31 outubro 2004

A propósito de roedores

Num tempo de metáforas os escritores têm de ter muito cuidado com as palavras. Na montra de uma loja de Campo de Ourique está exposto o livro infantil «A Ratinha Vaidosa» (Rua Tomás da Anunciação, perto do Jardim da Parada). O esforço de suavização do diminutivo é logo frustrado pela escolha do adjectivo. Não o comprei, por isso não sei se será uma tentativa de actualização de um conto clássico de uma perspectiva mais feminina (estilo «A Ratinha do Campo e a Ratinha da Cidade»). Ficou-me apenas a sugestão de uma história com piercings e shavings totais.

30 outubro 2004

O pára-ratos

O velhote da loja de sementes hortícolas do Cais do Sodré pôs a ratoeira metálica em cima da mesa. "Isto tem uma força parva, quer ver?", explicou-me, enquanto armava a armadilha. Depois tocou-lhe com uma caneta e, numa fracção se segundo, a Bic azul ficou desfeita em mil pedaços espalhados pelo estabelecimento. "Até corta ratazanas ao meio", disse, e fez um gesto com a mão. Pensei no rato decepado em duas partes, a sangrar no meu quarto de vestir, e não gostei. "Mas tem aqui este produto, talvez seja melhor". E trouxe uma caixinha amarela com este dizer: "Pára-ratos". Um pântano movível, uma cola que se espalha numa folhiha de papel em volta de um isco de queijo, onde eles ficam presos: eh-eh, apanhá-lo vivo...

(Ladies and gentlemen, we got him! Ainda não tinha acabado de postar este post, e aparece a Carla aos gritos: "O bicho está ali preso a mexer-se!" Sim, o nosso prisioneiro, vivinho da Silva, imediatamente sepultado no lixo em lenta agonia, prensado entre duas folhas de papel cheias de cola e cinco pedaços de queijo. Paz à sua alma.)

Guerra doméstica assimétrica

Caganitas no ombro esquerdo do meu fato claro de linho, o meu preferido, e que me dá assim um ar de gangster cubano dos anos 30. Agora sim, estou irritado. E ainda teve o desplante, o despudor, de assustar a empregada ao passear-se pendurado nas minhas camisas dentro do armário. Ainda por cima, este rato é acrobata. Volta e meia entro no quarto de vestir empunhando a minha esfregona mortal, mas não tenho tido sorte. O gajo é esperto. Já me fareja à distância. Deve ter percebido que lhe matei o amigo esmagado à esfregonada.

Ontem fomos às grandes superfícies à procura de armamento letal, mas sem sucesso. Só havia armas químicas, de destruição maciça, ou seja, todo o tipo de venenos imagináveis, mas nós queremos armas de alta precisão. Por isso agora vou sair para comprar nem que seja uma daquelas velhas ratoeiras. Tinha mais esperança na tecnologia: um amigo falou-nos nuns aparelhos que emitem ultra-sons, que afugentam os ratos, mas os nossos não têm para onde fugir; era vê-los às cabeçadas contra as paredes. Não, prefiro uma coisa artesanal, antiga e eficaz. Uma velha ratoeira com queijo da serra, ou irresistíveis queijos "cholé" de Niza ou Castelo Branco. Isso é que vai ser. Se não resultar, duvido que a Carla aceite o emprego da arma biológica anti-rato mais letal do mundo: o gato. Estou a desesperar nesta guerra assimétrica.

29 outubro 2004

"Tons alaranjados invaem o céu...

... num eclipse lunar"
É este o título de uma foto-legenda do Diário de Notícias de hoje. Segue o texto:

"A lua desapareceu por completo na madrugada de quinta-feira. A noite tornou-se escura e envolveu a Europa, a África e a América, num eclipse total. O círculo lunar criou um verdadeiro espectáculo cor-de-laranja. Os portugueses que perderam este fenómeno, devido à nebulosidade só terão oportunidade de o voltar a observar em 2007".

Ora, em Portugal, podemos assistir todos os dias a um espectáculo laranja, da laranja ou do circo montado no laranjal. Devido à nebulosidade, porque as nuvens que pairam são negras e a opacidade é muita, os portugueses vão perdendo a oportunidade de ver alguns fenómenos destes, mas muitos laranjas fazem questão de furar o nevoeiro para se eclipsarem a si mesmos em público. Depois isso dá-nos sempre para a galhofa, naquela fase que antecede a outra, em que começamos a chorar. E quanto ao fenómeno de 2007, talvez o espectáculo aí seja cor-de-rosa sem que a neblina se tenha dissipado.

Mas há muito séculos, neste País, enquanto há nevoeiro há esperança...

28 outubro 2004

Sem comentários

It was dark now, and as we dipper under a little bridge I put my arm around Jordan's golden shoulder and drew her toward me and asked her to dinner. Suddenly I wasn´t thinking of Daisy and Gatsby any more, but of this clean, hard, limited person, who dealt in universal scepticism, and who leaned back jauntily just within the circle of my arm. A phrase began to beat in my ears with a sort of heady excitement: 'There are only the pursued, the pursuing, the busy, and the tired.' (F. Scott Fitzgerald, The Great Gatsby)
Já temos mentiras e vídeo. Falta o resto, falta o resto...

27 outubro 2004

As desvantagens do contraditório

A sua gestão do silêncio foi exímia. Agora Marcelo falou. E fez uso do contraditório na AACS. Chamou mentiroso a Pais do Amaral. Acusou-o de o ter pressionado. Disse que o presidente da TVI lhe confessara estar disposto a abdicar da liberdade informativa da televisão, porque uma TV não pode andar sempre a dizer mal do Governo. A democracia está doente. Mas também nunca teve grande saúde. A coisa está feia, mas agora é que vai ser bonito.

O Espelho do ano vai para...

Champanhe, recarrecas e confettis! A Rua da Judiaria faz hoje um ano. É um dos melhores blogues escritos em português, embora seja produzido na Califórnia. Parabéns, Nuno, pelo teu trabalho (porque o que produzes dá trabalho), e por teres criado mais do que um simples blogue, uma publicação digital de referência.

Aliás, é obrigatório ler um dos últimos posts do Nuno Guerreiro, que é judeu, sobre a tão propalada cabala, as origens da palavra e os significados que ganhou ao longo dos tempos. "A palavra cabala é um dos vocábulos da língua portuguesa onde a linguística e a filologia se intersectam com o fanatismo histórico e a intolerância. E com o antisemitismo institucional que durante séculos vigorou em Portugal graças à Inquisição".

26 outubro 2004

A prova que faltava...

A Alta Autoridade para a Comunicação Social que se prepare para agir de novo antes de ser definitivamente extinta. Este título de um texto da Agência Lusa prova como o Governo controla com rédea curta os media do Estado: "Astronomia: Eclipse da Lua na quinta-feira, um espectáculo cor-de-laranja".
Convoque-se a lua, o sol, o astrónomo e Luís Delgado para depôr.
No espaço político o que interessa são as ideias e não a origem das ideias. É irrelevante se se fundam na religião, na ideologia ou na razão pura. O problema com a nomeação de Rocco Buttiglione para comissário da Justiça, Liberdade e Segurança não é a base católica das suas ideias acerca da homossexualidade e do papel da mulher na sociedade, mas as ideias em si mesmas. Se fosse proposto para comissário da agricultura, nenhum eurodeputado se lembraria de lhe perguntar as suas opiniões sobre esses assuntos. Mas, nessa pasta, espera-se que promova medidas relacionadas, por exemplo, com a igualdade de oportunidades entre os sexos no acesso ao emprego e a não discriminação com base na orientação sexual. Buttiglione está provavelmente a ser sincero quando afirma aceitar a distinção entre as leis da religião e as leis dos estados, que não é favorável à criminalização do pecado. Mas não será provavelmente também o promotor mais enérgico daquelas medidas. Não é obrigatório que os grupos políticos do Parlamento Europeu rejeitem o nome do comissário; não me parece que haja motivo para indignação e acusações de perseguição que coloquem a hipótese de o fazer. As ideias não podem ser rejeitadas por terem uma base religiosa; não podem ser aceites simplesmente por a terem.

Qual esquerda, que direita?

Voltemos de novo aos usos da dicotomia esquerda/direita. O uso que identifiquei como filosófico é mais propriamente assente num modo antropológico diferente de distinguir duas visões do homem: uma, a da bondade original, pervertida pela sociedade, ou seja, um optimismo antropológico; outra, a ideia de que a natureza selvagem do homem implica instituições assentes na ordem e na autoridade que o moderem nos seus instintos primários como condição para haver sociedade, ou seja, um pessimismo antropológico.
Pacheco Pereira, Público, 21/10/2004

Apesar de esta ser uma das distinções mais básicas entre esquerda e direita, a dicotomia tendo como ponto de partida o pessimismo/optimismo antropológico faz-me sempre sentir uma contradição. Sou assumidamente um pessimista antropológico, não penso que o homem seja naturalmente bom, antes pelo contrário, acho que transporta naturalmente os males que vemos todos os dias, e considero-me, ao mesmo tempo, de esquerda. Devo consultar um psicólogo? Talvez um politólogo? Não. O mundo é cada vez mais complexo, e as escolhas menos baseadas neste radicalismo (no sentido de raiz). Se a História ainda não acabou, pelo menos as fronteiras estão muito esbatidas para o Último Homem.

25 outubro 2004

E já não só parece: é mesmo!

"Recusei o convite, até por não acreditar que a Lusomundo Media e a Global Notícias estivessem dispostas a reunir as condições necessárias para voltar a fazer do Diário de Notícias um diário de referência, isenção e aceitação pública", disse hoje Clara Ferreira Alves em comunicado. Está tudo dito. E depois disto, senhoras e senhores, quem será o molusco que nestas circunstâncias aceitará o lugar?

O que parece é

Foi uma "fonte governamental", e não uma fonte da empresa, que confirmou ao Expresso o nome de Clara Ferreira Alves na direcção do Diário de Notícias. Sendo que se trata de uma empresa de capitais maioritariamente privados (a Global Notícias, do Grupo PT, apesar do Estado ter uma golden share), está tudo dito quanto ao controlo governamental da comunicação social. Nem há pudor em fazer parecer o que não é. Ao menos assim sabemos com o que contar.

23 outubro 2004

Se a vida nos vive, ou "Antes do Anoitecer"

Sim, Antes do Anoitecer é um belo filme no sentido da palavra que significa beleza. Acabámos de chegar do cinema e isto ainda está quente. Não falo da natural perfeição dos diálogos porque o Tiago a descreveu da melhor maneira uns posts atrás. Mas dos caminhos da vida: um desencontro pode mudar-nos as vidas para sempre, ou um encontro pode fazê-las diferentes o resto do tempo. O que o filme trata de forma fina é isso mesmo, os elos que se não ligaram e os que se fecharam dadas as contingências da vida. Tudo o que é acidental é demasiado importante para ser considerado um acaso. Não acredito no destino. Creio no aproveitamento das oportunidades. É sobre isso que este filme nos faz pensar: se passamos ao lado das nossas vidas, ou se as vivemos por dentro delas, pelos destinos que segurámos. Há dois tipos de atitudes, em que as pessoas vão oscilando: quando deixamos que a vida nos viva, ou quando vivemos o que impomos aos próprios acasos. Eu cá prefiro a segunda forma de estar, embora nem sempre isso seja fácil ou exequível. O filme foca-se demasiado na primeira.
E este final diz bem mais sobre cínicos e românticos do que o primeiro final em Viena.
- Já pensaste na vida pateta que levas? - disse-me o rato tranquilamente, quando me viu com a esfregona na mão, prestes a esmagá-lo. E atingiu-me no coração, aquela insignificância.
- Matas-me, pois, porque tenho este tamanho. Fosse eu da talha de um gato tu é que fugias, ó cobarde, pobre espécie de homem - e atingiu-me outra vez.
Pousei a esfregona e disse-lhe "cheiras mal", e "sim, levo uma vida de pateta", quase toda a gente leva. "Mas tu também não és do tamanho de um gato. As coisas são como são". Só então o esmaguei com a esfregona. E decidi mudar de vida.

A evolução das espécies

Acabei de me cruzar com o outro rato [há dois posts atrás, descrevi um raticídio]. Seria o par do outro, ou isto já é uma colónia? Desta vez, depois de fugir para debaixo do frigorífico, ao ver que eu tinha pegado na esfregona assassina, meteu-se num lugar impossível por detrás da máquina de secar. Este aprendeu com os erros do outro. Primeira lição: nunca se mata um rato sem a certeza de que nenhum outro está a olhar. Alguém, por aí, me empresta um gato? O lexotan tinha deixado uma mensagem no outro post a dizer que tinha um...

22 outubro 2004

Exercícios de abstracção

O novo sistema de acesso do metropolitano de Lisboa presta-se a diferentes metáforas. Ontem lembrou-me as corridas de galgos que só vi em filmes. As portas abrem-se e os cães lançam-se em perseguição da lebre mecânica. Fiquei desorientado. Quando passo já o animal se distanciou e não sei por onde ir; corro apesar de não ter pressa de chegar a lado nenhum.
E já experimentaram, nas escadas rolantes que descem até à estação do Rato, colocar os pés lado a lado, dobrar ligeiramente os joelhos e movendo os braços fingir que estão a esquiar? A Joana já. A reacção dos que, em direcção contrária, perseguiam a sua lebre mecânica até à luz do dia foi bastante favorável.

Kerry igual a Bush: a lavagem cerebral que me fizeram

Durante uma semana em Washington, think-tankers, um senador republicano e um congressista democrata, assim como membros da administração (estes é que não é de estranhar), tentaram convencer-nos (a mim e a outros camaradas de profissão) de que, apesar de toda a retórica, a política externa de Kerry não será muito diferente da de Bush, caso vença as eleições no dia 2 de Novembro.
No fim de contas saí de lá quase convencido, porque estes argumentos não são irrealistas:

a) No início do mandato, Kerry fará uma viagem aos países da velha Europa para recompor as antigas amizades;
b) Mas esperará que os aliados, em troca pela simpatia, disponibilizem umas tropas para o Afeganistão e para o Iraque (sobretudo para o Iraque), de modo a aliviar o contingente norte-americano;
c) Os europeus hão-de sorrir ao lado de Kerry, mas tropas é que não. A maioria dos políticos não gosta de pôr a cabeça no cepo por causa de meras simpatias (e Kerry é bem mais simpático do que Bush); depois há um défice para cumprir porque Bruxelas está vigilante e militares no estrangeiros são caros. Mais: cada soldado europeu morto tem mais custos políticos do que um americano. E se a Europa mandar tropas não serão as suficientes.
d) Se ao fim de três ou quatro meses Kerry não tiver respostas satisfatórias de países como Alemanha, França e Espanha, regressará ao orgulhosamente sós;
e) O sr. Chirac deve estar a torcer para o sr. Dabliú continuar onde está, que é para não ter de mover uma palha;
f) John Kerry nunca afastou a possibilidade de poder fazer ataques preventivos;
g) O democrata farta-se de falar no Irão e das armas nucleares. Se se concluir que o Irão as possui e os europeus não se chegarem à frente, então corremos o risco de ter uma nova situação como o Iraque (dizem eles que é preferível serem os EUA a intervir, para prevenir qualquer acção de Israel que incendiaria a região);
h) É preciso não esquecer que o trauma do 11 de Setembro ainda está fresco na cabeça dos americanos;
i) Todas as acções de Kerry seriam embrulhadas num papel mais multilateral do que as de Bush, mas os resultados não seriam diferentes, caso as organizações internacionais não dessem o aval às intenções norte-americanas.

Apesar de este ser um cenário possível, era preferível que não fosse assim.

21 outubro 2004

Raticídio pela manhã

A primeira coisa que fiz hoje, quando me levantei, foi matar um rato. Não é que não goste de ratos, ou que tenha, pelo contrário, ficado com um peso na consciência, mas é uma acção desagradável de se fazer logo pela manhã. Ver um bicho escuro a fugir, a meter-se debaixo do frigorífico, pegar na vassoura, procurá-lo, causar-lhe o pânico e depois esmagá-lo não é a melhor maneira de começar um dia de folga. À primeira, ficou mal esmagado, continuou a tentar fugir, já meio coxo (ou estaria a fingir que estava coxo, para eu o deixar escapar?) e aí peguei na esfregona. É um utensílio mais eficaz.
As barbas da vassoura devem picar suficientemente a carne de qualquer pequeno mamífero, mas uma esfregona molhada é mais compacta, deve ser como chumbo, e o facto de estar ensopada ajuda a uma sufocação mais conveniente. Seria uma morte piedosa. Mas não. Calquei-o bem calcado, mas a cauda nunca deixou de abanar, não de felicidade, talvez como que dizendo - "Ainda estou vivo, despacha-te, não sabes matar depressa, vá!..." Pelo menos não chiava como a osga que matei, ainda vivia na outra casa.

Quando levantei a esfregona, o pequeno, muito pequeno, peludo cinzento, contorcia-se um pouco, manchando o chão com uma ligeira nódoa sanguínea. Não levei a minha tarefa até ao fim. Tirei dois papéis de rolo branco de cozinha e preparei-lhe uma mortalha alva na qual o embrulhei antes de o deitar para o lixo e fechar o saco. Nojo.

Durante o processo de extermínio, a Carla estava na casa-de-banho. Estava e continuará na ignorância, pelo menos até ler este post. Até lá não se preocupa com isto. Dizem que basta matar-se o primeiro. Alguém precisa de uma desratização aí em casa?

20 outubro 2004

Antes do Anoitecer, Richard Linklater
Não sei se é o melhor filme do ano, pode ser apenas o filme que mais gostei de ver este ano (desde Lost in Translation). Parece impossível que eles saibam que estão a ser transportados por uma câmara de filmar pelas ruas de Paris, por uma escadas velhas até um quarto. Sei que a arte não é apenas a imitação da natureza, mas o longo diálogo entre Ethan Hawke e Julie Delpi também é mais do que apenas uma imitação de naturalidade. Ou parece ser, o que, em cinema, é quase a mesma coisa. No final sei claramente onde me encontro na divisão entre românticos e cínicos.

O cabaleiro importa-se de repetir?

No mesmo dia em que Gomes da Silva aproveitou para se enterrar mais um bocadinho, Morais Sarmento disse que há "limites à independência" dos operadores públicos de televisão. Ora isto cheira a mais uma cabala. Mas uma cabala dependente ou independente da vontade dos cabaleiros? Resposta: ou está tudo doido, ou uma pessoa normal, neste contexto, tudo faria para não dizer o que Sarmento disse. A não ser que ele quisesse dizer mesmo aquilo, e isso não se pode levar a mal, porque afinal os doidos somos nós por nos deixamos governar por sujeitos como ele. Isto cheira a fim de regime. Está por aí alguém disponível para organizar uma cabala para ver se "isto" acaba de vez?

O triângulo cabalista

O Expresso, o Público e Marcelo Rebelo de Sousa fazem parte de um estranho conluio anti-santanista, sugeriu o ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, ao prestar declarações à Alta Autoridade para a Comunicação Social. E disse que "as cabalas existem, independentemente da vontade subjectiva de as constituir".

São estranhas, porém, as forças invocadas pelo minstro, já que é difícil provar a existência de conspirações que se desenvolvem independentemente da vontade dos conspiradores. Se é um triângulo cabalista, de forças que congeminam uma cabala independente da vontade dos cabaleiros, isso cheira a maçonaria. Mas, nesse caso, o sr.ministro não devia ter mais qualquer coisinha para nos contar?
O post "O Empate" foi corrigido. Tinha um erro factual sobre a eleição de Ferro Rodrigues no PS.

18 outubro 2004

Entrada no diário: Nasceu a Luísa. Sexta-Feira, quinze de Outubro de dois mil e quatro. Fomos vê-la hoje pela primeira vez. Mama com frequência, dorme muito. A primeira impressão é muito importante; espero que tenha gostado de nós. Depois de nove meses de escuridão, vultos coloridos com vozes de professora do Charlie Brown podem ser muito traumáticos para um recém-nascido. Vamos ter de a indemnizar com presentes e chocolates pelos possíveis danos psicológicos. A Sónia e o Gonçalo estão cansados e felizes. Parabéns aos dois.
Como a Luísa não precisa de histórias para adormecer, termino a entrada antes de inventar uma.
Será que se comermos uma madalena e nos arrependermos logo de seguida lhe podemos chamar uma madalena arrependida? A transferência da culpa para o que é inimputável (a madalena) é um problema não suficientemente estudado pela psicologia contemporânea. Colocou-se-me pela primeira e única vez ao ler Proust; culpar uma madalena embebida em chá de tília pelas oito ou nove páginas de descrição do campanário da igreja de Combray e a recordação que as emoções do campanário da igreja de Combray provocaram num pobre miúdo a quem a mãe não beijava suficientemente ao deitar. No primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, o narrador descreve-nos como esse sabor esquecido (madalena/chá de tília) lhe despertou as recordações da infância, da adolescência e da vida adulta, que passa esse e os outros seis volumes a narrar pormenorizadamente. Tudo isto para dizer que, quando viajava no Domingo no Alfa-Pendular de regresso a Lisboa, um Compal de Tutti-Frutti, sabor que já não devia beber há muitos anos, me transportou imediatamente para uma viagem de estudo que fiz na primária. Deve ter sido a isso que Tocqueville se referia quando alertava para o perigo do declínio dos padrões de excelência nas sociedades democráticas. A madalena e o chá de tília aristocráticos foram substituídos pelo Compal de Tutti-Frutti suburbano. Mas, ao contrário de Proust, não me apetece escrever um romance a partir disto, o que apenas revela outro índicio do declínio.

15 outubro 2004

O empate.

Ontem fui ao Parlamento como quem vai ver um jogo de futebol, ver a reedição de um "derby". Este saiu empatado. José Sócrates não esteve mal para estreante no debate mensal, mas, na sessão sobre o programa do Governo António José Seguro fizera melhor do que o novo líder. Depois de dizer com arrogância que o primeiro-ministro não pensava antes de falar - porque Santana disse que Ferro Rodrigues também não tinha sido eleito secretário-geral do PS -, Sócrates afirmou que o seu antecessor tinha sido eleito por voto directo. Mas também ele falou antes de pensar porque depois atrapalhou-se. Ferro foi eleito por voto directo antes das legislativas e depois foi confirmado numa convenção o PS. O engenheiro estava nervoso? Veremos como se sairá daqui a dois ou três meses.
Santana, que esteve muito melhor ontem do que no debate do programa do Governo, não pode ser atacado com base em questões pessoais, porque o homem nisso é bom a responder. Até Francisco Louçã teve de mudar o tom, porque já viu que não o consegue irritar como irritava Durão Barroso. Esperemos pelas coisas sérias, o Orçamento do Estado, para ver como se dispõem as novas peças do xadrez político nacional.

O debate na churrasqueira: Kerry vs Bush

Nos três plasmas enormes daquele restaurante em Georgetown, Washington, o jogo de futebol americano entre a equipa da Marinha e a do Exército, concentrava as atenções de toda a gente. Éramos oito jornalistas, cada um do seu país europeu, e o negócio foi o seguinte: OK, jantamos aqui, mas dentro de uma hora vocês mudam de canal para vermos o debate das presidenciais. E assim foi. Ainda estávamos a comer os bifes enormes, suculentos, as batatas fritas e os molhos, e o jogo mudou, mesmo em cima da hora. O Kerry atirou-se ao Bush e o Bush placou o Kerry, o embate durou 90 minutos, mas antes de chegar a meio foi-se levantando um burburinho, depois um barulho enorme, até que olhámos em volta e éramos os únicos a ouvir os dois homens. Bem, a ouvir não, porque não ouvíamos nada. E nós a pensar que estas eleições eram importantes. Só metade dos americanos vota. Eu também queria votar, como cidadão do mundo. Só para usar aquele "pin" no meu casaco: "When Clinton lied nobody died. Vote 4 Kerry!"

14 outubro 2004

Se uma desconhecida lhe oferecer livros... está na América

Na América acontecem as coisas mais estranhas. Quando aterrei no aeroporto de Norfolk, Virgínia, ainda fiquei sentado uns minutos. Tinha ao meu lado um americano aflito, com dimensões XXL, a quem deviam ter reservado dois lugares no avião em vez de um. O homem era tão grande que fazia aflição. Por isso decidi levantar-me, libertá-o o mais depressa possível daquele aperto de seis horas e meia. Mal fiquei de pé (como metade dos passageiros), um homem, no banco da frente berrou: "Está assim com tanta pressa? Não sabe as regras? Porque é que não espera a sua vez e não deixa as outras pessoas sair primeiro!" Estarreci. Parecia que me queria bater. Ainda argumentei que não lhe tinha feito mal nenhum, blá-blá-blá, mas esperei que ele saísse primeiro.

Uns dias depois, em Washington, fui a uma livraria perto de Dupont Circle que está aberta toda a noite, e tem um belíssimo restaurante, um bar e música ao vivo. Escolhi dois livros que talvez não tivessem desconto na Barnes & Noble e dirigi-me ao balcão para pagar ao mesmo tempo de uma rapariga. Ela hesitou. E eu disse qualquer coisa como "faça favor". E ela fez. A empregada passou a pilha de livros dela no leitor óptico e os que estavam ao lado. Eu ainda disse, "esses livros são meus", a funcionária disse "eu sei", e fiquei a pensar que estava a fazer as contas separadas. Mas não. A moça tinha pago os meus livros. Saí porta fora e pedi explicações: "Por que carga de água é que pagou os meus livros?" Ela disse que tinha sido muito mal educada por ter passado à minha frente e que por isso tinha decidido pagar a conta. "Deixe lá, ela é assim", acrescentou a amiga que estava com ela. Ainda argumentei, blá-blá-blá, eu é que lhe tinha cedido a minha vez e tal, mas não funcionou. Voltei à livraria, perguntei quanto custavam os livros: 50 dólares, quase dez contos de réis. Corri para a rua. Tinha desaparecido.

Este é um episódio que jamais teria lugar em Portugal, fosse com livros ou rebuçados. E olha, fiquei a pensar nisso.

A propósito, os livros são: "The Irak War", do jornalista e historiador inglês John Keegan; e "The War for Muslim Minds", do académico francês Gilles Kepel.

13 outubro 2004

Estou ansioso por ver a cara de pau do ministro das Finanças, Bagão Félix, no debate do Orçamento do Estado.

12 outubro 2004

Santana, o curandeiro da sado-maso-obsessão de Durão

O IRS vai baixar, as pensões vão subir, os funcionários públicos vão ter um aumento acima da inflação, e o défice não passará dos 3%: o primeiro-ministro, sem direito ao contraditório domingueiro do professor Marcelo, em cada uma das três televisões, e a horas diferentes, contradisse o que andámos a ouvir dois anos e meio, e até as palavras do seu próprio ministro das Finanças. Ou Durão e Manuela tinham mesmo um problema sado-maso-obsessivo com as contas do Estado, ou somos todos uns totós (e o Bagão também), e andámos a ser enganados por gente doida até ontem.
Temos de agradecer ao Senhor Presidente da República, que nos deu esta bela prenda, porque se não fosse ele ainda podia haver quem votasse enganado no Conde da Figueira e lhe desse um mandato para quatro anos. Mas na pior das hipóteses isto não dura mais do que dois anos (o que é muito pouco tempo no tempo cósmico). E como o povo não é parvo e não estamos na Venezuela, o populismo desbragado chegará ao fim.

Olá. Estou de volta às postas.

05 outubro 2004

Fomos para sul. Na Ilha de Tavira há uma praia com âncoras cravadas na areia, como se uma tribo de gigantes se tivesse arrastado para fora do mar com o auxílio delas. Passámos lá os três melhores dias de praia deste ano, sem a visão de quaisquer seres mitológicos, que há muito se devem ter embrenhado na Ria Formosa e desaparecido. Já regressámos: a Joana prepara a mala para partir novamente, para Frankfurt; eu escrevo o diário mínimo das nossas mini-férias de comemoração.