figura do líder nazi aparece humanizada, e por depois de Auschwitz não ser aceitável mostrar o lado humano de um ser assim.
Mas é bom que se mostre o lado humano de Hitler.
Para que vejamos como um ser humano, de carne e osso, como outro qualquer, consegue tornar o mal ao mesmo tempo mais absoluto do que uma catástrofe natural, e tão banal que toda uma sociedade o aceitou e seguiu ao longo de anos. O pior que o monstro pode encerrar é essa humanidade, essa semelhança com cada um de nós, no beijo a uma amante, na festa a um animal doméstico, na fragilidade quando se aproxima do fim. É muito fácil defendermo-nos da impossibilidade de erradicar o mal do mundo concentrando toda a culpa numa aberração da natureza como pensamos que Hitler foi. Realçar o lado humano dele é espalhar por todos nós a culpa de o bem não triunfar em definitivo, que é o retrato do mundo em que vivemos...
Helena Ferro Gouveia, correspondente do Público em Berlim escreve (na quinta-feira, dia 09 de Setembro) que o "'Die Welt' recorda que cada vez que a Alemanha se confronta com o III Reich isso é ocasião para debater sobre o trauma alemão e a 'normalidade'". Jornais britânicos acusaram os alemães de estarem a fazer o papel de vítimas. É uma polémica a seguir com atenção.
Mas é bom que se mostre o lado humano de Hitler.
Para que vejamos como um ser humano, de carne e osso, como outro qualquer, consegue tornar o mal ao mesmo tempo mais absoluto do que uma catástrofe natural, e tão banal que toda uma sociedade o aceitou e seguiu ao longo de anos. O pior que o monstro pode encerrar é essa humanidade, essa semelhança com cada um de nós, no beijo a uma amante, na festa a um animal doméstico, na fragilidade quando se aproxima do fim. É muito fácil defendermo-nos da impossibilidade de erradicar o mal do mundo concentrando toda a culpa numa aberração da natureza como pensamos que Hitler foi. Realçar o lado humano dele é espalhar por todos nós a culpa de o bem não triunfar em definitivo, que é o retrato do mundo em que vivemos...
Helena Ferro Gouveia, correspondente do Público em Berlim escreve (na quinta-feira, dia 09 de Setembro) que o "'Die Welt' recorda que cada vez que a Alemanha se confronta com o III Reich isso é ocasião para debater sobre o trauma alemão e a 'normalidade'". Jornais britânicos acusaram os alemães de estarem a fazer o papel de vítimas. É uma polémica a seguir com atenção.
08 setembro 2004
A Sonda Caída
Tentámos capturar raios de sol para investigação mas, como tem acontecido nos últimos milhões de anos, eles despenharam-se sobre a Terra. Mais intacto do que a sonda, também eu estou de regresso à Terra depois de umas férias sem diário.
06 setembro 2004
Viver com a loucura da realidade
Passaram quatro dias. Os mortos quadriplicaram naquela escola. Porquê a loucura? Ou o horror... o horror, como repetia Marlon Brando em Apocalypse Now. Sempre que perguntamos porquê e não há respostas (porque a razão não encontra razões para certos tipos de mal), damos com algo em que não conseguimos pensar. Como é que, como seres humanos, nos podemos reconciliar com esta realidade, com todas as realidades do que não devia ser mas é? Hannah Arendt dá uma das respostas possíveis em Essays in Understanding 1930-1954. Para sobrevivermos a tudo isto, e ao resto, é preciso encontrarmos o nosso lugar na realidade sem nos resignarmos a ela:
(...) to find my way around in reality without selling my soul to it the way people in earlier times sold their souls to the devil. (citado em Evil in Modern Thought, de Susan Neiman, Princeton University Press)
Menos loucos do que os sãos são os loucos. A loucura está ali na esquina à nossa espera, basta ligar a TV, tão palpável como esta mão. A loucura alienada de quem vê o que não existe é uma benção divina que protege uns eleitos daquilo que é real. Não vender a alma à realidade pode ser tão alienante como viver do outro lado do espelho.
(...) to find my way around in reality without selling my soul to it the way people in earlier times sold their souls to the devil. (citado em Evil in Modern Thought, de Susan Neiman, Princeton University Press)
Menos loucos do que os sãos são os loucos. A loucura está ali na esquina à nossa espera, basta ligar a TV, tão palpável como esta mão. A loucura alienada de quem vê o que não existe é uma benção divina que protege uns eleitos daquilo que é real. Não vender a alma à realidade pode ser tão alienante como viver do outro lado do espelho.
03 setembro 2004
A loucura...
...mais recente vai em 150 mortos e 550 feridos. Na Ossétia. O mundo existe para nos enlouquecer.
O espelho da loucura
Mês e meio depois do terramoto de 1755, Voltaire escreveu esta carta a um pastor protestante:
"Tenho pena dos portugueses, como vós, mas os homens continuam a fazer mais mal uns aos outros no seu pequeno montículo de terra do que a natureza lhes faz. As nossas guerras massacram mais homens do que a terra engole em terramotos. Se neste mundo apenas tivéssemos de temer o inesperado acontecimento de Lisboa, ainda devíamos estar numa situação tolerável".
Avançamos 250 anos. O mundo está o mesmo. Pensamos naquilo de que vivamente melhor nos lembramos dos noticiários mais recentes, e a conclusão não é diferente do que o mesmo Voltaire pôs na boca de um dos seus personagens em Cândido: Martin concluiu que o mundo existe para nos enlouquecer. Vivemos do lado real do espelho, onde habitam os corpos, mas tudo o que é verdadeiro é cada vez menos tolerável.
"Tenho pena dos portugueses, como vós, mas os homens continuam a fazer mais mal uns aos outros no seu pequeno montículo de terra do que a natureza lhes faz. As nossas guerras massacram mais homens do que a terra engole em terramotos. Se neste mundo apenas tivéssemos de temer o inesperado acontecimento de Lisboa, ainda devíamos estar numa situação tolerável".
Avançamos 250 anos. O mundo está o mesmo. Pensamos naquilo de que vivamente melhor nos lembramos dos noticiários mais recentes, e a conclusão não é diferente do que o mesmo Voltaire pôs na boca de um dos seus personagens em Cândido: Martin concluiu que o mundo existe para nos enlouquecer. Vivemos do lado real do espelho, onde habitam os corpos, mas tudo o que é verdadeiro é cada vez menos tolerável.
01 setembro 2004
A sobrevivência ao mal segundo Mefistófeles
Diz Mefistófeles a Fausto:
Deste mundo tosco que estás a ver
Por mais que faça, e pouco não é
Não vejo jeito de nele tomar pé;
Ondas, borrascas, fogos, terramotos -
E terra e mar continuam intactos!
E os homens e os bichos, essa raça maldita?
A esses nem consigo chegar:
Quantos não levei já a enterrar!
E sempre sangue fresco gera nova vida.
Fausto, de Goethe, trad. João Barrento, Relógio d'Água
Pois por pior que tudo esteja, tudo vai seguindo.
Como escreveu Cesariny no poema Pastelaria: Afinal o que importa não é haver gente com fome/porque assim como assim ainda há muita gente que come
Deste mundo tosco que estás a ver
Por mais que faça, e pouco não é
Não vejo jeito de nele tomar pé;
Ondas, borrascas, fogos, terramotos -
E terra e mar continuam intactos!
E os homens e os bichos, essa raça maldita?
A esses nem consigo chegar:
Quantos não levei já a enterrar!
E sempre sangue fresco gera nova vida.
Fausto, de Goethe, trad. João Barrento, Relógio d'Água
Pois por pior que tudo esteja, tudo vai seguindo.
Como escreveu Cesariny no poema Pastelaria: Afinal o que importa não é haver gente com fome/porque assim como assim ainda há muita gente que come
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