28 maio 2004

O Embaixador de Jesus, Paula Rego

Amaro tem as mãos sobre o manto azul. A mão esquerda sobre a cabeça de Amélia, a direita na perna. Amélia retrai-se, perturbando por momentos o equilíbrio entre a razão e o desejo. A batina negra dele parece ganhar o mesmo valor simbólico do chapéu preto dos vilões nos westerns. Ela está vestida de branco. No fundo, em volta, anjos ou mulheres-cão, outras testemunhas de um crime, uma boneca, um bébe, o reflexo de Amaro.

Foi este o quadro – ou um dos quadros – de Paula Rego que ardeu, esta semana, em Londres, no incêndio de um armazém de obras de arte contemporânea.

Podemos, pelo menos, ficar com o momento seguinte da cena, pelo Eça:

Amaro então chegou-se por detrás dela, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda - e estendendo os lábios por sobre os dela, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos de Amélia cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para trás, pesada de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam, ávidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração dela apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre, descorada e morta de gozo.
Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro

(Apesar de Eça ter quebrado uma das regras fundamentais de construção de cenas eróticas, a utilização do termo «beiços», não deixa de ser uma descrição sugestiva.)

Remover

Acabei de receber uma carta de José Luís Arnaut a motivar-me para o Euro, quando a única coisa que me poderia desmotivar era receber uma carta do Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro a tentar motivar-me. Apeteceu-me logo cancelar a encomenda da grade de «minis» e enrolar a bandeira, mas fiz o mais razoável - o mesmo que julgo que fará o resto dos «caros portugueses» - voltei-lhe as costas e colei-a no frigorífico (na parte de trás tem um calendário dos jogos).

26 maio 2004

O oásis de Amesterdão

A Gisela leu sobre o suicídio botânico e escreveu-me a dizer que lhe acontece exactamente o contrário. No escritório acham estranho que apenas as plantas que estão à volta dela sobrevivam. Imagino-a no seu oásis, a colher tâmaras com um braço e a agrafar com o outro, com um deserto de secretárias a estender-se centrifugamente. Depois de ver a mãe dela a cuidar do quintal de Moledo, acredito simplesmente que deve haver algo de genético na relação com os vegetais.
E a Eva, a irmã da Gisela, está grávida. Parabéns a ela e ao César, a ele o que é dele.

(Gisela, como não sei se conseguiste encontrar alguma coisa da Adília Lopes aí por Amesterdão, toma lá dois poemas.)


Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações

A Pão e Água de Colónia, Frenesi, 1987




Maria Andrade vai
à casa de banho
do aeroporto de Kinshasa
para rezar
precisa de agradecer
o encontro fortuito
com Túlio
como nas igrejas
em que entra
pela primeira vez
(é a primeira vez
que entra na casa de banho
do aeroporto de Kinshasa)
pede três graças
que mantém secretas
o Pai bate na testa
o Filho entre as maminhas
o Espírito na maminha esquerda
e o Santo na direita
às vezes o Espírito Santo
fica todo
na maminha esquerda
outras vezes o santo
fica no ar entre as maminhas
Maria Andrade
de joelhos
de mãos postas
reza
mas as maminhas interferem
com os antebraços
Maria Andrade
nunca viu nada escrito
sobre este assunto

A Continuação do Fim do Mundo, & etc, 1995

24 maio 2004

Uma Primavera de mulheres

A Carla está grávida. O Pedro (Santos) mostrou-nos a ecografia. Como ainda é demasiado cedo para se distinguirem feições, convencionámos que o lado esquerdo se parece mais com a Carla e o direito como o Pedro. A Irene também está grávida e o Ireneu já começou a trocar os guias de viagem para os próximos anos: os do Perú, do Bangladesh, da Albânia, pelos da Eurodisney. A minha prima Sílvia também está. E a Celita, e a Sónia. Encontrei o Hélder da minha turma, que vai ter um filho em Setembro, e o Rui vai ter gémeos (contou-me o Fernando), e acho que ouvi falar que a Eunice também estava grávida, mas não tenho a certeza. Ainda é cedo para falar de uma explosão demográfica, mas a este ritmo os meus amigos vão obrigar o Professor Barata a actualizar a sua sebenta de 1961.

21 maio 2004

OS COMEDORES DE ESPAÇO
O terror instalara-se na região com a chegada dos comedores de espaço. Os habitantes olhavam atónitos o espaço a desaparecer a toda a sua volta, incluindo casas, ruas, rios, árvores. Nada indicava que atrás deles não surgissem criadores de espaço capazes de repor as coisas nos devidos lugares ou que os próprios comedores não pudessem vomitar tudo o que haviam devorado. Mas mesmo nesta circunstância o mais provável era que o espaço, transformado entretanto nas entranhas de quem o deglutira, pouco tivesse já a ver com o que os habitantes haviam conhecido, nele se misturando coisas que os comedores trouxessem na memória e que decerto lhe viriam agarradas quando violentamente o expelissem.
Luís Miguel Nava, Vulcão

(O itálico é meu.)

19 maio 2004

XXII
O crepúsculo excita os loucos. – Lembro-me que tive dois amigos a quem o crepúsculo punha muito doentes. Um deles, nessas alturas, desconhecia todos os deveres da amizade e da educação, e maltratava, como um selvagem, o primeiro que aparecesse. Vi-o atirar à cabeça dum mordomo um excelente frango, em que ele pretendia ver não sei que insultante hieróglifo. A tarde, precursora das volúpias profundas, estragava-lhe as coisas mais suculentas.
Outro, um ambicioso falhado, tornava-se, à medida que o dia tombava, mais acre, mais sombrio, mais travesso. Ainda sociável e indulgente durante o dia, era implacável à tarde; e não era apenas contra os outros mas também contra si mesmo, que raivosamente se aplicava a sua mania crepusculosa
O primeiro morreu doido, incapaz de reconhecer a mulher e o seu filho; o segundo traz em si a inquietação duma doença perpétua, e se fosse decorado com todas as honras que podem conferir as repúblicas e os príncipes, creio que o crepúsculo acenderia ainda nele um ardente desejo pelas distinções imaginárias. A noite, que lhes punha no espírito as suas trevas, ilumina o meu; e, ainda que não seja raro ver a mesma causa engendrar dois efeitos contrários, fico sempre como que intrigado e alarmado com ela.

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris

Nunca atirei – nem tenho amigos que tenham atirado – frangos excelentes à cabeça de ninguém. A minha sanidade e a dos meus amigos vai ao ponto de não atirarmos a ninguém mesmo frangos menos bons. É um limiar de loucura muito débil, mas suficiente para tempos tão estranhos e agitados. Não tenho qualquer «mania crepusculosa», apenas o crepúsculo à minha frente e uma citação que não deve ser desperdiçada. Também não tenho nenhuma teoria geral sobre as personalidades crepusculares, capaz de explicar a diferença entre as matinais e as nocturnas. A passagem das trevas para a luz ou da luz para as trevas (qualquer que seja o sentido, real ou metafórico) não pode deixar de provocar distúrbios de personalidade. Talvez a loucura crepuscular seja uma doença mais comum do que os compêndios de psicologia admitam, e o seu primeiro sintoma seja o de se escrever textos sobre ela.
XXXIII
Devemos andar sempre bêbados. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: «São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com virtude, a teu gosto.»

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris

Sai um traçadinho, um hexâmetro e um pires da virtude do dia para a mesa do fundo.

Inventário de existências

Já só falta demolirem um ou dois pavilhões das fábricas para ter vista de rio, as sardinheiras estão a recuperar bem depois do coma, mais uma vez não consegui combinar qualquer coisa com o Zé Pedro e já não vejo o Armando há quase duas semanas, a médica olhou para a ecografia do meu ombro e está indecisa entre tendinite e micro-rotura, nenhuma das quais desculpa a minha má forma no vólei, a tradução vai lenta, ainda no capítulo sobre Rousseau, continuo, não desempregado, mas mal-empregado, a Joana já tirou para fora a roupa de Verão e fica muito bem com ela, já instalámos a ventoinha frente ao sofá para sobrevivermos aos meses quentes. Isto é um resumo de tudo sobre o que poderia ter escrito nestes últimos dias, para vos poupar tempo e dioptrias. Sobre a situação do mundo, comprem um jornal.

12 maio 2004

Não sendo pitagórico, dou comigo frequentemente a encontrar teoremas matemáticos no quotidiano. Hoje, com a greve da Carris, percebi claramente que o número de trabalhadores em greve cresce em igual proporção ao do de utentes reaccionários nas paragens de transportes públicos.

O suicídio botânico

Alguns dias depois de escrever o texto sobre a minha sardinheira suicida, chegou-me às mãos o livro do Seinfeld. Ao que parece, o meu problema é mais comum do que pensava:

Não tenho plantas em minha casa. Elas comigo não sobrevivem. Algumas nem esperam até morrer; suicidam-se. Um dia cheguei a casa e dei com uma enforcada num frio de macramé, com o vaso atirado fora do suporte. O recado dizia: «Odeio-te a ti e aos teus discos.

(Jerry Seinfeld, Linguagem Seinfeld, Gradiva.)

Nem enforcamento nem queda do terceiro andar. Com métodos suicidas tão espectaculares e interessantes, a minha sardinheira optou pela greve de fome. Definha lentamente, caem-lhe as pétalas. Se alguém conhecer um bom psicólogo de plantas, deixe por favor o contacto nos comentários. Ou o nome de uma boa marca de adubos.

Catálogo de monstros

Não me tem apetecido escrever no blogue, por isso fiz a coisa óbvia: ler o Livro do Desassossego para inspiração. Se existisse a tecnologia, tenho a certeza que Pessoa o teria publicado em primeiro lugar em forma de posts, em insónias sucessivas. A consequência também é óbvia, depois de ler algumas páginas, nada que escreva suporta a comparação. A inspiração transforma-se em citação, como a sonolência em monstros:

243.

Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais do que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a coerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.
São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.


(Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, p. 239.)

05 maio 2004

O eclipse nublado

Os fenómenos cósmicos não são tão espectaculares quando não os podemos observar. Com o céu nublado não consegui ver ontem o eclipse da Lua. Sendo assim, não passou de uma anotação num anuário ou de um ponto num cálculo de trajectórias. O mecanismo dos eclipses da Lua é igual ao do cinema. Temos, em uma ou duas horas, a sequência de planos que habitualmente se sucedem ao longo de um mês, do quarto crescente ao minguante. Para conseguir o mesmo efeito, vou ter de olhar para o céu nocturno todas as noites durante um mês e abstrair-me de tudo o que aconteceu durante os dias. Abstrair-me do que acontece durante os dias não é muito difícil mas, ainda assim, vou consultar os anuários e esperar pelo próximo eclipse.

(Os eclipses costumam ser presságios de acontecimentos. Ontem não era muito difícil de adivinhar. Com o céu nublado, bastava olhar para a televisão. Na mesma altura, o Porto passava à Final da Liga dos Campeões. Parabéns.)
- Por que não falas tu comigo?, perguntei eu à Júlia, a minha cadela, que sempre esboçou essa vontade contida nos latidos. Não comunicamos por telepatia, uma coisa bonita, como o Tiago e a Teresa, mas prosaicamente ela ladra e eu falo, e entendemo-nos assim apesar de termos os dois nomes de gente.

04 maio 2004

- É ridículo dar nome de pessoa a um animal doméstico, e a plantas ainda é mais, por o antropomorfismo ser mais difícil de compreender. – disse eu para a Teresa, a minha sardinheira, que não me contradisse. A pobre tem tendências suicidas, sempre no beiral a ponderar o voo e a queda. As flores vermelhas, que interpretamos como um despontar de beleza, talvez sejam apenas um pedido de ajuda, para chamar a nossa atenção. Não se preocupem comigo, estou só a brincar, não estou louco, não falo com as plantas. Na verdade, eu e elas comunicamos por telepatia.