31 agosto 2004

Zero e infinito no Olimpo

Penso nos Jogos Olímpicos, em dois tipos de modalidades: nas que tendem para o zero e nas que tendem para o infinito, e na possibilidade de podermos ser cada vez melhores.

Nas que tendem para o zero (como em todas as corridas de atletismo), quando mais próximo do zero chega um atleta, melhor. Um dia que chegue a zero, o mundo acaba, porque essa é uma façanha impossível. Mas se o desporto não é finito, e se as melhores marcas caem todos os anos, porque razão não há ninguém que se ultrapasse tanto a si mesmo de uma só vez, que nenhum outro humano consiga vencer aquele espaço em tão pouco tempo?

O mesmo se passa nas modalidades que tendem para o infinito (como nos saltos em altura, à vara, em comprimento, no lançamento do peso ou do dardo, etc): não há ninguém que consiga uma marca tão impossível de alcançar, por estar tão perto do infinito, que mate qualquer futura tentativa de superação?

Penso que só há uma resposta possível, embora bifurcada: os humanos são tão imperfeitos que é sempre possível aparecer alguém com um maior grau de perfeição; e é verdade que podemos ser sempre melhores do que no nosso momento anterior, de modo a nos superarmos a nós mesmos nas circuntâncias mais difíceis.

30 agosto 2004

Missão aborto, missão abortada

O facto da Marinha de Guerra controlar o barco do aborto que navega em águas internacionais até seria uma boa medida se o ministro da Defesa também fizesse o Exército avançar com tropas para a fronteira com Espanha, de modo a impedir as portuguesas grávidas de irem a Badajoz fazer abortos nas clínicas da cidade.

Mais eficaz seria até, se, no regresso delas a território nacional, a tropa examinasse as referidas portuguesas, de molde ao Estado aplicar a lei tal como ela está redigida, entregando as mulheres que tivessem de facto abortado em Espanha às autoridades judiciais, pois o que temos diante de nós é uma violenta e deliberada violação da lei que rege esta abençoada Nação.

(Sejamos corajosos. Vamos até ao fim, contra essa gente estrangeira que nos conspurca os costumes. Qualquer dia até aparece por aí outro barco holandês chamado "Grass on the Waves" a levar os nossos jovens a fumar charros no mar alto, ou, pior do que isso, até me arrepia de pensar nisto, um barco com uma lanterna vermelha chamado "Red Light Boat", com profissionais sexuais que satisfazem legalmente qualquer passageiro desde que seja no mar alto e balanceante.)

Ora, como as clínicas de Badajoz não navegam em águas internacionais para se deslocarem de motu próprio até Elvas ou à Figueira da Foz - porque estão presas ao chão -, para aí praticarem a abortiva ilegalidade, e como a inexistência de fronteiras não impede as portuguesas praticarem esse crime em Espanha, então o ministro da Defesa devia mandar a Força Aérea bombardear as referidas clínicas espanholas por incitarem ao ilícito (legal e moral) deste lado do Tratado de Tordesilhas. (Como seríamos virtuosos se não fossem esses desavergonhados estrangeiros).

Nas Forças Armadas, comandadas por um líder iluminado, reside a salvação nacional. O POVO ESTÁ COM O MFA! Até já estamos a ver os raides das Forças Especiais às clínicas clandestinas onde se pratica o aborto ilegal nas más condições sanitárias que tanto preocupam o ministro. Esta preocupação com as condições sanitárias ainda vai desgraçar o dr. Portas, pois, como todos sabemos, é um dos argumentos a favor da legalização.

A vinda do barco é, de facto, uma operação propagandística, e isto é inegável, mas, como defende Pacheco Pereira no Abrupto, a posição do ministro da Defesa (aliás, do Governo) é simetricamente um espelho da outra: "Agora que o governo português resolva actuar como um espelho do Bloco, como um grupo radical de sentido contrário, com todos os tiques do radicalismo ideológico, com a agravante de abusar dos meios do Estado, é que coloca uma questão muito mais grave do que o folclore do barco. Se o barco foi uma provocação, este governo respondeu-lhe ao mesmo nível".

28 agosto 2004

O jornalista vai à fonte e parte o cantarinho...

Todos aqueles que foram a favor da revelação das gravações (imprudentes ou ilegais, conforme a opinião) do jornalista do Correio da Manhã, Octávio Lopes, deviam ler com atenção dois artigos na revista The Economist do dia 21 de Agosto (artigo em editorial e peça jornalística).

Enquanto em Portugal são os próprios jornalistas que honram os leitores com a revelação das fontes dos outros jornalistas, nos Estados Unidos, um jornalista da Time, de seu nome Matthew Cooper, foi condenado a prisão efectiva de 18 meses (ou multa de mil dólares por dia) por não revelar uma fonte sensível da Casa Branca que lhe passou uma história: Copper escreveu, no Verão passado, que Valerie Plame, mulher do ex-embaixador que passou a informação aos media de que o famoso urânio nigeriano nunca tinha sido vendido ao Iraque, era uma agente encoberta da CIA.

Ora, toda esta história é muito complicada do que isto, mas o que importa é reter o seguinte: o jornalista (e outros três repórteres acusados) não revela a fonte porque, embora sendo do interesse público saber quem, na administração Bush, quis "lixar" o embaixador pondo em perigo a agente secreta e as pessoas a ela ligadas, há um valor superior que é o da liberdade de imprensa. O editorialista da Economist, escreve: "If reporters were routinely forced to identify confidential sources, those sources would dry up and the public would lose potentially valuable information. The public should not want the media to be servants of the legal system any more than it wants them servants of government".

No caso português, o mais triste é que não foi um tribunal a forçar um jornalista a revelar as suas fontes - o que, de resto, o transformaria num mártir da classe -, mas terem sido camaradas de profissão a fazê-lo. As consequências de quaisquer erros que tenham sido cometidos deveriam recair directamente sobre o jornalista e seus superiores, por cometerem ou permitirem que se tenham cometidos falhas grosseiras durante o exercício da profissão. Quando as consequências recaem apenas sobre as fontes, como aconteceu - que, caso não mintam, se arriscam pessoal e profissionalmente a passar informações de interesse público -, é a própria democracia a ficar em perigo.

Se o jornalista vai à fonte, tem de trazer o cantarinho inteiro, ou então acaba um dia morto à sede.

24 agosto 2004

A Pepsi e a Coca-Cola

As marcas dominam a nossa mente sem nós o sabermos e se compramos marcas é porque confiamos no rótulo: podemos comer e beber isto ou aquilo e sabemos que não vamos morrer envenenados, ou podemos comprar este ou aquele detergente porque não nos vai dar cabo da roupa. Na política as coisas passam-se mais ou menos assim, sendo que a marca com maior notoriedade não é forçosamente a mais confiável, se é que ainda há marcas absolutamente confiáveis na política.

Ora temos assim duas marcas que vão degladiar-se no futuro próximo: a PSL, dos produtos Pedro Santana Lopes, e a JS, das produções José Sócrates.
A primeira, é uma marca popular com notoriedade firmada, líder de mercado, apesar de todos os que também a detestam. PSL é como a Coca-Cola, que se acha a maior e age como sendo a maior.
A segunda é uma marca que tem uma quota de mercado mais baixa, mas que quer chegar à liderança, e por isso procura posicionar-se de maneira diferente, apesar do seu sabor ser praticamente igual à anterior. JS é como a Pepsi, que não se apresenta como uma igual à Coca-Cola, mas como algo de novo, mesmo sem o ser: "The choice of a New Generation" (a escolha de uma nova geração). A escolha é da nova geração, mas nada sabemos sobre o produto, sobre o que é que o torna diferente da concorrência. José Sócrates já deve ter interiorizado isto de tal maneira que, na entrevista a Maria Henrique Espada, no Diário de Notícias de sexta-feira, dia 20, afirmou: "Sou um candidato de uma nova geração (...)". É o candidato Pepsi...


16 agosto 2004

O jardim dos cactos abandonados

Sábado à tarde, um calor seco no ar, e onde ir evitando os lugares de sempre... Uma ideia: o jardim botânico de Belém, euro e meio a cada um à entrada (a Carla é que pagou), passeio sossegado, jornais de fim-de-semana enfiados no saco do Expresso, lagos, água, gansos, sombra, turistas raros, portugueses ausentes, um abandono. O lugar, partes do lugar, ao desleixo, e um casal de noivos aviado nos Jerónimos em preparos diante do fotógrafo.
Num portão semi-aberto, alguém se esqueceu de pôr a placa "proibido entrar". Lá dentro, um delicioso jardim de cactos continua a ser um jardim de cactos porque os cactos podem ser deixados ao abandono e mantêm-se a cactotuar vida fora. As estufas destruídas, em ruínas, lixo e dejectos de jardinagem pelos cantos do caminho, e os cactos, com os picos ainda mais de fora, assanhados como fazem os cactos zangados, enrodilhados em árvores antigas, ora estrangulando-as ora confortando-as, erguendo-se com braços ameaçadores contra quem ousa profanar o santuário. Há um certo encanto na decadência, como se num lugar antigo e abandonado sedimentassem as memórias esquecidas. Mas o sinal da nossa decadência é deixar que lugares assim não sejam mais do que memórias forçadas ao caminho do esquecimento, a vitória da incúria. Uma vergonha. Alguém se acusa?

08 agosto 2004

Sabonetes ao poder

É injusto dizer que Santana e Sócrates são iguais. Quem olhar com atenção percebe que os dois são diferentes: o primeiro-ministro tem uma personalidade quente, emocional, é um improvisador, um espontâneo movido pelo combustível da reacção às acções dos outros; o candidato a secretário-geral do PS é frio, absolutamente cerebral, e contido ao ponto de avaliar cada gesto e cada palavra.

A zona de intersecção entre ambos é o instrumento para chegar ao mesmo fim: a comunicação social, a fábrica das imagens, e as intervenções cheias de nada.

Há umas semanas li dezenas de entrevistas e artigos de Santana Lopes publicados na imprensa desde os anos 90. A sua capacidade impressiona: é capaz de escrever lençóis de textos sem dizer absolutamente nada, sem deixar trair-se por uma ideia. É preciso peneirar milhares de linhas sobre a vida partidária para encontrar um conceito, um rumo de pensamento sobre o país, ou a defesa de uma medida. Sócrates também provou, nas últimas semanas, que é igual. A entrevista das citações ao Expresso foi um desastre, o artigo sobre o plano tecnológico no Público é um conjunto de generalidades que toda a gente defende, e a página do Diário de Notícias, dirigida à ala esquerda do PS, serviu mais para esconder do que para mostrar o que pensa.

Bem-vindos ao país moderno! Já houve quem quisesse vender Presidentes da República como se fossem sabonetes. Agora temos sabonetes que são ou querem ser primeiros-minstros.

07 agosto 2004

Postal atrasado: gelataria acrobática

Este é um daqueles postais que mandamos aos amigos e chegam à caixa do correio muito depois de termos regressado de viagem, e encerra os posts das minhas férias:

Trojir. Croácia.
O Adriático é o mar veneziano. Enquanto percorremos a costa, damos com cidades que são pequenas venezas, embora sem os canais: os palácios, os arcos nas janelas, as ruas labirínticas, as piazzetas, os turistas. E os gelados. Muitos gelados, quase tão bons quanto os italianos. Mas naquela gelataria - não mais do que uma arca congeladora ao ar livre -, na marginal de Trojir, em frente a um dos grandes iates ali atracados, descobri uma daquelas pessoas que faz de um emprego banal um ofício e uma arte.
A arca dos gelados estava cerca por turistas e crianças, de notas na mão, a pedirem uma, duas, três bolas. O rapaz pegava num cone, tirava um sabor bem redondo com a colher e depois atirava o gelado ao ar, uns três ou quatro metros, e apanhava a bola de natas atrás das costas, a de chocolate caía directamente em cima da de natas e, na de morango, dava três voltas sobre si mesmo, para o gelado acabar composto e na mão de quem pagou para ver. Puséssemos nós, assim, em tudo o que fazemos, aquele pedaço de alma que dá encanto às coisas...