Everyman, de Philip Roth, é um livro sobre a falência do corpo e a inevitabilidade do tempo como realidade irreversível. Enquanto o corpo se gasta e a solidão da velhice toma conta do que resta da vida, o passado assombra o espírito de quem cometeu demasiados erros que não pode reparar. A conversa com o coveiro que lhe enterrou os pais é eloquente, pela normalidade habitual da sua vida enquanto enterra mortos: "It's a good education for an old person", disse-lhe o antigo publicitário. Páginas antes há esta frase terrível: "Old age isn't a battle; old age is a massacre". Portanto, como já senti o meu corpo falir várias vezes, e ainda sou novo, penso frequentemente que a liberdade de escolher caminhos como se nada me condicionasse seria a melhor maneira de combater a irreversibilidade do tempo, antes da falência do corpo. Mas como há sempre um mundo de condicionantes, seria certo que os erros cometidos por excesso de voluntarismo me assombrariam o envelhecimento - se ele ocorresse. É difícil comandar o destino e não deixar que simplesmente a vida nos viva a nós. Afinal, nas mãos do coveiro seremos um dia todos iguais.
Também Hamlet falou com um coveiro, impressionado com a banalidade do seu trato com os restos dos mortos: "Não terá este homem senso no que faz que cante quando cava sepulturas?", perguntou Hamlet a Horácio, que lhe respondeu: "O hábito criou-lhe esta displicência nos modos". É como em Philip Roth, quando a mulher chega com o almoço do coveiro num termo. A estranheza que nos assombra perante a inevitabilidade da morte, um destino impossível - como a caveira do bobo sem os lábios que tinham beijado Hamlet quando criança -, é o mistério que permanece em Everyman: a linha invisível que separa os vivos dos mortos também separa a totalidade da irrelevância. O resto é o caminho até lá se chegar.
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