27 novembro 2006

Promoções

Quando entrei na Almedina do Saldanha, saltou-me à frente uma moça com sotaque do Porto e a dizer, Olá, eu sou escritora!, Quer ver um dos meus livros?, sabe que eu sou do Porto, e é muito mais difícil ser conhecida aqui em Lisboa... Sou professora de Português, e olhe, este é o meu primeiro livro, em que a personagem principal é um médico, este é infanto-juvenil, tem filhos?, é sobre o planeta Plutão, aquele aqui de baixo é o mais recente... Não vai levar nenhum?...
Bem, eu fiz como no supermercado, quando aparece uma moça vender iogurtes ou azeites ou paté, e disse, tenho de ir ali ver detergentes de outra prateleira. Depois vi a rapariga repetir a mesma figura uma e outra vez. Não levei nenhum dos dela. E tive um sentimento que detesto, que é sentir vergonha pelos outros.
Não posso deixar de pensar que as nossas amigas produzem líquido amniótico em excesso. A expressão «rebentar as águas» atingiu um óbvio exagero. Quando há cerca de um mês nasceu a Francisca, a baixa de Pombal, a cidade do pai, ficou totalmente inundada. O Ruca comentou connosco a coincidência com um sorriso, quando a fomos ver à maternidade. Agora, na sexta-feira passada, nasceu a Rita e metade do país ficou submerso. Ainda não a fomos visitar e por isso só sabemos pelo Zé Pedro que é comprida, cabeluda e linda. Ao que parece, tem o sorriso da Mafalda. Bem-vinda. Darei mais notícias quando a for conhecer.

(Aliás, por motivos que se estão a tornar óbvios, estamos a pensar mudar o nome do blogue para Boletim da Associação Nacional de Médicos Obstetras.)
Na infância, quando o meu conhecimento do mundo e da língua era ainda (mais) imperfeito, não conseguia compreender o sentido da expressão: depois da tempestade vem o Bonanza. Mesmo assim, quando a chuva parava, conseguia ouvir distintamente o galopar de cavalos.

24 novembro 2006

Delfos vs Job

Conhece-te a ti mesmo, pois, é bonito dizer, mas tu és tu na relação com os outros, e, assim, como é que sabes os teus limites em relação ao que te cerca? Ontem vivi um desses momentos: a gota de água faz transbordar o copo? O copo está meio, mesmo cheio ou completamente vazio? Em função do meu conhecimento sobre mim, a realidade é uma coisa. Quando ponho o que conheço de mim numa perspectiva (em relação ao que conheço dos outros), a realidade é uma coisa diferente. Devemos ser como Job e suportar todas as provações? Ou considerar qualquer infâmia (pequena ou grande) inaceitável em função do conhecimento que achamos que temos de nós mesmos? Às vezes, o Livro de Job não traz maus ensinamentos, mesmo se nos servirmos da frase escrita à porta de Delfos para nos enchermos de confianças. Às vezes, é preciso ter calma, e pensar que se no nosso trabalho nem tudo é perfeito, há muitos empregos em que apenas nem tudo é mau. Por enquanot sou Job.

20 novembro 2006

No frontispício do Oráculo de Delfos foi inscrita a frase: «Conhece-te a ti mesmo.» Não há indicação de que as restantes paredes do templo dissessem o que fazer depois disso. Como manual de auto-ajuda é muito limitado. Na ausência de conselhos posteriores, interpreto o silêncio do oráculo como a impossibilidade de passarmos dessa fase.
Uma das coisas que me leva a pensar que não me preparei o suficiente para a paternidade é não saber muitas canções de embalar. Ontem ao fim da tarde, para tentar acalmar a L., cantei-lhe Dead Beat Club dos B52’s, Ask dos The Smiths e Into My Arms de Nick Cave. Resultou. Atribuo o êxito mais a um bom gosto musical herdado geneticamente do que à minha (má) voz.

17 novembro 2006

Volto ao trabalho após três semanas de dedicação exclusiva à puericultura. Tenho receio de encontrar alguém mal-disposto numa das salas e tentar pô-lo a arrotar. Colocar a cabeça no meu ombro, dar uma palmadinhas nas costas e dizer baixinho «Pronto, pronto, isso já passa.»

05 novembro 2006

Notícias do génesis

No princípio a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito movia-se sobre a superfície das águas. Agora já não. A Laura nasceu há uma semana. Observa-nos com o mesmo olhar de curiosidade e incompreensão com que a observamos a ela. É como olharmo-nos a um espelho para nos aprendermos a reconhecer. Ainda não conseguimos atravessá-lo, embora por vezes as mãos e os braços mergulhem até ao fundo para a resgatar do choro no interior das águas. Estamos a habituar-nos a novas rotinas e os dias têm passado muito rápido. Ao sétimo dia, descansámos, que a criação de um mundo provoca fadiga para além do orgulho.

(Obrigado a todos pelas mensagens de boas-vindas que nos chegaram por correio, correio electrónico, telefone, sms e comentário no blogue.)

02 novembro 2006

O século das luzes

O século XXI recebe os recém-nascidos como eles próprios toda a vida imaginaram que seriam recebidos quando nascessem no século XXI. A Laura, por exemplo: da primeria vez (e única) que a vi, tinha uma cama de luz violeta, e pairava nela sobre um gaze levezinho, como se estivesse numa nuvem. Ou num episódio do Caminho das Estrelas. Terça-feira, quando visitei a Joana e o Tiago no hospital, estava ela a atestar baterias mamando fervorosamente como desde sempre a humanidade fez, e então percebi que se o menino Jesus não tivesse nascido tão cedo na História tambem havia de ter preferido o calor da luz ao bafo da vaca. Laura, o mundo ainda é o que é, mas tem vindo a melhorar. Benvinda ao século em que foste imaginada.