26 junho 2004

Santana ganha na secretaria

Afinal Durão Barroso sempre se vai embora. Santana Lopes deve ser o sucessor, com Paulo Portas a vice-primeiro ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Ao que este País triste chegou. Santana ganhou na secretaria aquilo que nem o seu próprio partido alguma vez lhe deu. Será que o próprio PSD aceita uma coisa assim?

Se Jorge Sampaio agir à Sampaio, ficará tudo na mesma. Sem eleições antecipadas. Com Santana e Portas à frente da nação. Os próximos meses vão ser muito animados. É a única certeza.

Do outro lado temos a pobreza que é a oposição do PS e a liderança de Ferro Rodrigues. Portugal está em situação de emergência. Ou fazemos um golpe de Estado ou emigramos.

24 junho 2004

Demoliram uma fábrica e o rio já nos corre frente à janela. É apenas uma faixa estreita de rio, a trezentos metros de distância, mas já dá para mergulhar, molhar imaginariamente os pés ao fim da tarde. É um salto para a água mais horizontal do que vertical, com elementos técnicos que contrariam as leis da gravidade. Dentro dela, a trezentos metros de distância, é mais fácil suportar o calor das águas-furtadas e a tarde de trabalho. Por vezes, um navio acosta e tapa-nos a vista com uma parede de metal; prolongamos ainda mais o exercício de transmigração e partimos com ele, clandestinos.
As eleições europeias, perdoe-se o atraso do post, trouxeram ao país uma estranha discussão: quem ganhou as eleições foi Ferro ou o Partido Socialista? O PS ganhou por causa de Ferro ou apesar de Ferro? O homem resistiu e sobreviveu. E agora arrisca-se a que um dia o poder lhe caia no colo. Mas os seus amigos no partido querem livrá-lo desse fardo. É uma original consequência do melhor resultado eleitoral de sempre para o PS.

Na coligação a coisa também é excêntrica. O PSD foi um partido canguru que levou na bolsa um pequeno partido vampiro que, não só se deixou transportar através da campanha sem mostrar o que na verdade diria se estivesse a concorrer sozinho, como sugou dois deputados laranjas e não reduziu a sua representação em Estrasburgo. O PSD foi, de facto, o único partido que perdeu as eleições.

Não admira que o PSD ande a pensar se é melhor ir sozinho ou acompanhado às legislativas. Que podem ser bem depressa, se Durão Barroso aceitar ser presidente da Comissão Europeia. Depois de Guterres ter fugido pela porta baixa depois da derrota eleitoral nas autárquicas de 2001, Durão quererá sair entronizado pela grande porta depois da derrota eleitoral nas europeias de 2004? Ao alimentar o suspense sobre o seu nome, Barroso passa o sinal de que o país é uma realidade secundária. Ou quererá dizer depois que é querido lá fora para ganhar credibilidade cá dentro?

Um regresso

Regresso ao blogue, como se o blogue fosse meu, como alguém que regressa a casa anos depois de ter desaparecido pelo mundo, e já não sente bem aquele lugar como seu. Este é o blogue do Tiago, cada vez mais, e sobretudo por minha ausência, mas também melhor por isso mesmo.

21 junho 2004

É um dos momentos mais reconfortantes do quotidiano, quando acabamos de ler um livro e vamos à estante escolher o seguinte. Não sabemos muito bem o que nos apetece, lemos a contracapa, avaliamos o peso e o volume, o índice de legibilidade em transportes públicos, o tamanho da letra, etc. De todos os critérios, o que mais utilizo é o da leitura do primeiro parágrafo. É tão falível como todos os outros, mas é por causa dele que vou andar a arrastar por Lisboa, nos próximos dias, O Passageiro Walter Benjamin de Ricardo Cano Gaviria:

Por momentos, precisamente ao sair do túnel que desembocava na longa escadaria, conduzindo às primeiras ruas da aldeia, a ilusão de uma placidez reconfortante foi quase perfeita. O forte banho de luz arrancou-o por um instante do espaço opressivo delimitado pelo quadrado betuminoso dos cais de embarque, onde tudo, desde as paredes raiadas da estação, até aos sombrios e distantes vagões colocados na via desactivada, passando pelo próprio olhar da criança que transportava as bagagens e oferecia os seus préstimos à comitiva, parecia albergar uma secreta correspondência com o boné cinzento dos polícias, com a voz inflexível do homem uniformizado que se recusara a carimbar-lhes a entrada no país, e essa espécie de nó na garganta desapareceu por completo. Ali estava de novo a luz mediterrânica que os acompanhara, rude e estimulante, durante toda a travessia a pé pela estrada Líster, e que agora os abandonava à sua sorte ao entrarem propriamente na aldeia, após o opressivo parêntesis da estação.

(Dedicado à Isabel, para que não cancele a sua assinatura anual)

16 junho 2004

«O rapazinho está fora de si. Abre caminho através da multidão, gritando, até à égua, abraça-lhe o focinho morto e ensanguentado, e beija-a, beija-a nos olhos, nos beiços...» (Crime e Castigo) Raskólnikov sonha com a infância, com um domingo em que passeia com o pai e vê um camponês bêbado bater no seu cavalo até à morte. No acto que despertou a loucura que o acompanharia o resto da vida, Nietzsche, em Turim, em 1889, corre para um cavalo que está a ser açoitado pelo cocheiro e abraça-lhe o pescoço. A influência de Dostoiévski em Nietzsche ultrapassa nesse momento a ficção. Ou transforma-se em ficção, o que é quase a mesma coisa.

A ventoinha

O calor nas águas-furtadas já só pode ser atenuado com uma combinação de nudez e de ventoinha. O Carlos de Oliveira tem um poema sobre as vantagens de viver numa mansarda («Vidro», Micropaisagem), de que já não me lembro muito bem. Temos mais chuva, quando chove, e mais calor, quando faz sol, do que os andares mais baixos. Amanhece mais cedo, qualquer coisa assim. Vivemos em condições meteorológicas extremas. Abraçamo-nos mas está demasiado frio para nos despirmos. Despimo-nos mas está demasiado calor para nos conseguirmos abraçar. Etc.

14 junho 2004

Um dos conceitos mais interessantes da área dos estudos eleitorais é o do votante sofisticado ou inteligente. Simplificando, o eleitor não vota na que seria naturalmente a sua primeira escolha, mas tendo em conta outros factores, aritméticos ou simbólicos. Os eleitores têm motivações diversas e insondáveis e a agregação dos seus votos em percentagens torna-se na proclamação de um oráculo que «não revela nem esconde, dá sinais.» O facto de, esta noite, os sinais serem múltiplos e contraditórios revela apenas que precisamos de intérpretes mais sofisticados e inteligentes e de mais sociologia eleitoral.

08 junho 2004

Terça-feira, oito de junho de dois mil e quatro - Vénus em trânsito pelo sol, numa coreografia de sombras. Se tivesse um diário, esta seria a entrada mais importante do dia, mesmo de toda a semana. Vénus em trânsito pelo sol, num teatro de sombras.

02 junho 2004

Morar num terceiro andar obriga-nos a conviver com a atracção pelo abismo. Hoje suicidou-se-nos mais um pano do pó. Não deixou sequer uma nota a explicar uma decisão tão drástica. Mas já estamos habituados. Os nossos objectos têm tendência a lançar-se em queda livre. Quanto a isso, as molas da roupa são os escandinavos dos objectos. À mínima distracção uma lança-se no vazio. E os nossos vizinhos também parecem ter o mesmo problema. Há um telheiro no rés-do-chão onde repousam os restos mortais de cada vez mais objectos improváveis: um vaso inteiro, muitas molas de roupa, um pano do pó, um soutien, dois pares de cuecas. São apenas dados sem teoria, para o caso de alguém querer actualizar o trabalho de Durkheim.

01 junho 2004

Eternal Sunshine of the Spotless Mind

Talvez seja mesmo possível entrar na cabeça de John Malkovich, cair dela para um terreno ao lado de uma auto-estrada. Mas mais interessante seria entrar na de Charlie Kaufman. As ideias labirínticas saem de cérebros labirínticos e todos temos cérebros assim, com os nossos próprios animais míticos. Charlie Kaufman parece ter simplesmente perdido a ponta do fio que indica o caminho mais rápido entre o cinzento mais profundo e a luz do dia. E leva-nos de memória em memória, numa organização improvável das imagens. Charlie Kaufman é o argumentista de Being John Malkovich, Adaptation (Inadaptado) e, agora, de Eternal Sunshine of the Spotless Mind (O Despertar da Mente). O título original do filme é retirado de um poema de Alexander Pope («How happy is the blameless vestal's lot!/ The world forgetting, by the world forgot./ Eternal sunshine of the spotless mind!/ Each pray'r accepted, and each wish resign'd.») e não se podia pedir mais do que a recusa de uma tradução literal. Três e muito.