27 dezembro 2005

a music of chance


Sob o efeito alucinogéneo das rabanadas descobri semelhanças entre a notação musical e a notação da sueca. Talvez por não perceber nada de música e muito pouco de sueca, os traços e bolas com que se registam ambas as artes parecem-me ter uma base comum, com origens longínquas no cálculo combinatório e nas teorias do caos. Talvez por não perceber nada de cálculo combinatório ou de teorias do caos. Podemos assim conceber uma música do acaso, minimalista, construída através da interacção inconsciente de quatro pessoas que jogam às cartas num jardim. Um conceito digno de Borges e credível apenas enquanto durar o efeito do vinho do Porto.

12 dezembro 2005

«Proibido estudar neste estabelecimento»

Dos cinco elementos definidores que George Steiner descreve em A Ideia de Europa, há um que me faz sentir verdadeiramente europeu: a cultura de café. O espaço, não a planta. «Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia.» Em Lisboa são o último recurso ou refúgio de quem quer ler e precisa de fugir de alguma coisa. O hábito teve como consequência não intencional o desenvolvimento de estratégias de consumo comuns à espécie. A escolha sábia das bebidas e o ritmo de substituição das chávenas vazias pode prolongar a utilização do espaço por vários capítulos.

10 dezembro 2005

Segundo o Oxford Companion to Philosophy, o riso sofístico (risus sophisticus) é a técnica, identificada por Górgias de Leontini, de destruir a seriedade de um adversário com o riso e o seu riso com a seriedade. É uma técnica bastante eficaz, especialmente se a utilizarmos contra nós próprios. Não nos conseguirmos levar a sério e não nos acharmos grande piada.

06 dezembro 2005

Livro de cabeceira da semana

JEPHSON GARDENS

Agora és estrangeiro em sentido
próprio, com os nervos toldados
por demasiada música. Sentado
na erva de Maio, junto à estufa
das carnívoras – Dragão Vermelho,
Sarracenia flava – a tua Primavera
tortuosa, transplantada.

Enrolas tabaco holandês, procuras
na memória um verso que melhor
explique o lastro das circunstâncias,
uma Inglaterra mais funda, deitada
à sombra da experiência
das palavras. E tal como esse
pequeno, quase imponderado
esforço, não terá sido afinal inútil
tudo o que fizeste na vida?

Rodas e repetições, é assim o tempo
na carne. Mas o que aprendeste
com o primeiro desengano não te preparou
para o segundo, o terceiro e todos
os que se seguiram. Entretanto faz sol
e o mundo existe, é quase uma pintura
de inocente intenção.

Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005

05 dezembro 2005

A ocupação do espaço

A conceito mais brilhante inventado por Jeremy Bentham não está em An Introduction to the Principles of Law and Legislation, o livro em que expôs as bases do seu sistema utilitarista. Auto-ícone, a ideia de uma pessoa se representar a si própria com o seu corpo, depois de morta. O conceito é o da estátua, sem a mediação do granito, e representa um meio termo entre as múmias dos faraós e as estátuas humanas das ruas movimentadas das grandes cidades europeias. Mais interessante ainda é Bentham ter aplicado o conceito a si próprio e poder ser visitado no University College de Londres, na caixa de madeira onde permanece sentado há anos, talvez a pensar nas frases com que iniciou o seu grande livro e que já não regem a sua (não-)existência:

Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will serve but to demonstrate and confirm it. In words a man may pretend to abjure their empire: but in reality he will remain subject to it all the while.

01 dezembro 2005

À borla

«Artigo 31º - O direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada postumamente.» [Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos]

«Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.» [Livro do Desassossego de Bernardo Soares]

Aforismos, empirismo

Ainda não percebo totalmente o conceito de gravata de Inverno, mas ando com o esterno mais quente.
Farto de ter de ceder os louros pelos presentes a São Nicolau, um amigo contou-me que este ano decidiu ter uma conversa com a filha e explicar-lhe que, como se podia ver pelas longas barbas brancas, o senhor já estava muito velhinho, teve um enfarte do miocárdio e morreu, paz à sua alma. Um século depois de Nietzsche ter decretado a morte de deus, alguém declara o óbito do Pai Natal. Não sei se a filosofia ocidental estará preparada para mais este abalo.