29 janeiro 2008

Cada vez mais ninguém

Grândola está cheia de buracos, ausências de gente que devia ocupar o devido lugar e não está lá. Na minha imaginação por ali andam, fantasmas. A vila que existe é uma farsa por ser menos eu. A vizinha que morreu há uma semana - eu só lhe dizia bom dia boa tarde - é como se lá estivesse à janela; o vizinho que morreu há meses e não sabia, eu esperava vê-lo e dizer-lhe "olá como vai!", sem ele me reconhecer por não me imaginar com mais 15 anos; e o pai do meu amigo "que já lá está", afinal esquecera-me disso, por ser mais evidente que estivesse vivo. São assim as coisas. Olho para os velhos e penso que já têm mais mortos na vida que vivos. Têm os lugares cheios de ninguém. E depois a memória tudo afasta e vidas inteiras se resumem a uma frase. Macondo também desapareceu do mapa, levando para o esquecimento as suas ruas com nomes de generais.

21 janeiro 2008

Quando éramos pequenos, o meu pai passava a noite toda a fumar, entre o telejornal e a novela brasileira. Os rolos de fumo iam-se espalhando da sala para o resto da casa, como uma ondulação. Durante a noite filtrávamos o ar com os pulmões. Lembro-me também das visitas ao pediatra. Quando entrava, acompanhado pela minha mãe, o consultório estava envolto em fumo e o médico dava a consulta de cigarro da boca. «O que é que tem o miúdo?» «São os pulmões, sr. doutor. Está com uma tosse de cão.» Fumava-se sem culpa. Até os Radio Macau faziam boas letras sobre fumadores (Vai-se o tempo desfiando em anéis de fumo baço.) Ah, os bons velhos tempos. Sempre que me dá a nostalgia, dá-me também vontade de acender um cigarro, inclinar a cabeça para trás e libertar o fumo devagar. Um cigarro imaginário, para um fumador imaginário.

O juramento do court de ténis

These wonderful things / Were planted on the surface of a round mind that was to become our present time. [John Ashbery, A Last World]

Um dia, perto de Versalhes, durante os Estados-Gerais de 1789, quando os representantes do Terceiro Estado chegaram à porta da sala onde se costumavam reunir, encontraram-na fechada e guardada por soldados. Decidiram reunir-se num pequeno pavilhão onde se jogava um jogo semelhante ao ténis actual e proclamar que a assembleia existia onde quer que os seus membros se encontrassem reunidos. Foi pintado, pelo menos, um quadro sobre o tema e, muitos anos mais tarde, até foi escrito um livro de poesia com o título The Tennis Court Oath, por John Ashbery. A ideia principal do juramento é a de que as pessoas são mais importante do que os lugares. Como a maioria das pessoas, já mudei de casa, de cidade e de local de trabalho. É preciso habituarmo-nos a procurar o interruptor da luz num sítio diferente, a subir e a descer outras escadas. As pessoas, vou-as sempre encontrando, por vezes nos sítios mais improváveis. Apesar de já ter abandonado a rua da minha infância há alguns anos, por exemplo, continuo a estar de vez em quando com alguns dos meus amigos dessa altura e a saber por eles notícias dos restantes. Os da faculdade, encontro-os um pouco por todo o lado. Já não estão nos corredores do palácio ou em volta da mesa de matraquilhos. Alguns até já usam gravata. Juro, existimos onde nos encontrarmos.

16 janeiro 2008

Em Persona, de Bergman, há uma actriz que deixa subitamente de falar. Há uma enfermeira que, para preencher o vazio, fala a noite toda sobre si própria. Estão as duas sozinhas numa casa de verão. O silêncio de Elisabet é uma recusa em continuar a representar o papel que criou para si própria, com uma carreira, um marido e um filho. Alma começa então a representar pelas duas, a falar e a agir pelas duas. Descreve os pormenores de uma orgia numa praia nórdica. Conta como começou a fumar. Reconforta o marido cego de Elisabet. No fundo, o filme é sobre o facto de todos usarmos múltiplas máscaras, de o silêncio ser apenas mais uma e de nenhuma delas ser verdadeira.
{Para a L., que aprendeu a andar e gosta de ovelhas (embora não tão melancólicas).}

Sheep in Fog

The hills step off into whiteness.
People or stars
Regard me sadly, I disappoint them.

The train leaves a line of breath.
O slow
Horse the colour of rust,

Hooves, dolorous bells ----
All morning the
Morning has been blackening,

A flower left out.
My bones hold a stillness, the far
Fields melt my heart.

They threaten
To let me through to a heaven
Starless and fatherless, a dark water.

[Sylvia Plath]

02 janeiro 2008

Por estranhas ligações, há músicas que associamos a momentos ou pessoas. A música do nascimento da L. é o Dead Beat Club dos B52’s. Devo tê-la ouvido pouco tempo antes e transformou-se na banda sonora original. Lembro-me de ter descido a pé do Hospital São Francisco Xavier até Belém, numa dessas noites de Outubro, já perto da meia-noite, com a música na cabeça. Podia ter apanhado um táxi ou esperado pelo autocarro, mas estava demasiado excitado e a precisar de caminhar em passo acelerado para libertar a tensão. Tenho-a usado desde essa altura como música de embalar. Uma das muitas. Como não gosto particularmente de canções infantis, uso uma versão mais lenta de outro tipo de música. Para além de B52’s, é natural que quem entre no quarto da L. ao início da noite me oiça a cantar, para além de B52’s, The Smiths, Cure, Nick Cave ou mesmo Joy Division. A minha voz é horrível. Desconfio que a L. não adormece, finge apenas para eu me calar. Na noite de fim de ano, achei que o Dead Beat Club era a música apropriada para a adormecer. Foi o ano mais longo das nossas vidas. Cansada, adormeceu num fechar de olhos. Eu voltei para a festa, com um chapéu de aviador na cabeça, um cachecol vermelho em volta do pescoço e a satisfação de mais uma missão cumprida.