29 dezembro 2006

As coisas que usamos para marcar as páginas dos livros revelam bastante sobre nós. Durante muito tempo usei bilhetes de comboio. Lia nos comboios, encostado ao vidro, com o sol e as sombras a alternarem-se sobre as folhas, ou de pé, nas horas de ponta. Quando depois andava pelas ruas de Lisboa, com o livro na mão, a ponta do bilhete traia a minha natureza suburbana. (Uma natureza de que sempre me orgulhei. Nos subúrbios os movimentos de experimentação cultural, em especial na música, eram muito mais activos do que no centro da cidade. As tribos eram mais variadas e criativas: os heavys, os vanguardas, os rockabillies.) Depois usei quase tudo: talões de multibanco, pacotes de açúcar vazios, guardanapos de café. Tudo isto porque nos últimos tempos tenho reparado que utilizo quase sempre os próprios talões de reposição que as editoras colam na página três dos livros. Dei por mim a pensar se isso não quererá dizer que não tenho tempo sequer para me levantar e procurar uma coisa mais apropriada. Seja como for, tenho apenas uma regra: qualquer coisa serve como marcador de livro, menos um marcador de livro.

27 dezembro 2006

Na cidade são os hábitos que fazem as aldeias. Os lugares que costumamos frequentar geram padrões de comunidade, que podemos abandonar ou adoptar de modo voluntário. A contiguidade geográfica não é um factor relevante. Os locais onde vivemos, passamos os tempos livres e fazemos compras podem ficar a alguma distância uns dos outros, com muitas ruas inospitaleiras pelo meio. Nestas aldeias, muitas vezes as ruas têm nome, mas as pessoas não. Têm rosto e função: quem nos serve o café, quem nos traz o correio, quem se costuma sentar ao nosso lado nos transportes públicos, quem lê o jornal todos os sábados na mesa em frente à nossa. Os amigos têm todos nome, mas geralmente também só encontramos os que frequentam os mesmos lugares. Para o bem e para o mal, vivemos nas aldeias que criamos.

26 dezembro 2006

Sem aquecimento central, refugiamo-nos numa das divisões da casa, com as portas e as janelas trancadas e um aquecedor. Os vidros estão embaciados. Lá fora pode ser a Sibéria e estarem a passar tribos nómadas de criadores de renas. Com as sobras do natal podemos sobreviver até ao próximo equinócio. Alguns dos nossos amigos voaram para sul*. Nós ficámos parados nesta estação.

* De avião, para o Brasil.

19 dezembro 2006

O A. ofereceu-me O Mito de Sísifo de Albert Camus. O ensaio que dá o título ao livro centra-se na fase em que o herói desce a encosta para recuperar a pedra que rolou até ao sopé da montanha. Para Camus esse é um momento trágico, em que Sísifo se torna consciente da sua condição. Passa os únicos instantes em que podia desfrutar da vista e do ar da montanha a cismar no sentido da vida e nos problemas no trabalho. Camus termina o texto com a frase: É preciso imaginar Sísifo feliz. E isso resume toda uma filosofia.

17 dezembro 2006

A lenda atribui o feito a Ulisses, mas é mais certo que tenham sido fenícios, de Tiro, a fundar Lisboa. Meteram-se em barcos e atravessaram todo o Mediterrâneo e umas milhas de Atlântico para construírem uma cidade frente ao estuário do Tejo, na rota entre a Fenícia e as Ilhas Britânicas, onde comerciavam metais. A maioria dos fenícios já partiu, alguns provavelmente foram mudando de nome e vivem na mesma encosta ou na encosta ao lado.
Passados mais de dez séculos, militares portugueses fizeram o caminho inverso. Passaram ao largo de Ítaca e estão neste momento estacionados perto de Tiro, uma cidade do actual Líbano, como parte do contingente da FINUL. A ironia é ainda maior quando nos lembramos que Portugal decidiu enviar uma companhia de engenharia de reconstrução. Os momentos em que a História permite a retribuição são raros. Se ainda existem fenícios em Tiro, qualquer que seja o seu nome, espero que tenham ido até à praia saudar o regresso dos barcos.

13 dezembro 2006

Estive em Berlim por momentos. Para ter a perspectiva dos anjos, subi à torre da televisão (365 m), no lado oriental da cidade, ao fundo de uma avenida a que chamam «sob as tílias». As árvores não têm folhas nesta época do ano e as iluminações de Natal sobem pelos galhos despidos como trepadeiras de luz. Não consegui ouvir os pensamentos dos berlinenses, apenas o meu, repetitivo: als das kind kind war.
(Delacroix, La liberté guidant le peuple, 1830)

A J. passa tanto tempo com a mama de fora por estes dias que fico sempre à espera que apareça uma multidão em fúria a segui-la quando atravessa os corredores da casa.
Moro num quarto andar sem elevador e por isso quando digo ao rapaz da telepizza para ficar com o troco, não é uma gorjeta, é um pedido de desculpas.

04 dezembro 2006

Ainda não andava na escola e os miúdos da rua da minha avó eram quase todos maiores que eu. Armávamo-nos de paus compridos com um mais pequeno atravessado, pregado com um prego e tínhamos a espada. Depois, com contraplacado, fazíamos escudos, que segurávamos com cordas ou fios eléctricos. E enchíamos os bolsos com pedras. A seguir, as hostes inimigas enfrentavam-se na "Sopa" - o largo em frente à abandonada Igreja de são Pedro, a antiga sopa dos pobres, em Grândola - e lutávamos. Não me lembro de ficar magoado, embora duvide que tal se devesse à minha valentia. Nem faço ideia se alguma vez aleijei alguém. Era pequeno e até à adolescência fui fraco na luta corpo a corpo. Mas aquela coisa bélica, natural, em crianças a fazer de soldados medievais dava uma adrenalina que não esqueço. Talvez a mesma razão levasse o Tiago a ser cúmplice nos assaltos à fruta dos quintais alheios. Em geral, também eu fui bem comportado, mas hoje sei porquê: havia uma dimensão ética qualquer, o que na infância é um misto de medo e dever ser perante o bem e o mal, que vem da autoridade dos pais, e mantém um certo padrão ao longo da vida.
Em algumas noites de verão, entre o final da infância e a adolescência, os rapazes da minha rua juntavam-se para ir à chinchada, i.e. roubar fruta aos quintais das vivendas mais próximas. Nada muito industrial ou destruidor, apenas umas quantas ameixas ou nêsperas. Como não acredito que alguém tivesse realmente fome, a actividade parecia fazer parte de um conjunto de rituais de passagem adaptado aos meios suburbanos. Eu também ia, mas o mais estranho é que na época não gostava de qualquer espécie de fruta. Não era dos mais aventureiros, dos que subiam aos ramos mais altos ou entravam nos quintais guardados por cães. Pelo Contrário. Mas ia. O padrão tem-se repetido em muitos outros momentos. Sempre fui relativamente bem comportado, mas mais por defeito de personalidade do que por gosto. Limito-me a acompanhar, de forma silenciosa e discreta, as caçadas e atrai-me o lado sombrio das coisas, de que nunca passarei de um aprendiz.

01 dezembro 2006

Voto gága

Quando ontem o Parlamento propôs aos deputados o voto de pesar por Mário Cesariny, depois de um dia inteiro de senta e levanta pelo Orçamento de Estado, ele havia de ter levantado a gola do peludo e rido, e dito Gága, Gága, ou assim "- O que é a pátria?/ É uma coisa sem solução", entre outras coisas:

Nesta ilusão iludi-me.
A hora da vida já
Soltou uma gargalhada
E saiu pela janela
(...)
Fiz da vida ida.
Fiz da morte volta
Gága, gága, gága.
Fiz de pedra tudo.

27 novembro 2006

Promoções

Quando entrei na Almedina do Saldanha, saltou-me à frente uma moça com sotaque do Porto e a dizer, Olá, eu sou escritora!, Quer ver um dos meus livros?, sabe que eu sou do Porto, e é muito mais difícil ser conhecida aqui em Lisboa... Sou professora de Português, e olhe, este é o meu primeiro livro, em que a personagem principal é um médico, este é infanto-juvenil, tem filhos?, é sobre o planeta Plutão, aquele aqui de baixo é o mais recente... Não vai levar nenhum?...
Bem, eu fiz como no supermercado, quando aparece uma moça vender iogurtes ou azeites ou paté, e disse, tenho de ir ali ver detergentes de outra prateleira. Depois vi a rapariga repetir a mesma figura uma e outra vez. Não levei nenhum dos dela. E tive um sentimento que detesto, que é sentir vergonha pelos outros.
Não posso deixar de pensar que as nossas amigas produzem líquido amniótico em excesso. A expressão «rebentar as águas» atingiu um óbvio exagero. Quando há cerca de um mês nasceu a Francisca, a baixa de Pombal, a cidade do pai, ficou totalmente inundada. O Ruca comentou connosco a coincidência com um sorriso, quando a fomos ver à maternidade. Agora, na sexta-feira passada, nasceu a Rita e metade do país ficou submerso. Ainda não a fomos visitar e por isso só sabemos pelo Zé Pedro que é comprida, cabeluda e linda. Ao que parece, tem o sorriso da Mafalda. Bem-vinda. Darei mais notícias quando a for conhecer.

(Aliás, por motivos que se estão a tornar óbvios, estamos a pensar mudar o nome do blogue para Boletim da Associação Nacional de Médicos Obstetras.)
Na infância, quando o meu conhecimento do mundo e da língua era ainda (mais) imperfeito, não conseguia compreender o sentido da expressão: depois da tempestade vem o Bonanza. Mesmo assim, quando a chuva parava, conseguia ouvir distintamente o galopar de cavalos.

24 novembro 2006

Delfos vs Job

Conhece-te a ti mesmo, pois, é bonito dizer, mas tu és tu na relação com os outros, e, assim, como é que sabes os teus limites em relação ao que te cerca? Ontem vivi um desses momentos: a gota de água faz transbordar o copo? O copo está meio, mesmo cheio ou completamente vazio? Em função do meu conhecimento sobre mim, a realidade é uma coisa. Quando ponho o que conheço de mim numa perspectiva (em relação ao que conheço dos outros), a realidade é uma coisa diferente. Devemos ser como Job e suportar todas as provações? Ou considerar qualquer infâmia (pequena ou grande) inaceitável em função do conhecimento que achamos que temos de nós mesmos? Às vezes, o Livro de Job não traz maus ensinamentos, mesmo se nos servirmos da frase escrita à porta de Delfos para nos enchermos de confianças. Às vezes, é preciso ter calma, e pensar que se no nosso trabalho nem tudo é perfeito, há muitos empregos em que apenas nem tudo é mau. Por enquanot sou Job.

20 novembro 2006

No frontispício do Oráculo de Delfos foi inscrita a frase: «Conhece-te a ti mesmo.» Não há indicação de que as restantes paredes do templo dissessem o que fazer depois disso. Como manual de auto-ajuda é muito limitado. Na ausência de conselhos posteriores, interpreto o silêncio do oráculo como a impossibilidade de passarmos dessa fase.
Uma das coisas que me leva a pensar que não me preparei o suficiente para a paternidade é não saber muitas canções de embalar. Ontem ao fim da tarde, para tentar acalmar a L., cantei-lhe Dead Beat Club dos B52’s, Ask dos The Smiths e Into My Arms de Nick Cave. Resultou. Atribuo o êxito mais a um bom gosto musical herdado geneticamente do que à minha (má) voz.

17 novembro 2006

Volto ao trabalho após três semanas de dedicação exclusiva à puericultura. Tenho receio de encontrar alguém mal-disposto numa das salas e tentar pô-lo a arrotar. Colocar a cabeça no meu ombro, dar uma palmadinhas nas costas e dizer baixinho «Pronto, pronto, isso já passa.»

05 novembro 2006

Notícias do génesis

No princípio a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito movia-se sobre a superfície das águas. Agora já não. A Laura nasceu há uma semana. Observa-nos com o mesmo olhar de curiosidade e incompreensão com que a observamos a ela. É como olharmo-nos a um espelho para nos aprendermos a reconhecer. Ainda não conseguimos atravessá-lo, embora por vezes as mãos e os braços mergulhem até ao fundo para a resgatar do choro no interior das águas. Estamos a habituar-nos a novas rotinas e os dias têm passado muito rápido. Ao sétimo dia, descansámos, que a criação de um mundo provoca fadiga para além do orgulho.

(Obrigado a todos pelas mensagens de boas-vindas que nos chegaram por correio, correio electrónico, telefone, sms e comentário no blogue.)

02 novembro 2006

O século das luzes

O século XXI recebe os recém-nascidos como eles próprios toda a vida imaginaram que seriam recebidos quando nascessem no século XXI. A Laura, por exemplo: da primeria vez (e única) que a vi, tinha uma cama de luz violeta, e pairava nela sobre um gaze levezinho, como se estivesse numa nuvem. Ou num episódio do Caminho das Estrelas. Terça-feira, quando visitei a Joana e o Tiago no hospital, estava ela a atestar baterias mamando fervorosamente como desde sempre a humanidade fez, e então percebi que se o menino Jesus não tivesse nascido tão cedo na História tambem havia de ter preferido o calor da luz ao bafo da vaca. Laura, o mundo ainda é o que é, mas tem vindo a melhorar. Benvinda ao século em que foste imaginada.

30 outubro 2006

A aterragem da Cegonha

Belém, dia 29 de Outubro
"O voo JT1502 aterrou em segurança no aeroporto Francisco Xavier às 20h47. A passageira Laura já desembarcou os seus 2,915 kg e fez check-in no peito da mãe" - foi o SMS do Tiago ontem à noite, pouco tempo depois do corte epistemológico da paternidade o ter atingido. Dia de alegria. Os reis magos estão prontos para a rumar a Belém.

27 outubro 2006

Pensar que saiu de dentro dela

A Francisca tem quase o dobro da idade que tinha na primeira vez que a vimos, ontem à noite. Quanto entrámos no quarto da maternidade, estava enrolada numa manta cor-de-rosa e nos braços da Isabel, sonolenta de mamar. Tem cinquenta centímetros. Deve ter estado enrolada como um bicho-de-conta na barriga da mãe no final da gravidez. Não demorámos muito. Uma grávida a visitar uma maternidade corre o mesmo risco que uma pessoa sã a visitar um manicómio. Por mais que assegure que está só de passagem, podem não a deixar sair.

25 outubro 2006

"Entre nós e as palavras...

... há metal fundente", escreveu Cesariny num poema excepcional, de múltiplas aplicações. Entre nós e as palavras dos políticos, o que há é material gasoso.

Na campanha eleitoral, em 2005, Sócrates disse isto: "As taxas moderadoras servem para moderar os excessos de alguém que vai usar uma emergência hospitalar sem razão, para que tenha uma penalização. Não serve para financiar o sistema. O sr. primeiro-ministro [Santana] falou foi numa taxa que permitisse aumentar as receitas do Estado no Serviço Nacional de Saúde. Isso é na prática um novo imposto. Isso é um erro". Entre estas palavras e os factos de hoje, há metal contundente, mas inconsequente. As taxas de utilização na saúde, para cirurgias e internamentos, são o quê?

No debate com Santana na SIC, também em 2005, Sócrates afirmou o que toda a gente sabe: "Não estou de acordo com a subida dos impostos, não estou (...). Foi no momento de falha dessa promessa eleitoral, quando o Governo [de Durão] chegou ao poder e decidiu aumentar o IVA que a confiança veio por aí a baixo. Isso foi uma leviandade. Isso foi muito negativo para a democracia". Esta frase devia ser lida e relida, por cada um de nós, antes de decidir em quem votar nas próximas eleições. Estas palavras valem tanto quanto a possibilidade de conquistar o poder. Entre nós e as palavras, há poder.

Cada palavra vale o que vale. E vale muito pouco, por vezes. Um palavra pode ser um som, apenas, que sai de uma boca. Um grunhido desmiolado pode valer tanto como um palavra. A palavra também pode pesar como chumbo. Quando Manuel Pinho disse "a crise acabou", foi um caso desses, em que ao signo não corresponde um significado. Caso contrário, não teria dito no dia seguinte, que decretar o fim da crise era uma "infantilidade". Ele pronunciou aquele conjunto de sons e pronto, o significado evaporou-se.

Entre nós e os políticos não há nada se as palavras não tiverem consequências.

24 outubro 2006

Equilíbrio reflexivo

O equilíbrio reflexivo (reflective equilibrium) é um método utilizado para tentar conciliar princípios filosóficos abstractos com princípios de justiça que intuitivamente aplicamos a casos individuais. Pensamos num princípio ou teoria e verificamos se a sua aplicação a casos particulares colide com valores que consideramos estabelecidos. Se colidir, temos de reformular as proposições ou alterar a nossa crença nesses valores, andando entre a teoria e a prática até atingirmos um ponto de equilíbrio. Não é um método isento de problemas, mas pode ser útil em determinadas ocasiões.

Por exemplo. Um dos princípios pelo qual tento orientar a minha conduta, sempre que possível, é o princípio do dano, tal como enunciado por John Stuart Mill. É qualquer coisa como isto: A liberdade individual apenas deve ser limitada para impedir que os actos de alguém provoquem danos a outros indivíduos. O seu próprio bem, físico ou moral, não é justificação suficiente para a intromissão alheia. Mas tenho dúvidas em aplicar esta regra a determinadas questões, como a da legalização do consumo de drogas. A justificação para a proibição das drogas leves é bastante fraca. O problema são as drogas duras (alguns dirão: «a falta de drogas duras»). Não encontro justificação para a proibição do consumo, mas a sua legalização não me parece razoável. Ainda estou longe do equilíbrio.
Tenho pensado muitas vezes que a grande tragédia da nossa geração é usar fato mas ainda comer bollycaos.

23 outubro 2006

Durante a tarde de ontem pensei seriamente em construir uma arca e começar a reunir dois animais de cada espécie. A chuva amainou, senão o mundo futuro teria apenas, além de nós, formigas, pombos e bichos da madeira.
O Fernando Pessoa tinha uma arca cheia de poemas. A minha tem roupa de Inverno. E está na altura de abrir o espólio.

19 outubro 2006

Há coisas que me fazem acreditar que o sentimento de comunidade ainda não desapareceu totalmente, mesmo nas grandes cidades. Uma é o hábito dos Lisboetas de colocarem algumas coisas ao lado, e não dentro, do caixote do lixo. Em regra são móveis, electrodomésticos, artigos de decoração ou presentes oferecidos por parentes afastados no Natal anterior. Isto cria um mercado informal bastante dinâmico, com produtos a descerem e a subirem pelas escadas dos prédios no espaço temporal que vai do pôr-do-sol à recolha do lixo. Ontem, quando saímos para jantar, à porta de um dos prédios da nossa rua estava um conjunto constituído por uma sanita completa, uma cama e um outro objecto que não consegui identificar. A cama, desmontada, era de metal, lacada a branco, com apliques dourados. Era a única coisa que faltava do conjunto quando regressámos a casa duas horas mais tarde.

13 outubro 2006


Quando colocamos a mão na barriga, sente-se por vezes uma forte ondulação. Por outro lado, parece que, devido a um alinhamento da Lua e do Sol, o mês de Outubro vai ter as marés vivas mais fortes dos últimos anos. Pelo sim, pelo não, decidimos fazer «a mala».

10 outubro 2006

Baeta

O ritual mensal de ir ao barbeiro sempre me foi penoso. Estar sentado naquela cadeira, imóvel, enquanto alguém à minha volta maneja objectos afiados deixa-me indefeso. Não há outro momento em que sinta tanta empatia pelas partnéres dos atiradores de facas do circo.
Durante mais de vinte anos fui ao mesmo barbeiro, apesar de não gostar particularmente da forma como me cortava o cabelo. Dizem que um sinal de maturidade nas relações é duas pessoas conseguirem estar em silêncio sem se sentirem desconfortáveis. Foi por isso muito difícil quanto me mudei para o centro de Lisboa e tive de passar meia hora por mês em silêncio com um novo barbeiro. No final, quando trazem aquele espelho para que consigamos ver o corte na parte de trás da cabeça, sinto sempre um desejo incontrolável de aplaudir. E algumas vezes de ir comprar um chapéu.

04 outubro 2006

Amanhã é feriado

To the evil of monarchy we have added that of hereditary succession; and the first is a degradation and lessening of ourselves, so the second, claimed as a matter of right, is an insult and an imposition on posterity. For all men being originally equals, no one by birth could have a right to set up his own family in perpetual preference to all others for ever.
Thomas Paine, Common Sense (1776)

03 outubro 2006

A fraqueza da carne

De todos os livros que nunca li há um que me causa especial receio: Libertação Animal, de Peter Singer. O facto de intuir o conteúdo impede-me de o abrir. Para os argumentos morais do vegetarianismo tenho apenas biologia e não sei como resolver um conflito entre uma ciência humana e uma ciência natural. No fundo, tenho medo de perceber que sou demasiado fraco e que, apesar da capacidade de ser convencido por um bom argumento, não sou capaz de alterar a vida de acordo com isso. Ou mesmo de ter de reconhecer algo que me repugna, que muitas vezes os desejos são mais fortes que a razão.

A que dia sai o Inimigo Público?

«Arroz de cabidela de Vítor Sobral ganha título mundial.»

«Doente tem alta com termómetro no ânus. Um homem com 85 anos, acamado, que esteve internado 24 horas no Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, teve alta e foi transportado para casa de ambulância com um termómetro dentro do ânus. A. Silva, que não quis identificar-se para proteger a dignidade do seu pai[:] ‘Com tantas voltas, foi um milagre o termómetro não se partir. Ainda por cima era de mercúrio.’»

«Incidente da casa de banho parece ter sido sanado. O encontro de reunificação do título mundial de xadrez foi ontem reatado com a realização da sexta partida que terminou empatada. O campeão clássico Vladimir Kramnik viu satisfeitas as suas reivindicações, a substituição dos elementos do comité de apelo e a reabertura das instalações sanitárias particulares.»

Público, 3/10/2006.

19 setembro 2006

Quando saio de casa muito cedo fico sempre surpreendido com o número de pessoas que já estão acordadas, a trabalhar ou a caminho do trabalho. O que é para mim uma quebra de rotina, dolorosa e revigorante como um cálice de aguardente, representa o horário habitual de muita gente. E ainda assim, apesar de já haver movimento, as ruas têm uma calma inesperada, como se as pessoas tivessem demasiado sono para falar alto, guiar rápido ou andar depressa. Já é de dia, mas os candeeiros públicos continuam acesos. Já estou acordado, mas ainda estou a dormir.

06 setembro 2006

Ilusão estival

Quando as férias se aproximam, os dias ganham outro significado, como se em breve fosse ter todo o tempo do mundo para descansar e pôr toda a vida atrasada em dia. Pura ilusão.

05 setembro 2006

Está muito calor. Durante a manhã o sol bate numa parte da casa e temos de nos refugiar no fundo da outra. Durante a tarde volta-se para a parte da frente, e temos de iniciar nova travessia do deserto, com a garrafa de água na mão esquerda e a ventoinha na direita. As portadas estão quase sempre fechadas. A luz parece ter peso e estar a empurrá-las do lado de fora. Vemos os contornos da madeira definidos pelas frinchas. Durante a noite não arrefece. É como estarmos hospedados num hotel do sul da Ásia, mas sem podermos telefonar para a recepção a pedir cubos de gelo.

31 agosto 2006

Outra

Dizimar: But for all her [the Roman Republic] administrative acts the most terrible was the practice of ‘decimating’ an army, i.e. of choosing by lot every tenth man, and putting him to death. Machiavelli, The Discourses

29 agosto 2006

Muitas das palavras modernas incorporaram uma magia ou superstições antigas, cujo significado está longe de ser óbvio quando as utilizamos. Não sabemos o que dizemos, literalmente. Os íncubos eram, segundo acreditavam alguns povos, demónios que desciam dos céus e possuíam as mulheres durante o sono. Ao que parece, no inglês arcaico, a esses demónios dava-se o nome de mare, o que estará na origem da palavra nightmare. Isto confere uma perspectiva completamente diferente à expressão «It was just a nightmare». Em português, utilizamos a palavra pesadelo, cuja etimologia felizmente desconheço.

(A sugestão para o post foi da Joana, que tirou a ideia de um livro do Carl Sagan. Começa-se assim, acaba-se a fazer malha ou a construir puzzles de quinze mil peças.)

28 agosto 2006

Choque de titãs

Aristóteles:
«a beleza excessiva, a força extrema, a linhagem inigualável, a riqueza desmedida, ou os respectivos opostos, tais como a pobreza excessiva, a debilidade extrema, e a ausência de honrarias, têm dificuldade em seguir a voz da razão.» Política, Livro IV (sobre as virtudes da classe média)

Lou Reed:
«Average looks, average taste
average height, an average waist
Average in everything I do
my temperature is 98.2

I'm just your average guy
an average guy

[...] trying to do what’s right»

Average Guy, The Blue Mask, 1982

(É bom saber que a democracia precisa de pessoas como nós.)

27 agosto 2006

1º post do Guegué:

gbxxxxxxxxx xxxxcvxk jjjd l mrsnmsxncdz

Promoção nuclear

...pelo contrário, temos a promoção dos uranianos, vizinhos dos uraquianos, e que detestam os umericanos, que aprenderam a enriquecer urânio, e, eventualmente, a fazer explosões nucleares, coisa só vista no campeonato estelar.

24 agosto 2006

Provedor do leitor

Alice sighed wearily. ‘I think you might do something better with the time,’ she said, ‘than waste it asking riddles that have no answers.’

Despromoção à liga de honra

Depois do Gil Vicente, Plutão. Sem possibilidade de recurso.

Turismo suicida

Depois de ter passado, numa noite sem televisão, um quarto de hora a tentar perceber o conceito de entropia, compreendo que Boltzmann, o físico que o definiu, se tenha suicidado. O que acho estranho é ter-se suicidado quando estava de férias em Itália, na Baía de Duíno, perto de Trieste. Enquanto a mulher e a filha foram nadar, ele enforcou-se. O que demonstra o elevado grau de desordem em que se encontrava o seu sistema físico.

(Pouco tempo depois, dados experimentais viriam a confirmar as suas teorias.)

21 agosto 2006

Dizem que a solidão não se cura com comprimidos. Isso contraria a minha tese (de que já tratei aqui) sobre a relação entre os reformados e os centros de saúde. De um modo geral, os reformados têm tendência a juntar-se a outros reformados – num fenómeno semelhante ao das gotas de mercúrio – em lugares como centros de saúde, filas de minipreço e balcões da Caixa Geral de Depósitos. Este facto, pouco estudado, contribui para o défice do sistema nacional de saúde e para um gasto excessivo em cadernetas CGD, sempre perfeitamente actualizadas. O senhor doutor receita gotas para os olhos, cremes para a espondilose, ampolas para as diabetes, quando para alguns casos bastaria um baralho de cartas. 7h30 da madrugada, senha 31.

13 agosto 2006

Meta-post

Os escritores têm o trauma da página em branco. Os bloggers têm o da eternização do último post. Quando não se alimenta o animal de forma regular, colocar um texto torna-se uma responsabilidade demasiado grande. Se não for bom, as pessoas que visitam o blogue vão ter, ainda assim, de lê-lo de modo recorrente durante semanas. Uma solução é adoptar a teoria do eterno retorno: escrever cada post como se pudesse ser lido infinitamente. A outra é ir escrevendo qualquer coisa para ir empurrando o passado para baixo.

08 agosto 2006

The Passenger, Michelangelo Antonioni

Apesar de, tirando o Jack Nicholson, os outros actores não terem jeitinho nenhum para a coisa; apesar de a Maria Schneider passar o tempo todo com cara de quem a margarina de Paris lhe caiu na fraqueza; apesar de muitos dos diálogos parecerem artificiais; apesar de a música do Iggy Pop compreensivelmente não fazer parte da banda sonora (acho que só foi gravada mais tarde); gostei do filme.

04 agosto 2006

I.A.

Na escrita inteligente do meu telemóvel quando tento escrever o meu próprio nome aparece primeiro a palavra «vício». A primeira reacção é pensar «Fui descoberto». É natural que a inteligência artificial venha a evoluir exponencialmente no meu tempo de vida, mas nem a leitura dos livros do Arthur C. Clarke e do Ray Bradbury, na adolescência, me preparou para ser psicanalisado por uma máquina. Na dúvida, atribuo o fenómeno a uma infeliz coincidência alfabética.

03 agosto 2006

Banhos de sol


Domingos sem charme, dias sem interesse, banhos de sol dos pobres.

- Ai se eu fosse nova, o que era dos rapazes que passavam. Havia aqui dantes tanta tropa... Mas no meu tempo não se podia, era uma vergonha, sabe lá. Agora faço o que me apetece e a minha filha até pensa que fui à missa. Adeus, e aproveite enquanto pode...

Ao domingo sai do bairro da Bica, atravessa a estrada até ao Tejo e senta-se ali, num banco perto do parque de estacionamento, que havia de ser o de um jardim.

Nem o peixe pica nem ganha o Benfica


- Ó chefe, hoje isso 'tá a dar?
- O peixe não pica... 'tá pior que o Benfica!

Na calçada entre o Cais do Sodré e a Praça do Comécio, os pescadores alinham-se aos domingos de manhã, e esperam.

- Mas ó chefe, o peixe daqui é bom?
- Olha, olha, então não é? Ele são linguados, sargos, você sabe lá? Já viu ao preço que isto 'tá na praça?...

02 agosto 2006

À pesca das tágides



- Olha que belo homem! Um fisherman...

- Liiindo português! Digo alguma coisa?

- Nã...

- Olha o brilhozinho daquela barriga. E a cana...

- Eu cá gosto mais da careca e do bigode.

- É a encarnação da verdeira alma lusitana à pesca submarina de tágides. Olhe, mister? Não vai um fadinho?

01 agosto 2006

Estas fotos foram tiradas num passeio, este domingo, com o Afonso. Postarei mais.
Tiago, bom regresso! Dá-me as tuas legendas também.

A linha do destino


Na linha do destino, velhos desconhecidos na hora das observações.

Luz rolante


Uma caminhada lenta, agonizante, num comboio rolante que leva esta gente toda até ao sol urbano de Carcavelos.

Região solar


A espera, um café tomado em pé, um passo antes de tempo e somos luz quando o sol nos atravessa com partículas de hélio.

Praia dos pobres


Domingo. Estação do Cais do Sodré. Às nove e meia da manhã o povo move-se na estação com um frenesim de sentido contrário: hoje eles não chegam a Lisboa, hoje eles vão. De guarda-sol enrolado, calções vestidos, sandocha na mochila, toalha ao pescoço, cores que se vejam. A praia é dos pobres na linha do Estoril. O sol quando nasce é para todos, sabia-se. A areia não. Cada um vai a banhos onde pode.

31 julho 2006

Fui a banhos. Ir à praia no Algarve é uma experiência multicultural incomparável. Podemos adivinhar a nacionalidade das crianças pelas brincadeiras que têm. As francesas passam o dia a construir pequenas fortificações e castelos de areia que são rapidamente destruídos pela subida da maré ou pela corrida intrépida das crianças alemãs. As holandesas escavam redes de canais na areia molhada para encaminharem a água salgada para lagos interiores. As crianças suecas e dinamarquesas passam simplesmente o dia sentadas dentro das poças a cismar sobre o sentido da vida. Já regressei.

Copy-paste

The pleasures of expectation are the pleasures that result from the contemplation of any sort of pleasure, referred to time future, and accompanied with the sentiment of belief.

Jeremy Bentham, Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1789

20 julho 2006

*

Na verdade, de um ponto de vista puramente gastronómico, eu deixava de ter pena do porco acabado de matar, quando o meu avô aparecia com o fígado (acabado de extrair) grelhado na brasa, mal passado, temperado com azeite, vinagre e alho. Se eu fosse Prometeu, a minha história seria uma metáfora da inveja, por inveja ao abutre.

* para ser lido com um ligeiro sotaque alentejano.

14 julho 2006

*

De um ponto de vista puramente gastronómico, tenho menos pena do Prometeu que do abutre que lhe tem de comer o fígado todos os dias.

* Pensamento do dia ao estilo Agora Escolha. Deve ser lido com a entoação de voz da Vera Roquete.

05 julho 2006


Para quem tinha saudades de vitórias morais...



O Deco jogou?

A horagá



Este homem vai ser o orgulho da nação!

Até lá, à hora H, vou: trabalhar qualquer coisa, almoçar com uma pessoa, moderar uma conversa, levar o carro à inspecção, encomendar frangos, comprar bujecas, ufff, vestir o Miguel, meter a sopa dele, o biberão e o Blédine na mochila e voltar ao carro, esperando que a Carla consiga chegar a horas, para ir ver esse grande momento no estádio talismã: a casa da Blan e do Afonso. Que os deuses nos protejam!

Relógios e queijos suíços


A França é um mecanismo perfeito, só não digo que é um relógio suíço porque o Zidane podia irritar-se (os argelinos são danados). E Portugal não tem cometido erros, por isso, não podem esperar os franceses que deste lado encontrem um queijo suíço. Daqui das Linhas de Torres não há buracos, e as tropas napoleónicas (sabendo que tivemos a ajuda dos ingleses) sabem que este rectângulo não é fácil de tomar. Ora tenho para mim que desta vez ganhamos. Ai ganhamos sim. O Deco, esse representante da genuína alma lusitana, vai marcar. Vão ver....

29 junho 2006

Idade da pedra

Quando uma frase sublinha a que vem a seguir, não basta depois corrigir as palavras ditas porque o sublinhado fica lá. Qualquer criança da primária sabe que uma frase sublinhada a vermelho dá mais trabalho a apagar. Foi grave que Fernando Ruas, presidente da ANMP, tivesse dito para os autarcas correrem com os fiscais do ambiente "à pedrada". Mas antes desta ele tinha dito outra frase: "Olhem que pensei muito bem no que vou dizer..." Para no dia seguinte, por ter sido apanhado por uma rádio, vir desculpar-se com linguagem figurada. Pobres metáforas.... E com ele ninguém corre? Nem precisa de ser à pedrada.

28 junho 2006

Martin Adler

Há vidas que valem a pena ser vividas. Quando vi, no DN, a foto de um jornalista sueco assassinado não dei conta. O choque assolou-me depois, quando percebi ser Martin Adler, que tantas vezes me contou o que ia por esse mundo nas reportagens de guerra publicadas na Grande Reportagem. Essas páginas, estão guardadas ali atrás, no meu arquivo no escritório. Senti a morte dele como a de um amigo que me fez confidências, que contou grandes aventuras, que mostrou o mundo. Aquele tiro nas costas pareceu-me, estranhamente, demasiado próximo... Na notícia do DN ninguém escreveu que ele era colaborador regular de uma publicação portuguesa, ainda por cima que era do próprio grupo. O ex-director da GR, Francisco José Viegas, na Origem das Espécies, fez-lhe uma homenagem. Hoje, no DN, Pedro Rolo Duarte faz-lhe justiça. Obrigado Martin. A tua vida valeu a pena ser vivida.

27 junho 2006

Desintoxicação

Com a mudança de casa decidimos ficar sem televisão por uns tempos. A decisão tem resultado parcialmente. Tenho lido mais, mas ainda não consegui abandonar o hábito do zapping compulsivo. Ontem fui até à estante dos livros só para ver o que é que estava a dar. No primeiro estava a dar a novela brasileira (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Cubas Brás). Mudei para outro: Durante o dia, e por consideração para com os pais, Gregor não queria chegar à janela. Nos poucos metros quadrados do quarto também não podia deambular muito, ficar deitado sem se mexer era coisa que nem de noite já suportava muito bem, passado pouco tempo a comida já não lhe dava grande prazer, e assim, para se distrair, ganhou o hábito de rastejar em todas as direcções pelas paredes e pelo tecto. Não era mau, mas nunca se sabe se está a começar uma coisa melhor noutro canal. Mudei e Mrs. Dalloway tinha ido comprar ela própria as flores. As séries inglesas de época são demasiado aborrecidas e por isso desisti e fui-me deitar.
A noite de hoje vai ser diferente, vou pôr uma cadeira frente à máquina de lavar e fazer zapping entre o programa da roupa clara e o programa da roupa delicada.

20 junho 2006

Não sei que deusa da fertilidade andou a passear pela brisa da tarde, mas descobrimos que mais uns amigos vão ser pais, lá para o final de Novembro. Na Antiguidade dizia-se que na Lusitânia as éguas eram fecundadas pelo vento. As mulheres, felizmente, contam também com a nossa preciosa ajuda para conceberem filhos velozes.
Sempre que me anunciam um futuro nascimento tenho vontade de escrever duas cartas. Uma ao Prof. Medina Carreira, a pedir-lhe para rever as suas previsões sobre a falência do sistema de segurança social, e outra para as maternidades, a perguntar se fazem descontos para grupos. Mas é só enquanto dura o efeito do champanhe.
Parabéns, Mafalda e Zé Pedro.

19 junho 2006

Diário de Barcelona em 126 palavras

Estive de férias. Fui engolido por um grande peixe, como Jonas, nas casas Batló e Milà, de Gaudí, com tectos suportados por arcos parabólicos, como o interior de um tórax, e linhas curvas e orgânicas, como as entranhas de um animal marinho. Se fosse como nos desenhos animados, teria encontrado um marinheiro sentado nos destroços de um barco de madeira e saído no jacto do buraco de respiração da baleia. Como são apenas casas, saí pelas portas de vidro e ferro forjado para as ruas de Barcelona, onde há pessoas a andar por todo o lado, a todas as horas, e sentadas nas esplanadas ou nos bancos públicos das praças. Comi gaspapxo, paella e frango com ameixas e volto gordo e cansado como um pugilista reformado.

01 junho 2006

Ontem à noite as condições meteorológicas estavam favoráveis para uma ecografia. O céu estava limpo no interior da J. Mesmo assim, como os físicos e os astrónomos sabem, é tão difícil interpretar o infinitamente grande como o muito pequeno. A actividade mais parecida é a observação de nuvens: vemos o que queremos ver. Um círculo luminoso pode ser uma cabeça vista de cima ou uma lua cheia; um traço branco tanto pode ser uma luz fluorescente como um fémur. O médico, que é astrónomo amador, viu uma menina.

30 maio 2006

Blogóidismo

Anda aqui um tipo a escrever coisas sérias e ninguém liga, sobre política, ou sobre filosofia, ou literatura clássica, a mostrar que somos (muito, muito) inteligentes e (muitíííssimo) cultos... Depois um gajo escreve umas patacoadas com umas fotos de cuecas e o pessoal vá de postar comentários. Tá mal, esse estímulo ao blogóidismo. Oh, Tiago, damos ao povo o que o povo quer, pão e circo (neste caso circo), escrevemos de vez em quando um post blogóide, ou mantemos o registo de um blog dito sério?...

29 maio 2006

Comprei O Mito do Eterno Retorno de Mircea Eliade na Feira do Livro e levei-o para a viagem no Alfa Pendular. Um rapaz que estava na mesma carruagem, vendo-o pousado, pediu-mo emprestado por algum tempo. O comboio era nocturno e algures depois de Coimbra adormeci. Quando acordei o rapaz já se tinha apeado, mas o livro estava à minha frente, em cima da mesa. Afinal não é um mito, o livro foi devolvido.

24 maio 2006

Neutralidade histórica

Na Vida Paralela de Sólon, Plutarco conta a história da tomada da ilha de Salamina aos megarenses. Utilizando um subterfúgio, Sólon faz chegar a notícia de que algumas das melhores mulheres de Atenas estavam numa determinada praia a praticar um sacrifício dedicado a Deméter. Quando parte dos soldados de Mégara ruma para o local, num navio transbordante de testosterona, Sólon ordena que as mulheres se retirem e que jovens atenienses imberbes vistam os seus vestidos e tomem o seu lugar, com punhais dissimulados sob as vestes. Segundo o historiador, os megarenses acabaram todos mortos na praia. O mais curioso é não existir qualquer referência ao número de baixas do lado ateniense, sobre o número de jovens violados antes de se revelar o logro.

23 maio 2006

dezasseis semanas

O pior de tudo é a opacidade. Se o umbigo fosse amplo e transparente, como uma escotilha ou um óculo de máquina de lavar, podíamos ir espreitando. Assim, é como ter um mineiro preso no fundo de um túnel. Podemos ir falando com ele para o acalmar, passar-lhe comida e bebida através de um tubo, mas temos de esperar pacientemente até chegar o momento de o trazer à superfície.

18 maio 2006

Cidade-Estado

É frequente encontrarmos em livros de história e de ciência política elogios ao sistema de autogovernação das colónias norte-americanas da Nova Inglaterra do século XVII, com descrições de town meetings onde se discutiam os assuntos da comunidade e se tomavam decisões de forma democrática e igualitária. Embora não nos apercebamos, existe em Portugal um equivalente contemporâneo, organizado em torno de uma unidade política denominada «Condomínio».
No prédio onde morávamos até há uma semana nunca constituímos condomínio, e por isso vivíamos num estado de natureza em que, por sorte, a vida nunca foi demasiado solitária, pobre, sórdida, selvagem ou curta. Com a mudança, estava à espera de passar algumas interessantes noites de Sábado a discutir com os outros condóminos a limpeza das escadas, as infiltrações no telhado e a manutenção dos animais domésticos. Mas, aparentemente, a especialização da política também chegou a estas microcidades-estado: o poder foi transferido para um pequeno leviathan, a que os aldeões chamam empresa de gestão de condomínios. A situação não é nova, não é a primeira vez que herdo um contrato social que não assinei.

16 maio 2006

A internacional da andorinha migratória


Na Guiné-Bissau foi criado um novo partido na linha do PND português, de Manuel Monteiro, noticiou a Lusa esta tarde. Daqui a um tempinho o saudoso doutor Monteiro deve aparecer por aí a anunciar a Internacional da Nova Demoracia, ou o movimento da andorinha migratória.

15 maio 2006

A revolta das cuecas


Não, isto não se está a tornar um fetiche. Mas, francamente, acho que ontem as velhinhas de Alfama deram todas em pôr cuecas solitárias ao sol. Será um sinal cabalista do fim dos tempos, esta exposição compulsiva de objectos que representam a menopausa, e logo o fim da fertilidade, e logo o fim da reprodução, e logo a falência absoluta do sistema de Segurança Social, e logo que todos vamos ter de pagar mais contribuições porque temos menos filhos, e logo que não vamos ter reformas, e logo que vai baixar ainda mais a produtividade por ficarmos desmotivados, e o país vai enterrar-se ainda mais na crise... Aaaarrgh, estamos perdidos! Portugal não tem salvação. Sr. engenheiro, proíba as velhinhas de Alfama de espalharem maus augúrios em cuecas, bandeirolas da desgraça, e tome a medida ambiental mais sensata: nada de cuequinhas na janela depois dos 60.

14 maio 2006

Sol na cueca


Os portugueses são um povo cioso da sua privacidade, de tal modo que não há casinha que não tenha as inevitáveis cortinas que protegem o lar da invasão do olhar alheio. Na Holanda, por exemplo, é rara a janela com um cortinado. Eles aproveitam toda a luz que podem e não têm as nossas vergonhas.

Mas depois, os portugueses penduram tudo à janela: o canário e o piriquito, a roupa dos filhos, do marido, da avó, os tapetes, seja lá o que for. A lingerie, as cuecas, todos esses objectos íntimos são expostos aos mais indiscretos olhares desde que bem fenestrados, muito bem presos por um par de molas. Na Holanda não é costume ver roupa à janela. Interessantes contradições.

(Tirei a foto esta manhã, em Alfama)

Conversas de rua - 6

Ontem de manhã, o puto de 12 ou 13 anos, todo rufia, crista a meio da tola, dizia assim ao velho sentado na esplanada:
- Qu' é isso? Você não sabe qu' isso não se faz?!
Depois agarrou no pacote de cigarros que o velho tinha atirado para o chão e foi dentro do cafê pô-lo no lixo.
- É assim, assim é que você tem de fazer!...
O velho só acenou com a cabeça. Não disse nada.

12 maio 2006

Ó professor, e o Soares também?


No seu livrinho lançado ontem, Carrilho diz de António Cunha Vaz: "[Veio] oferecer-se para tratar de tudo [na campanha para as autárquica], insistindo muito em dois pontos da sua oferta: a recolha - obviamente ilícita - de fundos, e a compra de opinião".

Ora foi a agência de Comunicação de Cunha Vaz que acabou por fazer a campanha de Carmona Rodrigues, mas também foi contratada, depois, para a de Mário Soares à Presidênca da República. Neste caso, a manterem-se os pressupostos de Carrilho... mete-se Soares num pequeno sarilho. Foram recolhidos fundos ilícitos? Foram comprados colunistas? Foram corrompidos jornalistas? O dr. Soares devia dizer alguma coisinha...

Conversas de rua - 5

Numa paragem do autocarro 26, na zona da Estefânia, uma rapariga de ar saudável falava ao telemóvel e dizia assim a alguém, talvez uma amiga:

- Eu já ando preocupada porque andam a dizer que nos vão cortar no subsídio de Natal... Isto está cada vez pior... Pois, pois... O outro dia fui ao Mini-Preço e não havia nada nas prateleiras... hum, hum... Depois peguei no carro e fui ao Continente do Vasco da Gama. Estava vazio, vê lá, as pessoas já nem vão ao Continente, vão ao Mini-Preço.... Sim... e parece que o passe vai aumentar outra vez e já tinha aumentado três vezes este ano...

03 maio 2006

O futuro de Rabie - restos do bloco de notas de um jornalista - I

(Notas tiradas durante a viagem de Cavaco Silva à Bósnia e ao Kosovo, onde fui ao serviço da Sábado)

Rabie Habani é kosovar, tem 23 anos e quer casar com um americano. Rabie tem desabafos como este, enquanto serve bebidas aos soldados da NATO, num bar do quartel gigante de Jubille Barracks, em Pristina, um complexo de contentores e betão onde estão 307 tropas portugueses. "Oh, I want so much to marry an american and live in America..." Então e os soldados portugueses? E os ingleses? "Ah, they are just boys...", atira. "Não têm nada na cabeça." A jovem albanesa não quer soldados, prefere os polícias, um pouco mais velhos, como o americano que foi namorado dela e voltou aos Estados Unidos sem dizer que era casado. Um desgosto.

Maior que esse, só quando se escondeu nas montanhas que cercam Pristina, em 1999, com a família, a fugir dos paramilitares sérvios. Enterrou o seu diploma do 12º ano no chão, tirado numa escola particular, porque tinha a bandeira albanesa impressa e isso era perigo de vida. O diploma ardeu com o fogo que lhe destruiu a casa.

Os três irmãos mais velhos estão desempregados; o pai está reformado com 200 euros; e a mãe sujeita às regras muçulmanas mal sai de casa. Casar com um americano quer dizer: liberdade. "Não quero casar com um albanês e passar o resto da vida em casa a cuidar dos filhos", diz-me Rabie, muçulmana mas não praticante, tão vestida à ocidental como uma universitária portuguesa. "Quando chegar aos 25 anos, conta ela, estará "velha para casar", como se estivesse em segunda mão". O pai, que nem sonha que os 300 euros que ela leva para casa são ganhos a servir bebidas alcoólicas num pub com a foto de Isabel II, há-de querer que ela case em breve com um albanês. Está num beco.

Rabie olha para o futuro e não está lá nada: só vê uma prisão.

02 maio 2006

Por que somos pequenos?

Porque nos EUA o número estimado de imigrantes ilegais é de 13 milhões, segundo o Público de hoje, com base em dados do Pew Hispanic Center.

01 maio 2006

A lição de Tal Afar

John Kerry propôs no Senado norte-americano que as tropas americanas deixem já o Iraque; Ted Kennedy tem a mesma opinião. Estes democratas, que defendiam a manutenção das tropas até haver ali um país viável, voltaram o discurso ao contrário, cavalgando agora o cansaço da opinião pública americana em relação ao Iraque. Bush não é frequentável, mas isto é perigoso...

Para percebermos que a retirada das tropas é mesmo muito perigosa aconselho a leitura de uma grande reportagem de George Packer (é mesmo muito grande) na New Yorker de 10 de Abril. Aqui. Ser contra a guerra era sensato, no mínimo. Ser a favor da retirada é no mínimo imprudente e Packer explica porquê: ele conta como em Tal Afar o coronel MacMaster, um esclarecido em relação a outros oficiais, conseguiu pôr sunitas a falar com xiitas, através da implementação de uma doutrina de contra-insurgência que os americanos não tinham. Percebe-se pelo trabalho do jornalista no terreno, mais do que pelos números dos mortos com que somos bombardeados todos os dias, que a saída das tropas seria um desastre pior do que a própria guerra. Uma leitura recomendável.

Cinco vezes cinco: vinte e cinco

A rainha de Inglaterra recebeu 10 primeiros-ministros em 54 anos de reinado, notava Jonathan Freedland no G2, suplemento do Guardian, no dia 21 de Abril, num artigo sobre os 80 anos de Isabel II.

Se reinasse em Portugal, teria convivido com 25 primeiros-ministros em 50 anos, caso se mantivesse o ritmo de cinco primeiros-ministros em cada dez anos. Na última década foram: Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates. Ainda a malta pergunta por que é que isto está como está...

Conversas de rua - 4

Conversa entre três populares junto a um quiosque, no Jardim Constantino, antes de Sócrates anunciar as novas regras de contabilização de pensões:
Homem - Agora já tiram IRS das reformas, o que é que eles querem mais?
Mulher - Qualquer dia vão às nossas contas no banco...
Dona do quiosque - Ah, sabe que isto é sempre para pior.
Homem - Pensa que eles não sabem o que está nas nossas contas?... Então não sabem? Só aos lucros dos bancos é que eles não tiram nada...

Conversas de rua - 3

Diálogo entre criança e mãe, num supermercado, na Estefânia:
- Mãe, que fruto é este?
- Não sei... errr... é mandioca...
- Humm, será que é bom?...

28 abril 2006

Agora resta-nos a chico-espertice de viver mais do que manda a esperança média de vida

Uma dúvida, sobre a reforma de Sócrates sobre as reformas: se eu morrer antes de atingir a esperança média de vida, que entretanto aumentou e prejudicou o valor da minha reforma, terei alguma recompensa eterna? Não, nesse caso será apenas: azarinho...

Na mesma semana e no mesmo lugar, o Parlamento, quem parece ter dito umas coisas de esquerda foi Cavaco, não Sócrates. Um pensa à direita mas não diz, o outro está cada vez mais à direita mas finge que é de esquerda (moderna)... vão dar-se lindamente. Terá Cavaco em Sócrates o PM que ele sempre sonhou para o PSD?

26 abril 2006

Esquerda ou direita, is that the question?


Martim Avillez Figueiredo diz hoje no editorial do Diário Económico que Cavaco foi ao Parlamento “fingir um discurso à esquerda”. Martim tem razão – parcialmente –, quando o PR responsabiliza mais do que o Estado pela justiça social. Mas ele não pede menos Estado. Exige um esforço suplementar de responsabilização social de cada cidadão.

Apesar de pedir para que se esqueçam as ideologias, Cavaco não tem um discurso assim tão próximo dos liberais. Está umas vezes mais perto da direita tradicional, mais assistêncialista ou caritativa; ou de alguma esquerda católica, como António Guterres, apesar de há 10 anos Cavaco ter assumido que o Rendimento Mínimo era um subsídio à preguiça.

Num exercício que corre o risco de parecer muito a preto e branco, podíamos interpretar o discurso do PR assim:

Esta frase de Cavaco, uma lapalissada podia ser dita por alguém do CDS até ao BE:
O risco de pobreza persistente, que é relativamente elevado em Portugal, aumenta substancialmente no caso dos idosos

Neste caso, o PR coloca a sua voz claramente à esquerda, do tipo, os ricos que paguem a crise. Mas também pode ser vista à direita, para se diferenciarem as prestações, tratando-se de forma diferente o que não é igual:
“O esforço que o Estado tem vindo a realizar para atenuar os efeitos deste quadro social tem de ser continuado. Não é moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a que viveu uma vida inteira de privação”

Aqui, ao apelar à solidariedade na estrutura tradicional da família, quem fala é Cavaco, o católico, que vai à missa todos os domingos aos Salesianos em Campo de Ourique. É a falta de comparência da família que deixa os idosos à mercê das pequenas pensões estatais:
“Desagregadas as estruturas familiares de apoio, pelas transformações sociais ocorridas nas décadas recentes, ficaram muitos dos reformados de ontem confinados às pensões do regime não contributivo que não lhes conseguem assegurar uma existência condigna”

Finalmente, pede mais responsabilidade social, pragmatismo na resolução dos problemas, mas não pede menos Estado. Diz apenas que não chega exigir mais Estado:
Para que esse risco possa ser atenuado não chega exigir mais medidas ou mais dinheiro. Concretizar essa ambição de justiça social, que não tem de ser remetida para o plano das utopias, passa por cada um de nós. Todos somos responsáveis, todos temos de assumir a nossa quota parte de responsabilidade social que nos cabe como cidadãos

O pragmatismo de Cavaco

A 25 de Abril e a 5 de Outubro, Jorge Sampaio fazia discursos de geometria complicada, verdadeiros exercícios de quadratura do círculo: conseguia falar de tudo ao mesmo tempo, defendia a coisa e o seu contrário, lançava frases cifradas, agradava a todos, desagradava a todos, dava recados ao Governo, às oposições, a toda a gente.

Ontem Cavaco foi mais eficaz. Primeiro sugeriu: está bem, meus senhores, eu podia vir aqui falar dos problemas do regime e puxar as orelhas aos deputados, mas os senhores são crescidinhos e não vou aqui perder tempo a dizer o que toda a gente sabe e pensa, vou antes falar sobre isto - a justiça social - que é coisa muito mais importante para a vida das pessoas. O discurso está aqui.

Ao fechar o ângulo, conseguiu lançar todos os olhares para um único problema, invertendo a lógica dos discursos presidenciais. Ao escolher um tema que tanto preocupa o PC como o CDS manteve-se acima das lutas partidárias.

Ao falar da vida real das pessoas deu um sinal ineqívoco: a política serve para pensar nos outros e existe como serviço aos outros - e nisso ele assume um certo carácter messiânico - mais do que para passar o tempo aos círculos a reflectir sobre si mesma.

A contradição é tão só esta: Cavaco ganhou as eleições ao centro e já fez dois discursos à esquerda; então, para que servem os seus conselheiros mais próximos, conotados com o que há de mais liberal do ponto de vista do mercado e conservador do ponto de vista dos costumes? É que nem tudo o que Cavaco diz é tudo o que Cavaco pensa.

Um cravo no carrinho do Miguel

Ontem consegui sair cedo, coisa rara. Sentei-me com o Miguel numa esplanada na Avenida da Liberdade a ver o desfile do 25 de Abril e estivémos ali os dois a fazer coisas de homens: eu a beber uma cerveja e ele a comer uma papa e a dizer bá, bá! Há dias bons.

24 abril 2006

Conversas de rua - 2

"Is this fado?" - turista para outra, no meio de um grupo que descia a Rua do Carmo na sexta-feira Santa, ao som de Mariza, que cantava através das colunas daquele calhambeque que vende discos de fado na Baixa.

14 abril 2006

Conversa solta

Há fragmentos de conversas que se apanham na rua, no metro, nos cafés, que são instantâneos tão deliciosos como velhas polaroids. Vou começar a anotar Conversas de Rua e a partilhá-las aqui ao espelho. Como no post em baixo.

Conversas de rua - frases de hoje


"É mais fácil neste país chegar a primeiro-ministro do que estacionar o carro". Homem de meia idade, na Rua Filipe Folque, Lisboa, a gritar para um amigo.

"Ele passa férias no México ou em Óbidos". Jovem para outra, na Av. Conde Valbom, Lisboa.

"Fui preso mas não roubei nada a ninguém, nem matei. Fui preso por tráfico de droga, tráfico de droga, pá!" Bêbado, pelas nove da noite, num cafezinho do Prior Velho, Loures.

Ora vamos lá pecar

Segundo um dos maiores da hierarquia Católica, agora passar tempo na Internet é pecado. Bem, mas como já é tarde e eu hoje ainda não pequei, decidi pecar só um bocadinho.

07 abril 2006

Estrebuchar

Berlusconi atacou jornalistas e juízes. Guess what? Vai perder as eleições italianas, como Santana e como Soares em Portugal. É o que se chama um reflexo pavloviano.

O realismo

Aprendi há muito tempo que não posso mudar o mundo mas posso mudar a minha vida. Agora ando a descobrir que mesmo essa de mudar de vida se vai tornando mais difícil com a idade.

05 abril 2006

Nação bastarda


Ao que parece, Afonso Henriques, o verdadeiro, era aleijado, tendo sido o bebé original substituído por um saudável filho de Egas Moniz. O livro de Agustina que o Abruto nos oferece em pré-publicação (uma iniciativa interessante que esperemos que resulte) põe a nu alguns genes de Portugal. E a genética ajuda sempre a perceber quem somos.

- Se não é bastarda, a Nação nasceu para argumento de novela venezuelana e isso não deixa de ser divertido, apesar do fado ser melancólico;

- A modernidade é muito mais aborrecida, porque acabaram-se os milagres: pode parecer, mas não é tão miraculoso o Sampaio demitir o Santana Complicadex e nomear o Sócrates Simplex, como foi o Egas invocar o divino após trocar o menino legítimo, mas defeituoso, por outro saudável e futuro guerreiro;

- Se não fosse aquela mentira, andávamos todos a falar espanhol, Camões não havia, nem alma Lusitana, nem Barça-Benfica.

- Já estou aver a cena: o aio Egas Moniz diz a D. Afonso, "Eu é que sou o vosso verdadeiro pai, vós fostes trocado, por isso, podeis fazer a guerra a D. Teresa, ela não é a vossa mãe, mas sereis ser rei e governareis"; o infante replica-lhe em lágrimas, "Papá, eu sabia, estou tão emocionado, vinde, pegai na espada, vamos aí desbaratar uns mouros..."

Eu sou um pessimista

O funcionário das Finanças que hoje recebeu os meus 100 euros de multa porque decidi fechar os recibos verdes com uma data de 2005 (porque desde Julho nunca mais passei recibos), tinha um cartão colado ao vidro da repartição a dizer: "Eu sou um optimista!"

É bonito ver um funcionário público de óculos fundo de garrafa e fato cinzento claro com corte dos anos 70, cheio de sarro, pulover verde com desenhos pretos e gola da camisa numa confusão a dizer que é optimista enquanto cobra multas por dá cá aquela palha. Como eu gostava de ter essa sorte. Acho sempre que tudo vai correr mal para depois parecer que correu bem.

04 abril 2006

Boas decisões

- Mudar de casa e comprar o pacote alargado da TV Cabo que incui o Fox, para ver os Ficheiros Secretos, as Donas de Casa Desesperadas, o 24, o House (sobre médicos, mas melhor do que o Serviço de Urgência), os Simpsons e outros desenhos animados para adultos, muito corrosivos.

- Comprar um iPod e descarregar todas as semanas o podcast do Meet the Press, da NBC e o Washington Week da PBS.

- Ler a Conspiração Contra a América, de Philip Roth.

- Dar o biberão da manhã ao Miguel e sair de casa mais cedo.

03 abril 2006

A marca da moça registrada

Nunca li e jamais lerei a Margarida Rebelo Pinto, portanto, nem sei se é boa. Escritora. Se ela pode interpor providências cautelares para impedir a publicação de uma obra crítica à sua obra - num país onde há liberdade de expressão -, não pode alguém pedir uma acção cautelar a um tribunal que também a impeça de escrever? Não era bom, seria mau, todas as sociedades têm direito a ter má literatura, se é disso que se trata, mas era equitativo.

Olhó verso em conta!

Há poeeesia baraaata! Na R. Passos Manuel, ao Jardim Constantino, na livraria da Assírio & Alvim, podemos comprar na feira do livro manuseado (da própria editora), Pessoa, Herberto Helder, Cesariny, etc. a metade do preço. Até quase ao fim de Abril. É pena que só esteja aberta entre as 12h e as 19h.

31 março 2006

Complicadex

Sempre que vou a uma consulta no hospital, o que é frequente, desespero com a espera só para dizer que ali estou, e que podem avisar sôtor. É o menos. Enquanto espero, há sempre os velhos ao engano. Querem apenas marcar uma consulta (sabe-se lá quando) e são sempre recambiados. "Hoje não é dia de marcar consultas", diz a voz fria por detrás do balcão. Os velhos pedem desculpa e voltam para casa.

Venham as espanholas, venham as suecas

"Grupo de 16 empresas suecas prepara entrada em Portugal" - título no suplemento de Economia do DN de hoje.

António Pires de Lima, do CDS, que comentava "venham as espanholas!", para José Sócrates (a propósito do encerramento da maternidade de Elvas), deve estar radiante. Venham as suecas.

Teoria da conspiração

Saldanha Sanches, esta noite na SIC-Notícias, falou de um boato que vai por Lisboa: que a direcção da Judiciária ameaçou demitir-se e o Governo cedeu (em relação à perda de competências sobre a Interpol e a Europol) por causa das gravações judiciais do caso Bragaparques. Um boato dito assim na televisão torna-se numa verdade a correr o país. Será que vai acontecer alguma coisa, ou era ele a fazer um teaser sobre o que a mulher, Maria José Morgado haverá de dizer ainda esta noite, no mesmo canal?

30 março 2006

O olhar do Afonso


O Luís Afonso não é fotógrafo profissional, mas é fotógrafo, a prova está aqui ao lado, nesta imagem bela e invulgar que ele recolheu em Berlim. Em http://www.luisafonso.com/ viajamos pela Europa e América através da poesia do olhar dele.

O Afonso é uma daquelas pessoas especiais, um homem da Renascença do século XXI: é informático, o site foi feito por ele, mas não é apenas um geek dos computadores, é um melómano apaixonado por Mozart e Bach, coleccionador de requiems apreciador de arquitectura, fotografia, pintura... um curioso. E bom amigo, por isso sou suspeito.

Vale a pena a visita às exposições permanentes e temporárias no site dele. Boas viagens.

Cortinas de fumo

Depois de amanhã é dia das mentiras, dia de político, porque a política é a arte da ilusão (também é a arte do possível, mas isso é outra conversa). Com jeitinho, em política pode mentir-se todos os dias.

Luís Filipe Menezes anunciou hoje que não era candidato às directas no PSD invocando, entre outros, o argumento de que tinha sido reeleito para a autarquia de Gaia. Porém, quando se candidatou contra Mendes há um ano não o impressionava desbaratar a confiança que lhe deram os eleitores - pois deixaria a câmara e ia para o Parlamento -, tendo até desafiado Marques Mendes a candidatar-se a uma câmara. Dizia que liderar uma autarquia e o partido não era incompatível. Abençoada coerência...

As razões verdadeiras são outras. O homem parece meio lunático, mas não é parvo. Perdia agora para Mendes as directas que sempre defendera e acabava-se ali o Menezes.

Ele sabe que quando um adversário precisa desesperadamente de um adversário, o melhor é deixá-lo ganhar sozinho para ele se convencer enganosamente de que ganhou (isto serve para Menezes no PSD como para Temo Correia ou Pires de Lima o CDS).

Coisas do presente

Um homem tem um filho, muda de casa, não tem tempo para nada, e depois fica assim agradado com coisas naturais: hoje a dupla João Adelino Faria e Ana Lourenço, na SIC-Notícias, estiveram em grande. Apertaram com o Menezes, que não se recandidata no PSD, com o Rui Pereira sobre terrorismo, com o seu ar de eu-sei-muito-mais-do-que-digo e animaram um debate entre Ana Catarina Mendes e Teresa Caeiro sobre as quotas de mulheres nas listas às eleições.
O panorama anda tão mau que uma pessoa até diz - ah, sim senhor! - quando se vê uma coisinha bem feita.

29 março 2006

Coisas do passado - dinastia Cavaco


Enquanto este blogue esteve em coma, foi eleito um PR em Portugal. Há um mês que tenho aquela imagem atravessada. Apetecia-me dizer isto:

Cavaco, a subir a rampa do Palácio de Belém com a Maria pela mão (até aqui tudo bem), mais os filhos, mais os netos, mais o genro mais a nora é pindérico. E é monárquico.

O Luís Montez (genro) não é mais do que eu para andar ali.
A Perpétua (nora) não é mais do que você para andar ali.
(Eu também quero subir a rampa, você não quer?)
Os filhos já não são dependentes do papá para aparecerem na fotografia.
As crianças não mereciam ser usadas assim.

Em termos de marketing - dantes dizia-se propaganda - , a coisa funcionou na perfeição.

reset/restart

Hoje é um bom dia para reinaugurar este blogue. O Tiago sabe por quê. Vamos a isto.

31 janeiro 2006

Encontrei, num corredor longo e baixo de uma estação de metropolitano, um homem a tocar o Take Five de Dave Brubeck num acordeão. Não sei se isto constitui um símbolo do triunfo ou do fracasso das nossas políticas sociais. Como sou optimista e gosta da música, contribuí com a moedinha.
Sugeri escrever um último post, sobre a eutanásia, e acabar com o sofrimento do blogue. A moção foi rejeitada, por isso temos de continuar a dar-lhe doses de morfina, gota a gota.

15 janeiro 2006

Nós, os nórdicos do sul, temos melancolia sem Volvos. Caminhamos calados pelas ruas com as golas do sobretudo levantadas, passamos demasiado tempo nas esplanadas a cismar frente às chávenas de café e só não nos suicidamos mais porque esse é um passatempo de povos ricos. Estes traços de personalidade podem permanecer latentes durante meses, mas basta um dia triste de chuva como este para me apetecer ler Kierkegaard e ver filmes de Bergman.