31 agosto 2005

A política e as sombras

Manuel Alegre abandonou o quadrado. O homem que não se rende, rendeu-se. Bravata, bravata. D. Quixote foi traído.

Segundo a Lusa, afirmou ter recebido "palavras de estímulo" de José Sócrates para se candidatar à Presidência da República, mas ressalvou: "É melhor não contar o resto". Mesmo assim, contou um bocadinho: "Como ninguém avançava para enfrentar Cavaco Silva, o secretário-geral do partido pediu-me para reflectir, e quando fiz essa reflexão apareceu outra solução". Não é bonito, não. Basta! basta!, já ninguém acredita nesses bastas nem nos vou lá eu!, vou lá eu! Não resta grande coisa em que acreditar.

A política é cada vez mais um jogo de sombras, onde ao movimento de um corpo corresponde na sombra a sensação do movimento contrário.

30 agosto 2005

O fósforo da Europa

O artigo da página 26 da Economist desta semana começa assim:

"To your right, you can see Portugal burning." On a flight leaving Lisbon this week, passengers heard that gloomy advice as they gazed down at the smoke bilowing up from the pines and eucaliptus trees".

Isto visto pelos olhos dos outros ainda soa pior.

29 agosto 2005

Mentiras

A historiadora Maria de Fátima Bonifácio disse numa entrevista à "Pública" de domingo que o sistema político está baseado numa mentira desde que Durão Barroso prometeu o choque fiscal e depois aumentou o IVA. Sócrates faz parte do retrato. "De que serve ter uma maioria absoluta, como Sócrates tem, quando ela foi conquistada através de uma mentira qualificada?". Outra vez a promessa de não aumentar os impostos e a acção em sentido contrário. O problema é mais grave do que uma promessa não cumprida. A questão é das promessas que são cumpridas ao contrário. Prometo descer e depois aumento. Prometo não aumentar e depois a primeira coisa que faço é o inverso.

Desta vez, Fátima Bonifácio tem razão. O sistema está minado. Os votantes não têm razões para acreditar no seu próprio voto. O futuro é uma lotaria. A campanha eleitoral é uma farsa. Está caducado o contrato entre eleitos e eleitores. A situação do país não me impressiona: um político honesto, que prometeu não aumentar os impostos, devia arranjar outros recursos para não comprometer o compromisso eleitoral. E logo os impostos, um dos aspectos mais centrais à relação entre os cidadãos e o Estado.

"[A moral] em política é fundamental. As pessoas podem ser ignorantes mas não são estúpidas", diz Fátima Bonifácio. O actual regime está ou não esgotado?

24 agosto 2005

Dia do padroeiro


Hoje, 24 de Agosto, é o dia do nosso padroeiro aqui no blogue, o que devia ser evidente, tendo em conta a frase que escolhemos como citação inaugural. O próprio nome, Através dos Espelhos, é muito inspirado nas leituras de Jorge Luís Borges (não é Tiago?), que faria hoje 106 anos a contar-nos coisas extraordinárias.

Para comemorar o dia, mesmo com uma enxaqueca terrível, arrastei-me até à estante, escolhi um volume das Obras Completas, da Teorema, ao acaso (saiu-me o segundo), e abri uma página do livro ao acaso (foi a 249): Estavam lá três versos propositados e adequados à efeméride.

Onde está a memória dos dias
que foram teus na terra e que teceram
fortuna e dor e foram para ti o universo?

21 agosto 2005

Madrugadas à minha porta


Um tipo preto de cabelo assim meio à rasta perguntou-nos que horas eram. Eu disse: "Seis e um quarto". O polícia à paisana, ao meu lado, respondeu-lhe mais alto: "É meidia". Ainda não tinha nascido o sol.
- Foi este homem que você viu, está a reconhecê-lo? - interrogou-me o agente.
Uns três ou quatro polícias dominavam o ladrão, um branco cheio de agilidade, que tinha acabado de assaltar o externato do meu prédio, fugindo com um salto directo do primeiro andar para o chão. Chorava baba e ranho e, ao que parece, tinha a mochila cheia de máquinas de calcular. Afinal, um pobre diabo de quem não vale a pena ter pena. Todas as noites deve fazer o seu servicinho. Fui eu que chamei a polícia, depois de ouvir o barulho dos vidros partidos. Foram rápidos a chegar e eficientes a actuar. Não fosse...
- É esse mesmo. Com a t-shirt branca, o boné e a mochila cinzenta - disse eu, apontando o gatuno.
No meio da confusão, o negro das horas não desarmou e voltou à carga, direito ao polícia - os vapores e madrugadas do Cais do Sodré são maus conselheiros. "Eu só queria saber as horas, meu, por que é que tás a dizer que é meidia?"
Levou um estalo. Dois estalos, três estalos. Ou mais. Com força.
- Já vi a matrícula do carro, o meu pai é advogado, moçambicano! - berrou, atordoado.
- E o meu filho é juiz! - respondeu o agente.
Não cheguei a perceber se o mano estava a ver que os paisanos eram da polícia. Voltei para casa. Ainda dormi, apesar de tudo. E ainda estou a pensar o que levou o chui a esbofetear um desgraçado cujo único crime foi embebedar-se, perguntar as horas e tornar-se num chato.

20 agosto 2005

Lembro-me vagamente de estar com a minha prima Guida a arrrancar pernas a carochas no quintal da minha avó Mariana; lembro-me vagamente de aprender a andar e bicicleta na casa da minha avó Maria; lembro-me vagamente de ter morado em Ferreira do Alentejo e um dia ia sendo atropelado à porta de casa; lembro-me vagamente do meu primeiro dia de aulas da primeira classe, eu, o Gerardo, o Alberto e o João Gabriel, todos sentados na mesma carteira, das antigas, inclinadas, com lugar para tinteiro, enquanto a D. Lucinda Neves e a D. Maria Augusta, as professores, dividiam a aula... lembro-me de muitas coisas desgarradas, vagamente...

De que é feita a nossa memória? Recordamo-nos mal de coisas que adoraríamos lembrar, e fazemos um esforço danado para esquecermos outras memórias que não deixam de nos assombrar.

Acabei de ver o filme O Despertar da Mente em DVD, com Jim Carrey e Kate Winslet, lamentavelmente perdido no cinema. Quem o viu, sabe do que estou a falar. Decididamente, um dos filmes da minha vida. Pelo menos hoje é.

18 agosto 2005

O acto poético

É bonito ver quem hoje ainda olhe para estas coisas da política com romantismo. O proto-candidato presidencial Manuel Alegre lança espinhos em redor, qual D. Quixote de rosa em punho a caminho de Belém. Sem o sentido da amizade, diz ele, pensando em Soares, "corre-se o risco de se perder a alma ou o próprio sentido da política".

A ideia de se ter alma ou de se ser um desalmado é interessante na boca de um socialista que fala de um suposto amigo.

Proclama ainda Alegre, pensando em Soares mas também em Cavaco, que "não há salvadores da pátria nem homens providenciais". Pois não. Por acaso já tínhamos reparado: ninguém tem salvo a pátria nos últimos tempos, antes pelo contrário; e todos os homens que Providência nos legou se revelaram um desastre.

Afinal quem é Alegre? Nem salvador nem enviado pela Providência, é o poeta irredutível no seu quadrado que traz a alma à política. É bonito, mas não se percebe muito bem para que serve.

14 agosto 2005

Um mês

Nos últimos dias o Miguel tem-se esticado muito, já lhe falta o espaço. Mexe-se, soluça, espeta os pés no diafragma da Carla. Às vezes sossega quando pomos os auscultadores na barriga e um disco de Vivaldi no leitor. Outras vezes mexe-se ao som da música, mas com mais suavidade. Imagino como será ouvir uma sinfonia dentro de uma piscina aquecida. Falta um mês.

12 agosto 2005

OTArios (adenda)

Afinal, há artigos de opinião de ministros que revelam mais sobre os seus autores do que sobre as políticas do Governo. A argumentação baixa de Mário Lino ontem, no Diário Económico, e a tentativa de iludir - com omissões - aqueles que mais não fazem do que pedir responsabilidades ao Governo, mostra a qualidade da gente que nos governa. (ler o editorial de José Manuel Fernandes, no Público - sem link)

Decoro

Obrigatório apreciar a fina ironia do artigo de Sérgio Figueiredo, no Jornal de Negócios de hoje, sobre o "Haja de Decoro!" com que Mário Lino, ministro das Obras Públicas, pontuou o seu texto de opinião que ontem foi manchete no Diário Económico. (ainda não há link)

OTArios

Ser contra ou a favor da Ota ou do TGV pode revelar o partidarismo de alguém, mas pouco ou nada diz do que pensa politicamente. Podem discutir-se os pressupostos da decisão do Governo: se está bem fundamentada, quais serão as consequências para os cidadãos, para as contas públicas, etc. Se a política se resume a discutir sim ou não à Ota, então mais vale contratar uma consultora internacional e pôr os seus diligentes colaboradores em S. Bento, a tomarem decisões racionais, fazendo tempos de antena explicativos na TV em Power Point. Aos políticos exige-se mais do que esse positivismo: que tenham por detrás um conjunto de valores perceptíveis que justifiquem ser contra ou a favor das Otas e dos TGV. Mas isso não se vê nem no PS nem no PSD: desde os ministros que escrevem artigos a explicar essas opções e que nem nesses artigos as conseguem justificar, aos detractores que se ficam pela argumentação instrumental, tudo não passa de mero tacticismo.

11 agosto 2005

Entrevista com o Diabo

Quando entrei no elevador o Diabo já lá estava. Fingi que não dei por ele, apesar dos cornos vermelhos, do tridente, da cara toda encarnada, queimada das temperaturas infernais, e pior: tinha um ar normal o que, como todos sabemos, é o maior truque usado para nos enganar. O Demónio parecia fazer de conta que era um dos executivos do outro andar. Mas não: eu ia carregar no botão do sexto andar, mas a luz já estava acesa. Hesitei. Nunca tinha encontrado um anjo. E ia partilhar um metro quadrado com o Diabo. Serei eu Fausto, pensei? Vai querer comprar-me a alma, mas desta vez o jackpot do Euromilhões é só de 25 milhões, e isso não compensa. Vai simular uma queda do elevador - como aliás costuma acontecer a péssimos ascensores que passam a vida a cair para o piso menos cinco - e entretanto corromper-me para o resto da vida? Não. Ele há Diabos bons, ou tão só pobres Diabos. Saiu antes de mim. Dei-lhe passagem, sou um cavalheiro. E perguntou ao pessoal que estava na máquina do café: "O Miguel está? Tenho isto para lhe entregar." E estendeu a mão com o novo detergente de sanita da Sonasol, "para acabar com o cheiro infernal". O pessoal riu. "E você tem de se vestir assim só para entregar isto?" Ele há gente que para ganhar a vida já faz o que for preciso.

10 agosto 2005

Lisboa entre as 7 e as 8

Ao amanhecer no Miradouro de S. Pedro de Alcântara viam-se as colinas da cidade morraçadas de humidade e de luz. Lisboa é transparente ao sol e opaca à sombra.

No Príncipe Real, já para os lados de S. Bento, há uma ervanária que dá pelo nome de Sô Zé, que tem uns azulejos com o número 666 por cima da porta. Ora Sô Zé, ao que sabemos, é o nome de um bruxo que já foi José Esteves, antigo bombista nos anos quentes e que guarda um segredo sobre Camarate....

Na Rua António Maria Cardoso, um vagabundo dava pontapés nas coisas e gritava makeké!, makeké!, pensam que isto é tudo deles!.

Um pouco mais abaixo, as obras na antiga sede da PIDE estão avançadas na direcção de um empreendimento de luxo. Uma parte do terceiro andar onde ficavam os presos políticos já foi abaixo. Um país sem memória não é uma nação. Makeké!

09 agosto 2005

Contradição maciça

Yellowcake não é uma sobremesa de limão. Ontem os iranianos, à vista de toda a gente, deitaram um barril de pó de urânio nos centrifugadores da fábrica de Ispahan, para produzirem urânio enriquecido, o que possivelmente um dia lhes permitirá ter "a bomba". A administração dos EUA, ao que parece, concorda com um recurso para as Nações Unidas. Os falcões que tiveram de inventar provas para invadir o Iraque estão subitamente umas pombinhas brancas de raminho de oliveira no bico. É bonito...

05 agosto 2005

Contributo para uma referência a PSL

Ele disse ao Expresso ser o político português com mais hits no Goolgle. Todos os dias, pela manhã, Pedro Santana Lopes faz esta pergunta ao seu computador:

"Google meu, google meu, existe algum político português com mais referências na Internet do que eu?"

"Não, mas cuidado, meu lindo, porque as referências são muitas mas nem todas são boas, nem nos blogues de direita... Agora há outro primeiro-ministro, jovem, belo e grisalho, chamam-lhe cabeça branca de neve, e só ele poderá destronar-te, tal é o caminho que as coisas levam", responder-lhe-ia o computador...

Ar condicionado

Como a ventoinha perde utilidade a mais de 35º, fomos à procura de uma sala com ar condicionado para passarmos algumas horas da noite mais quente do ano. Encontrámos uma que estava a passar o Faces de John Cassavetes. Já se devem ter escrito muitas crónicas sobre o filme, por isso escrevo apenas sobre o que me pareceu mais surpreendente: as mudanças inesperadas de humor em pessoas que tentam voltar a ser felizes nas suas vidas convencionais e condicionadas. Estamos de volta à ventoinha.

03 agosto 2005

Vi, perto do Calvário, dois rapazes a comentarem em língua gestual o corpo de duas raparigas bronzeadas, de regresso da praia. Não sei se eram mudos ou se ficaram simplesmente sem palavras.