29 dezembro 2006

As coisas que usamos para marcar as páginas dos livros revelam bastante sobre nós. Durante muito tempo usei bilhetes de comboio. Lia nos comboios, encostado ao vidro, com o sol e as sombras a alternarem-se sobre as folhas, ou de pé, nas horas de ponta. Quando depois andava pelas ruas de Lisboa, com o livro na mão, a ponta do bilhete traia a minha natureza suburbana. (Uma natureza de que sempre me orgulhei. Nos subúrbios os movimentos de experimentação cultural, em especial na música, eram muito mais activos do que no centro da cidade. As tribos eram mais variadas e criativas: os heavys, os vanguardas, os rockabillies.) Depois usei quase tudo: talões de multibanco, pacotes de açúcar vazios, guardanapos de café. Tudo isto porque nos últimos tempos tenho reparado que utilizo quase sempre os próprios talões de reposição que as editoras colam na página três dos livros. Dei por mim a pensar se isso não quererá dizer que não tenho tempo sequer para me levantar e procurar uma coisa mais apropriada. Seja como for, tenho apenas uma regra: qualquer coisa serve como marcador de livro, menos um marcador de livro.

27 dezembro 2006

Na cidade são os hábitos que fazem as aldeias. Os lugares que costumamos frequentar geram padrões de comunidade, que podemos abandonar ou adoptar de modo voluntário. A contiguidade geográfica não é um factor relevante. Os locais onde vivemos, passamos os tempos livres e fazemos compras podem ficar a alguma distância uns dos outros, com muitas ruas inospitaleiras pelo meio. Nestas aldeias, muitas vezes as ruas têm nome, mas as pessoas não. Têm rosto e função: quem nos serve o café, quem nos traz o correio, quem se costuma sentar ao nosso lado nos transportes públicos, quem lê o jornal todos os sábados na mesa em frente à nossa. Os amigos têm todos nome, mas geralmente também só encontramos os que frequentam os mesmos lugares. Para o bem e para o mal, vivemos nas aldeias que criamos.

26 dezembro 2006

Sem aquecimento central, refugiamo-nos numa das divisões da casa, com as portas e as janelas trancadas e um aquecedor. Os vidros estão embaciados. Lá fora pode ser a Sibéria e estarem a passar tribos nómadas de criadores de renas. Com as sobras do natal podemos sobreviver até ao próximo equinócio. Alguns dos nossos amigos voaram para sul*. Nós ficámos parados nesta estação.

* De avião, para o Brasil.

19 dezembro 2006

O A. ofereceu-me O Mito de Sísifo de Albert Camus. O ensaio que dá o título ao livro centra-se na fase em que o herói desce a encosta para recuperar a pedra que rolou até ao sopé da montanha. Para Camus esse é um momento trágico, em que Sísifo se torna consciente da sua condição. Passa os únicos instantes em que podia desfrutar da vista e do ar da montanha a cismar no sentido da vida e nos problemas no trabalho. Camus termina o texto com a frase: É preciso imaginar Sísifo feliz. E isso resume toda uma filosofia.

17 dezembro 2006

A lenda atribui o feito a Ulisses, mas é mais certo que tenham sido fenícios, de Tiro, a fundar Lisboa. Meteram-se em barcos e atravessaram todo o Mediterrâneo e umas milhas de Atlântico para construírem uma cidade frente ao estuário do Tejo, na rota entre a Fenícia e as Ilhas Britânicas, onde comerciavam metais. A maioria dos fenícios já partiu, alguns provavelmente foram mudando de nome e vivem na mesma encosta ou na encosta ao lado.
Passados mais de dez séculos, militares portugueses fizeram o caminho inverso. Passaram ao largo de Ítaca e estão neste momento estacionados perto de Tiro, uma cidade do actual Líbano, como parte do contingente da FINUL. A ironia é ainda maior quando nos lembramos que Portugal decidiu enviar uma companhia de engenharia de reconstrução. Os momentos em que a História permite a retribuição são raros. Se ainda existem fenícios em Tiro, qualquer que seja o seu nome, espero que tenham ido até à praia saudar o regresso dos barcos.

13 dezembro 2006

Estive em Berlim por momentos. Para ter a perspectiva dos anjos, subi à torre da televisão (365 m), no lado oriental da cidade, ao fundo de uma avenida a que chamam «sob as tílias». As árvores não têm folhas nesta época do ano e as iluminações de Natal sobem pelos galhos despidos como trepadeiras de luz. Não consegui ouvir os pensamentos dos berlinenses, apenas o meu, repetitivo: als das kind kind war.
(Delacroix, La liberté guidant le peuple, 1830)

A J. passa tanto tempo com a mama de fora por estes dias que fico sempre à espera que apareça uma multidão em fúria a segui-la quando atravessa os corredores da casa.
Moro num quarto andar sem elevador e por isso quando digo ao rapaz da telepizza para ficar com o troco, não é uma gorjeta, é um pedido de desculpas.

04 dezembro 2006

Ainda não andava na escola e os miúdos da rua da minha avó eram quase todos maiores que eu. Armávamo-nos de paus compridos com um mais pequeno atravessado, pregado com um prego e tínhamos a espada. Depois, com contraplacado, fazíamos escudos, que segurávamos com cordas ou fios eléctricos. E enchíamos os bolsos com pedras. A seguir, as hostes inimigas enfrentavam-se na "Sopa" - o largo em frente à abandonada Igreja de são Pedro, a antiga sopa dos pobres, em Grândola - e lutávamos. Não me lembro de ficar magoado, embora duvide que tal se devesse à minha valentia. Nem faço ideia se alguma vez aleijei alguém. Era pequeno e até à adolescência fui fraco na luta corpo a corpo. Mas aquela coisa bélica, natural, em crianças a fazer de soldados medievais dava uma adrenalina que não esqueço. Talvez a mesma razão levasse o Tiago a ser cúmplice nos assaltos à fruta dos quintais alheios. Em geral, também eu fui bem comportado, mas hoje sei porquê: havia uma dimensão ética qualquer, o que na infância é um misto de medo e dever ser perante o bem e o mal, que vem da autoridade dos pais, e mantém um certo padrão ao longo da vida.
Em algumas noites de verão, entre o final da infância e a adolescência, os rapazes da minha rua juntavam-se para ir à chinchada, i.e. roubar fruta aos quintais das vivendas mais próximas. Nada muito industrial ou destruidor, apenas umas quantas ameixas ou nêsperas. Como não acredito que alguém tivesse realmente fome, a actividade parecia fazer parte de um conjunto de rituais de passagem adaptado aos meios suburbanos. Eu também ia, mas o mais estranho é que na época não gostava de qualquer espécie de fruta. Não era dos mais aventureiros, dos que subiam aos ramos mais altos ou entravam nos quintais guardados por cães. Pelo Contrário. Mas ia. O padrão tem-se repetido em muitos outros momentos. Sempre fui relativamente bem comportado, mas mais por defeito de personalidade do que por gosto. Limito-me a acompanhar, de forma silenciosa e discreta, as caçadas e atrai-me o lado sombrio das coisas, de que nunca passarei de um aprendiz.

01 dezembro 2006

Voto gága

Quando ontem o Parlamento propôs aos deputados o voto de pesar por Mário Cesariny, depois de um dia inteiro de senta e levanta pelo Orçamento de Estado, ele havia de ter levantado a gola do peludo e rido, e dito Gága, Gága, ou assim "- O que é a pátria?/ É uma coisa sem solução", entre outras coisas:

Nesta ilusão iludi-me.
A hora da vida já
Soltou uma gargalhada
E saiu pela janela
(...)
Fiz da vida ida.
Fiz da morte volta
Gága, gága, gága.
Fiz de pedra tudo.