04 julho 2009

Tudo começou com o comentário de um amigo: «Então não sabem que os malucos devem ser postos em salas redondas?» Lembrei-me do João César Monteiro a correr no pátio circular de um manicómio, nas Recordações da Casa Amarela. A câmera de filmar no centro a acompanhá-lo, primeiro lento e depois com cada vez maior velocidade. Mais tarde, já em casa, lembrei-me também das ruínas circulares do conto de Borges, onde um homem acaba por perceber, no meio de um incêndio que o consome, que a sua vida não passa de um sonho sonhado por um outro homem. Os círculos tornam-nos autoconscientes, não nos deixam fugir de nós próprios. Provavelmente não é esta a justificação teórica. Em todo o caso, a frase soou-me como uma vaga ameaça: os malucos devem ser postos em salas redondas.

27 junho 2009

Rito de passagem

Lançámos as chuchas da L. em balões de hélio cor-de-laranja. Ela acenou-lhes, sob os incentivos dos amigos que se juntaram a nós no parque para a ocasião. Tenho a certeza de que foi um daqueles momentos que lhe serão recordados por nós de forma cíclica e repetitiva. Ela não se lembrará de os ter lançado e terá de reconstruir essa memória através da nossa. Não se lembrará sequer de ter comido um Cornetto de morango no final, oferecido para apaziguar o nosso sentimento de culpa. Eram três e foram levadas pelo vento em direcções diferentes. Aconselho prudência a quem sair de casa esta noite. Se alguma vos atingir, pedimos desculpa e aconselhamos a que não a experimentem. É um hábito difícil de largar.

Fragmento de um discurso amoroso

Ao longo da infância tive, como todas as crianças, uma grande quantidade de paixões violentas e impossíveis. Lembro-me do nome de quase todas, desde os meus quatro ou cinco anos. Em retrospectiva, o mais estranho dessas paixões infantis era a impossibilidade de concretização. Aos seis ou sete anos não se namora e, mesmo que existam beijos, não têm o significado que vêm a adquirir mais tarde. Mas o platonismo não tornava menos importante a busca. Mesmo quando a paixão era correspondida, o que é raro acontecer quando somos tão novos, a relação era ritualizada numa série de jogos, de insultos pouco sinceros, de demonstrações de desinteresse mal encenadas. Era um jogo de ténis infinito, jogado entre a vantagem nula e a vantagem temporária de um dos dois, por nenhum deles saber o que fazer em caso de vitória.

01 outubro 2008

«My case, in short, is this: I have lost completely the abil­ity to think or to speak of anything coherently.»
Lord Chandos

Na carta imaginária de Hofmannsthal, Lord Chandos conta a Francis Bacon como abandonou a escrita, por ter deixado de conseguir usar a linguagem para descrever o mundo. Mesmo as experiências diárias mais banais, como repreender a filha ou discutir os assuntos da política e do estado, tinham-se-lhe tornado penosas. O interessante é que, na longa carta, Chandos consegue descrever num estilo agradável e com muito pormenor o seu bloqueio permanente. A própria escrita foi sempre um dos temas favoritos dos escritores. Devem ter-se imprimido mais parágrafos sobre a necessidade física de escrever, as dificuldades do processo criativo, do que sobre o amor, a morte ou a angústia do envelhecimento. A carta é um paradoxo, que pode ser interpretado de diversas formas. Uma delas é a de que é sempre possível continuar a escrever, mesmo que apenas sobre a impossibilidade da escrita.

30 junho 2008

Hora de almoço

Os que comem rápido ou não têm pressa passam pelo jardim depois do almoço. Cinco ou seis, que costumam almoçar juntos na cantina, conversam animadamente, metade sentados num dos bancos, metade de pé. Noutro, um homem e uma mulher de meia-idade trocam as carícias adequadas a um namoro iniciado no local de trabalho. Uma rapariga fala ao telemóvel encostada ao muro, outra dá pedaços de bolo ao gato que costuma andar a vaguear por entre as sebes. Levanta a cauda totalmente na vertical, arqueia as costas a pedir-lhe a mão. Os que comem rápido, têm a sombra.

Domingo à tarde

A casa está em silêncio, as portadas encostadas a suportarem o peso do calor. Se andássemos de divisão em divisão, poderíamos descobrir os habitantes da casa a dormir, cada um no canto para onde se arrastou após o almoço. Mas nenhum de nós tem força ou curiosidade para percorrer os corredores a observar o sono um dos outros. Sou o único acordado, sentado na varanda com sombra, um livro, uma garrafa de água e a expectativa de um gelado ao final da tarde, quando um a um os outros começarem a sair e a espreguiçar-se na entrada do covil.

05 junho 2008

(Dedicado a todos os amigos que me dizem que tenho de actualizar o blogue e a quem respondo que estou sem paciência e só me lembro de coisas estúpidas para escrever)

O Governo prepara-se para lançar a construção de um novo hospital, a que vai chamar de Todos-os-Santos. O nome é provavelmente recuperado do antigo hospital, no Rossio, destruído com o terramoto de 1755. Os santos foram depois sendo repartidos democraticamente pela cidade, são josé para um lado, santa marta para outro, santa maria para mais longe e são francisco xavier para a zona ocidental, contrariando a sua tendência natural. Mas o novo hospital era uma boa oportunidade para corrigir uma injustiça antiga. Devia-se dar-lhe o nome de Becas Moniz. Se o amigo pode ter um, porque não ele. Já comecei a recolher assinaturas para um abaixo-assinado.
Ouvido numa fila: «Às vezes penso que os humanos têm diversas espécies. Eu dou-me melhor com os da minha, por termos os mesmos gostos e frequentarmos os mesmos lugares. Outro dia, por exemplo, encontrei alguém que se parecia contigo: o mesmo tipo de cabelo, o mesmo olhar, a mesma forma de combinar as cores das roupas.» A rapariga manteve-se impassível, por já estar habituada às especulações do amigo/namorado ou simplesmente por ser assim que se comportam as da sua espécie.

29 abril 2008

I was looking for a job, and then I found a job
And heaven knows I'm miserable now
The Smiths

Começou a classificar os amigos e conhecidos em duas categorias opostas:

a) Os que queriam que ele se empregasse;
b) Os que lhe achavam graça mesmo assim.

É preciso dizer-se que nos achávamos numa sociedade de
gente empregada ou por conta doutrem, ou escrava de si própria, ou trabalhando para o Estado.
À classe a) pertencia gente honrada e digna mas, caso notável, ao falarem-lhe das vantagens de um emprego esqueciam-se com certeza que um quarto de hora antes se tinham estado a lastimar do
seu emprego – dos compromissos, engrenagens, desvirtualidades, perdas de tempo e de inteligência, baixezas e asneiras a que esse emprego os conduzia, sem remédio. Sem remédio? Este estava à vista: era desempregarem-se, libertarem-se (do emprego) usando truques engenhosos e arriscando-se no futuro. [Luiz Pacheco, O Homem que Calculava]

28 abril 2008

Um sol abrasador. Encontrámos a sombra de um pinheiro, mais um banco de jardim, junto às muralhas de Elvas. A L. dormia. Sugeri que repartíssemos a revista Ler, para passarmos o tempo. O acto de rasgar um livro ou uma revista é contrário à natureza da J., tão grave como pintar uns bigodes à Mona Lisa. Pouco convencida com a minha argumentação utilitarista, exigiu que, pelo menos, a dividíssemos exactamente a meio, para expiar a culpa de um acto selvagem com alguma lógica matemática. Quarenta e oito páginas para cada um. Tive azar, calhou-me a metade com a entrevista a Lobo Antunes. O acto fez-me recordar-lhe o (meu) velho projecto de lermos um livro ao mesmo tempo. Um começaria primeiro e, à medida que fosse avançando, ia rasgando as páginas e dando-as ao outro. Um gesto prolongado de intimidade.

13 abril 2008

Até há pouco tempo raramente tinha manhãs de domingo. Lembro-me de insultar baixinho a minha irmã mais nova que acordava cedo ao fim-de-semana e queria ver os desenhos animados. Na adolescência, aos sábados à noite seguia-se o domingo à tarde. Era capaz de dormir doze horas seguidas sem qualquer remorso. Agora que as recuperei, consigo perceber que são algumas das melhores horas da semana. Ao sábado, há o comércio, pessoas a carregarem sacos de compras pela rua e a lerem os semanários nas esplanadas. Aos domingos é possível subir e descer colinas, a perseguir as linhas dos eléctricos, sem ver muito mais do que alguns homens e mulheres a caminho da missa. Hoje, fui para a Madredeus. Descobri um nome de rua que dava um bom título para um romance sul-americano: Travessa do Recolhimento de Lázaro Leitão. Ainda assim, que fique claro, preferia ficar a dormir.

12 abril 2008

Boletim polínico

Lembro-me de ter lido alguém que defendia que o que define o Mediterrâneo são as oliveiras. Foi por isso com alguma estranheza que percebi, ao analisar o relatório de alergologia, que tenho uma alergia de grau 4 à Olea Europaea. Do ponto de vista da adaptação ao meio, o meu ramo genético já se devia ter extinguido há muito ou emigrado. Mas não. O meu pai nasceu mesmo numa freguesia com o nome de Oliveira, do distrito de Braga. É muito provável que eu descenda de povos de ciprestes ou de cedros, com implantação recente no território peninsular. Ou então, o meu antepassado era aquele lusitano que investia contra os inimigos de lenço de couro a segurar o pingo no nariz e do qual as crónicas, injustamente, não registaram os feitos.

27 março 2008

Blitz

Ontem, na Aula Magna, Rita Redshoes, feminina, quebradiça, estranha. Depois os Shout Out Louds. Foi pena que os dois guitarristas não tivessem podido vir. Mas os substitutos que arranjaram num hospital psiquiátrico de Estocolmo não se saíram mal, apesar dos óbvios problemas motores. A menina da banda, num dos cantos, vestia de pálido dos pés à cabeça e batia com a ponta do pé no chão com uma ausência adolescente.

24 março 2008

His joy is like a hunter, straining on the track of an elusive quarry.

[Martha Nussbaum, The Fragility of Goodness]

18 março 2008

Revista de imprensa

O capitão de equipa do Grupo Desportivo de Sesimbra foi detido em pleno relvado, após o jogo de domingo frente ao Comércio e Indústria, pela PSP de Setúbal, sendo encaminhado para a esquadra da Bela Vista ainda equipado e de chuteiras. Nuno Silva é acusado de "injúrias" às autoridades, após uma cena de pancadaria na bancada, onde um director do Sesimbra foi violentamente agredido na cabeça, com duas muletas. […] "Nem deixaram o homem tomar banho", lamentou ao DN o presidente do Sesimbra, Sebastião Patrício, que estava no banco da equipa, avançando que o clube vai processar criminalmente o agressor de Eduardo Rigor, que está identificado e cujas muletas foram apreendidas […]O jogador foi constituído arguido, sendo notificado para comparecer ontem no Tribunal de Setúbal, mas a audiência foi adiada para dia 1 de Abril. O jogo terminou empatado a uma bola. [DN, 18.03.2008]

13 março 2008

Todas as manhãs, com gestos automáticos, visto o fato, rodo as pontas da gravata com uma destreza inconsciente, ponho os óculos. Ao fim da tarde, abro os botões da camisa, penduro o casaco, visto as calças de ganga, sento-me no chão, sem medo de me sujar ou amarrotar. É normal que, com o passar dos anos, venha a tornar-se difícil determinar qual é a minha verdadeira identidade. Num dos monólogos finais de Kill Bill v. 2, Quentin Tarantino explica que a diferença entre o homem-aranha e o super-homem é que o primeiro esconde-se no fato de super-herói e o segundo esconde-se no fato do alter ego. O único consolo das manhãs, enquanto faço o nó da gravata frente ao espelho, é ver que ainda sigo o modelo homem-aranha:

When that character wakes up in the morning, he's Peter Parker. He has to put on a costume to become Spiderman and it is in that characteristic, Superman stands alone. Superman didn't become Superman, Superman was born Superman. When superman wakes up in the morning, he's Superman. His alter ego is Clark Kent, his outfit with the big red “S”. That's the blanket he was wrapped in as a baby when the Kents found him. Those are his clothes. What Kent wears; the glasses, the business suit, that's the costume; that’s the costume that Superman wears to blend in with us. Clark Kent is how Superman views us, and what are the characteristics of Clark Kent; he’s weak, he’s unsure of himself, he’s a coward. Clark Kent is Superman’s critique on the whole human race.

10 março 2008

Playchart

mão morta mão morta havia um pastorinho que andava a pastorar saiu de sua casa e pôs-se a cantar quem tem medo do lobo mau lobo mau tão balalão cabeça de cão orelhas de gato não tem coração mindinho seu-vizinho pai-de-todos fura-bolos mata-piolhos este diz tenho fome este diz não há pão pico pico saranico quem te deu tamanho bico outra vez agora mais rápido mão morta mão morta...

07 março 2008

A arte da fuga

Em alguns países, há residências para escritores, criadas para que aí passem temporadas a escrever e a conversar uns dos outros, financiados por bolsas literárias. Os escritores do passado tinham apenas a prisão. Parece que, na maioria dos casos, eram bem tratados e tinham acesso a material de estudo e de escrita para aproveitarem bem todo o tempo livre. A história de Grotius é apenas mais uma, mas com fuga. A mulher levou-lhe um novo abastecimento de livros num baú de madeira. Como aparentemente era pequeno, tirou os livros, enfiou-se dentro do baú e foi transportado pelos guardas para o exterior do castelo de Louvestein. Comprou a liberdade com o seu peso em livros. As biografias não esclarecem se fez questão de os ler antes de os abandonar à sua sorte.

05 março 2008

Existem características geográficas contra-intuitivas, como um deserto junto ao mar, o do Namibe, em que o areal da praia se estende muito para lá do razoável, ou uma montanha verde no meio de uma grande cidade (o Corcovado, no Rio de Janeiro). Mas a mais estranha talvez seja mesmo a desse rio que desagua no deserto, com sinais de cansaço e rendição. O Boteti inflitra-se na areia do Kalahari com o destino de Onan aplicado à geografia. O rio esteve sem correr durante anos. Em determinadas épocas do ano, os habitantes da região juntam-se nas margens secas para assistirem à chegada das águas.

05 fevereiro 2008

Filosofia de cova

Everyman, de Philip Roth, é um livro sobre a falência do corpo e a inevitabilidade do tempo como realidade irreversível. Enquanto o corpo se gasta e a solidão da velhice toma conta do que resta da vida, o passado assombra o espírito de quem cometeu demasiados erros que não pode reparar. A conversa com o coveiro que lhe enterrou os pais é eloquente, pela normalidade habitual da sua vida enquanto enterra mortos: "It's a good education for an old person", disse-lhe o antigo publicitário. Páginas antes há esta frase terrível: "Old age isn't a battle; old age is a massacre". Portanto, como já senti o meu corpo falir várias vezes, e ainda sou novo, penso frequentemente que a liberdade de escolher caminhos como se nada me condicionasse seria a melhor maneira de combater a irreversibilidade do tempo, antes da falência do corpo. Mas como há sempre um mundo de condicionantes, seria certo que os erros cometidos por excesso de voluntarismo me assombrariam o envelhecimento - se ele ocorresse. É difícil comandar o destino e não deixar que simplesmente a vida nos viva a nós. Afinal, nas mãos do coveiro seremos um dia todos iguais.

Também Hamlet falou com um coveiro, impressionado com a banalidade do seu trato com os restos dos mortos: "Não terá este homem senso no que faz que cante quando cava sepulturas?", perguntou Hamlet a Horácio, que lhe respondeu: "O hábito criou-lhe esta displicência nos modos". É como em Philip Roth, quando a mulher chega com o almoço do coveiro num termo. A estranheza que nos assombra perante a inevitabilidade da morte, um destino impossível - como a caveira do bobo sem os lábios que tinham beijado Hamlet quando criança -, é o mistério que permanece em Everyman: a linha invisível que separa os vivos dos mortos também separa a totalidade da irrelevância. O resto é o caminho até lá se chegar.

04 fevereiro 2008

My kingdom for a chicken soup

Estou a ler o Everyman (Todo-o-Mundo) de Philip Roth. É um livro sobre a decadência física, a doença e, também, sobre a ilusão da reforma como período para a concretização de projectos adiados. Eu já tenho alguns, apesar da distância: ler os restantes seis livros de Em busca do tempo perdido, aprender a tocar saxofone e a pintar. Mas não podemos saber se a nossa qualidade de vida vai ser adequada aos nossos planos. A minha visão pode não ser suficiente para toda a leitura desejada, as mãos podem tremer-me demasiado para a pintura e o fôlego pode não chegar sequer para um apito de caça. Este fim-de-semana tive uma amostra do que me pode esperar. Estive com uma constipação masculina.* Ou seja, às portas da morte: febre altíssima (chegou aos 38,1º), tosse, prostração, conjuntivite e herpes labial. As sete (cinco) pragas do Egipto. A médica receitou-me anti-inflamatórios, quando é óbvio que a situação requeria internamento hospitalar. Não consegui ler mais do que uma página do meu livro e (felizmente) assistir a mais do que dez minutos dos filmes de fim-de-semana. Já estou a recuperar e a trabalhar, graças à paciência da J. Podem, no entanto, enviar os típicos bombons da convalescença para a morada habitual.

*Encontrei há uns tempos, no blogue da Cláudia, um vídeo que explica bem o fenómeno. Incompreensivelmente, em tom humorístico.

29 janeiro 2008

Cada vez mais ninguém

Grândola está cheia de buracos, ausências de gente que devia ocupar o devido lugar e não está lá. Na minha imaginação por ali andam, fantasmas. A vila que existe é uma farsa por ser menos eu. A vizinha que morreu há uma semana - eu só lhe dizia bom dia boa tarde - é como se lá estivesse à janela; o vizinho que morreu há meses e não sabia, eu esperava vê-lo e dizer-lhe "olá como vai!", sem ele me reconhecer por não me imaginar com mais 15 anos; e o pai do meu amigo "que já lá está", afinal esquecera-me disso, por ser mais evidente que estivesse vivo. São assim as coisas. Olho para os velhos e penso que já têm mais mortos na vida que vivos. Têm os lugares cheios de ninguém. E depois a memória tudo afasta e vidas inteiras se resumem a uma frase. Macondo também desapareceu do mapa, levando para o esquecimento as suas ruas com nomes de generais.

21 janeiro 2008

Quando éramos pequenos, o meu pai passava a noite toda a fumar, entre o telejornal e a novela brasileira. Os rolos de fumo iam-se espalhando da sala para o resto da casa, como uma ondulação. Durante a noite filtrávamos o ar com os pulmões. Lembro-me também das visitas ao pediatra. Quando entrava, acompanhado pela minha mãe, o consultório estava envolto em fumo e o médico dava a consulta de cigarro da boca. «O que é que tem o miúdo?» «São os pulmões, sr. doutor. Está com uma tosse de cão.» Fumava-se sem culpa. Até os Radio Macau faziam boas letras sobre fumadores (Vai-se o tempo desfiando em anéis de fumo baço.) Ah, os bons velhos tempos. Sempre que me dá a nostalgia, dá-me também vontade de acender um cigarro, inclinar a cabeça para trás e libertar o fumo devagar. Um cigarro imaginário, para um fumador imaginário.

O juramento do court de ténis

These wonderful things / Were planted on the surface of a round mind that was to become our present time. [John Ashbery, A Last World]

Um dia, perto de Versalhes, durante os Estados-Gerais de 1789, quando os representantes do Terceiro Estado chegaram à porta da sala onde se costumavam reunir, encontraram-na fechada e guardada por soldados. Decidiram reunir-se num pequeno pavilhão onde se jogava um jogo semelhante ao ténis actual e proclamar que a assembleia existia onde quer que os seus membros se encontrassem reunidos. Foi pintado, pelo menos, um quadro sobre o tema e, muitos anos mais tarde, até foi escrito um livro de poesia com o título The Tennis Court Oath, por John Ashbery. A ideia principal do juramento é a de que as pessoas são mais importante do que os lugares. Como a maioria das pessoas, já mudei de casa, de cidade e de local de trabalho. É preciso habituarmo-nos a procurar o interruptor da luz num sítio diferente, a subir e a descer outras escadas. As pessoas, vou-as sempre encontrando, por vezes nos sítios mais improváveis. Apesar de já ter abandonado a rua da minha infância há alguns anos, por exemplo, continuo a estar de vez em quando com alguns dos meus amigos dessa altura e a saber por eles notícias dos restantes. Os da faculdade, encontro-os um pouco por todo o lado. Já não estão nos corredores do palácio ou em volta da mesa de matraquilhos. Alguns até já usam gravata. Juro, existimos onde nos encontrarmos.

16 janeiro 2008

Em Persona, de Bergman, há uma actriz que deixa subitamente de falar. Há uma enfermeira que, para preencher o vazio, fala a noite toda sobre si própria. Estão as duas sozinhas numa casa de verão. O silêncio de Elisabet é uma recusa em continuar a representar o papel que criou para si própria, com uma carreira, um marido e um filho. Alma começa então a representar pelas duas, a falar e a agir pelas duas. Descreve os pormenores de uma orgia numa praia nórdica. Conta como começou a fumar. Reconforta o marido cego de Elisabet. No fundo, o filme é sobre o facto de todos usarmos múltiplas máscaras, de o silêncio ser apenas mais uma e de nenhuma delas ser verdadeira.
{Para a L., que aprendeu a andar e gosta de ovelhas (embora não tão melancólicas).}

Sheep in Fog

The hills step off into whiteness.
People or stars
Regard me sadly, I disappoint them.

The train leaves a line of breath.
O slow
Horse the colour of rust,

Hooves, dolorous bells ----
All morning the
Morning has been blackening,

A flower left out.
My bones hold a stillness, the far
Fields melt my heart.

They threaten
To let me through to a heaven
Starless and fatherless, a dark water.

[Sylvia Plath]

02 janeiro 2008

Por estranhas ligações, há músicas que associamos a momentos ou pessoas. A música do nascimento da L. é o Dead Beat Club dos B52’s. Devo tê-la ouvido pouco tempo antes e transformou-se na banda sonora original. Lembro-me de ter descido a pé do Hospital São Francisco Xavier até Belém, numa dessas noites de Outubro, já perto da meia-noite, com a música na cabeça. Podia ter apanhado um táxi ou esperado pelo autocarro, mas estava demasiado excitado e a precisar de caminhar em passo acelerado para libertar a tensão. Tenho-a usado desde essa altura como música de embalar. Uma das muitas. Como não gosto particularmente de canções infantis, uso uma versão mais lenta de outro tipo de música. Para além de B52’s, é natural que quem entre no quarto da L. ao início da noite me oiça a cantar, para além de B52’s, The Smiths, Cure, Nick Cave ou mesmo Joy Division. A minha voz é horrível. Desconfio que a L. não adormece, finge apenas para eu me calar. Na noite de fim de ano, achei que o Dead Beat Club era a música apropriada para a adormecer. Foi o ano mais longo das nossas vidas. Cansada, adormeceu num fechar de olhos. Eu voltei para a festa, com um chapéu de aviador na cabeça, um cachecol vermelho em volta do pescoço e a satisfação de mais uma missão cumprida.

27 dezembro 2007

Nunca consegui perceber as ideias de Espinoza. É difícil ler mais de duas páginas de axiomas, proposições e postulados da Ética sem que a concentração se comece a dispersar para os desenhos do tapete, as rachas da parede ou os padrões da madeira do soalho (nalgumas tábuas, os nódulos e veios formam figuras mais ou menos humanas). A maioria das enciclopédias refere que tentou aproximar a filosofia moral da geometria. Talvez seja verdade, mas apenas para encobrir um profundo erotismo. Agora que fiz mais uma tentativa, numa leitura aleatória, descobri páginas e páginas que falam sobre corpos, o efeito de uns corpos sobre outros corpos. Continuo sem perceber, mas a gostar muito mais.

When the fluid part of the human body is determined by an external body to impinge often on another soft part, it changes the surface of the latter, and, as it were, leaves the impression thereupon of the external body which impels it. [Ética, Parte 2, Postulado 5]

25 dezembro 2007

Desejo ao funcionário da EMEL que me multou no dia 24 de Dezembro um feliz Natal e um próspero Ano Novo.

18 dezembro 2007

17 dezembro 2007

O Pai Natal não existe

O M. vê o Pai Natal importado da China pendurado em varandas e janelas e pensa, quando chegará aqui? E pergunta: "Quando é o Pai Natá chega à janeia do quato do M.?" A cabecinha do M. está cheia de pais natais e outras coisas de uma inocência irrecuperável. Se à janela dele chegar alguém, ele terá a esperança de que é o Pai Natal com as prendas. Se à minha janela chegar alguém, leva uma marretada, que não é decente andar a subir aos prédios a espreitar para a intimidade dos outros. Adorava saber o que vai dentro da cabeça de uma criança de dois anos. Já não somos puros há tanto tempo...

19 novembro 2007

Telecomando e controlo

À noite, antes de me deitar, alinho os quatro telecomandos em cima de um dos aparelhos que respondem com obediência ao meu polegar. O controlo que sobre eles exerci durante o dia satisfaz-me. Perder o controlo não é o mesmo que perder o telecomando. Sem telecomando, tenho de me levantar do sofá, mas levantar-me do sofá aborrece-me. Então tenho de escolher o telecomando certo para a máquina certa, o que também não é fácil, e então tenho de me levantar à mesma para ter todos os telecomandos à mão.

Gostei de Control o filme sobre Ian Curtis, vocalista dos Joy Division, ao contrário dos meus amigos. Não era a história de um poeta obscuro e genial, urbano-depressivo e romântico, que com a música dos Joy nos dava as paisagens negras que nos faziam levitar a adolescência (e ainda nos fazem levitar hoje), nem a história de uma banda histórica. Era a história de um rapazinho com menos de 23 anos, que cometeu vários erros, como tantos rapazes de 23 anos, porém um deles fatal.

PS: por causa de um post abaixo assinado, para esclarecer algumas dúvidas - não fui operado agora, fui há cinco anos, e isso dá-me recuo para ter vontade de escrever sobre a coisa neste momento.

16 novembro 2007

Joy pills

Parece que os comprimidos que Ian Curtis tomava para não ter ataques epilépticos em palco lhe causavam depressões terríveis, diz Anton Corbijn, realizador de Control, ao Público. Tirando o facto de, talvez, também o terem levado ao suicídio - e sem suicídio não haveria mito -, benditos comprimidos que nos ajudaram a deprimir também a nós.

13 novembro 2007

Grandes remédios

Quando entrei grogue na sala de operações branca ainda disse Já saltei de páraquedas. No fim depois de me coser empurrando a minha maca um homem de bata ouviu-me perguntar Então sou bonito por dentro? No recobro sozinho quando só máquinas e bips no escuro e uma braçadeira a inchar-se de tempos a tempos no antebraço para apurar números e o peito cheio de tubos com coisas a escorrerem de mim ao perceber que ali a C. pensei Estou vivo.