19 novembro 2007

Telecomando e controlo

À noite, antes de me deitar, alinho os quatro telecomandos em cima de um dos aparelhos que respondem com obediência ao meu polegar. O controlo que sobre eles exerci durante o dia satisfaz-me. Perder o controlo não é o mesmo que perder o telecomando. Sem telecomando, tenho de me levantar do sofá, mas levantar-me do sofá aborrece-me. Então tenho de escolher o telecomando certo para a máquina certa, o que também não é fácil, e então tenho de me levantar à mesma para ter todos os telecomandos à mão.

Gostei de Control o filme sobre Ian Curtis, vocalista dos Joy Division, ao contrário dos meus amigos. Não era a história de um poeta obscuro e genial, urbano-depressivo e romântico, que com a música dos Joy nos dava as paisagens negras que nos faziam levitar a adolescência (e ainda nos fazem levitar hoje), nem a história de uma banda histórica. Era a história de um rapazinho com menos de 23 anos, que cometeu vários erros, como tantos rapazes de 23 anos, porém um deles fatal.

PS: por causa de um post abaixo assinado, para esclarecer algumas dúvidas - não fui operado agora, fui há cinco anos, e isso dá-me recuo para ter vontade de escrever sobre a coisa neste momento.

16 novembro 2007

Joy pills

Parece que os comprimidos que Ian Curtis tomava para não ter ataques epilépticos em palco lhe causavam depressões terríveis, diz Anton Corbijn, realizador de Control, ao Público. Tirando o facto de, talvez, também o terem levado ao suicídio - e sem suicídio não haveria mito -, benditos comprimidos que nos ajudaram a deprimir também a nós.

13 novembro 2007

Grandes remédios

Quando entrei grogue na sala de operações branca ainda disse Já saltei de páraquedas. No fim depois de me coser empurrando a minha maca um homem de bata ouviu-me perguntar Então sou bonito por dentro? No recobro sozinho quando só máquinas e bips no escuro e uma braçadeira a inchar-se de tempos a tempos no antebraço para apurar números e o peito cheio de tubos com coisas a escorrerem de mim ao perceber que ali a C. pensei Estou vivo.

10 novembro 2007

O génio que cansa

Como ele diz, mais ninguém escreve assim. É verdade. Comprei O Meu Nome é Legião, o último de António Lobo Antunes, à entrada do metro, a metade do preço, mercado negro. Tão negro como os seus livros, onde cada história é contada através de uma trança de pensamentos de personagens, ou como nós, quando estamos a pensar e vem um pensamento atrás do outro, e depois outro, sem nexo ou com nexo, tanto faz, mas ele escreve-o bem. Tão bem que é brilhante. Tão genial que cansa.

08 novembro 2007

Aviso à população

Desapareceram ontem à noite de sua casa dois adolescentes, aparentando cerca de trinta anos. A última vez que foram vistos, no Coliseu, vestiam ganga e tons de preto. O rapaz tinha uma mão no bolso, a outra com uma garrafa de água e abanava muito ligeiramente a cabeça ao som dos Interpol. Não sofrem de perturbações mentais – pelo menos diagnosticadas – , nem são perigosos. Pede-se a quem tenha tido notícias sobre o seu paradeiro o favor de não o comunicar à filha de ambos, para evitar chantagens na futura adolescência.

Novembro no andar de baixo

Chove na casa de banho da minha vizinha. Se ligo o chuveiro, chove. Então, ligo o chuveiro na mesma, mas tapo o ralo da banheira. Depois tiro a água suja à baldada, mas chove na mesma. Já lhe disse: a casa dela é que está bem. Estamos em Novembro e em Novembro, por costume e hábito de muitos anos, chove.

02 novembro 2007

Como o início de um livro, um fim de tarde

As famílias felizes são todas iguais, vão todas para o Jardim da Estrela, as infelizes vão cada uma para seu lado.
Os quartos de hotel são todos iguais, os quartos de hotel são todos iguais. No interior sentimo-nos como se estivéssemos a fugir de alguma coisa, quando só queremos ser encontrados. Os quartos de hotel são quartos de motel, com um carro estacionado frente à porta, pronto para uma fuga através do deserto. Têm bíblias nas gavetas das mesas de cabeceira, marcadas onde o hóspede anterior as abandonou: Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor, estando numa terra estranha? (Sl 137:4). Têm alcatifa e um espelho ao fundo. No quarto escuro, com a luz intermitente da televisão, vê-se nele (o espelho) o reflexo do fugitivo, em cima da cama, o telecomando na mão. Os quartos de hotel são todos iguais. Mesmo quando não são.
Vistas de cima, num voo nocturno, as cidades parecem campos de um incêndio extinto, antes do rescaldo. A iluminação pública alaranjada concentra-se em brasa ou espalha-se em linhas de fractura, mais ou menos geométricas, conforme os bairros a que servem de limite. E depois, pelo meio, os vazios escuros e imensos onde intuímos massas de água, como o Tejo. Endireitar a cadeira, recolher o tabuleiro, apertar o cinto, regressar a casa.