29 abril 2008

I was looking for a job, and then I found a job
And heaven knows I'm miserable now
The Smiths

Começou a classificar os amigos e conhecidos em duas categorias opostas:

a) Os que queriam que ele se empregasse;
b) Os que lhe achavam graça mesmo assim.

É preciso dizer-se que nos achávamos numa sociedade de
gente empregada ou por conta doutrem, ou escrava de si própria, ou trabalhando para o Estado.
À classe a) pertencia gente honrada e digna mas, caso notável, ao falarem-lhe das vantagens de um emprego esqueciam-se com certeza que um quarto de hora antes se tinham estado a lastimar do
seu emprego – dos compromissos, engrenagens, desvirtualidades, perdas de tempo e de inteligência, baixezas e asneiras a que esse emprego os conduzia, sem remédio. Sem remédio? Este estava à vista: era desempregarem-se, libertarem-se (do emprego) usando truques engenhosos e arriscando-se no futuro. [Luiz Pacheco, O Homem que Calculava]

28 abril 2008

Um sol abrasador. Encontrámos a sombra de um pinheiro, mais um banco de jardim, junto às muralhas de Elvas. A L. dormia. Sugeri que repartíssemos a revista Ler, para passarmos o tempo. O acto de rasgar um livro ou uma revista é contrário à natureza da J., tão grave como pintar uns bigodes à Mona Lisa. Pouco convencida com a minha argumentação utilitarista, exigiu que, pelo menos, a dividíssemos exactamente a meio, para expiar a culpa de um acto selvagem com alguma lógica matemática. Quarenta e oito páginas para cada um. Tive azar, calhou-me a metade com a entrevista a Lobo Antunes. O acto fez-me recordar-lhe o (meu) velho projecto de lermos um livro ao mesmo tempo. Um começaria primeiro e, à medida que fosse avançando, ia rasgando as páginas e dando-as ao outro. Um gesto prolongado de intimidade.

13 abril 2008

Até há pouco tempo raramente tinha manhãs de domingo. Lembro-me de insultar baixinho a minha irmã mais nova que acordava cedo ao fim-de-semana e queria ver os desenhos animados. Na adolescência, aos sábados à noite seguia-se o domingo à tarde. Era capaz de dormir doze horas seguidas sem qualquer remorso. Agora que as recuperei, consigo perceber que são algumas das melhores horas da semana. Ao sábado, há o comércio, pessoas a carregarem sacos de compras pela rua e a lerem os semanários nas esplanadas. Aos domingos é possível subir e descer colinas, a perseguir as linhas dos eléctricos, sem ver muito mais do que alguns homens e mulheres a caminho da missa. Hoje, fui para a Madredeus. Descobri um nome de rua que dava um bom título para um romance sul-americano: Travessa do Recolhimento de Lázaro Leitão. Ainda assim, que fique claro, preferia ficar a dormir.

12 abril 2008

Boletim polínico

Lembro-me de ter lido alguém que defendia que o que define o Mediterrâneo são as oliveiras. Foi por isso com alguma estranheza que percebi, ao analisar o relatório de alergologia, que tenho uma alergia de grau 4 à Olea Europaea. Do ponto de vista da adaptação ao meio, o meu ramo genético já se devia ter extinguido há muito ou emigrado. Mas não. O meu pai nasceu mesmo numa freguesia com o nome de Oliveira, do distrito de Braga. É muito provável que eu descenda de povos de ciprestes ou de cedros, com implantação recente no território peninsular. Ou então, o meu antepassado era aquele lusitano que investia contra os inimigos de lenço de couro a segurar o pingo no nariz e do qual as crónicas, injustamente, não registaram os feitos.