30 julho 2004

Miguel Torga, Diário I
Coimbra, 18 de Dezembro de 1937 – Cá estou eu. Sei que estas notas não têm pés nem cabeça, que o dia registado como eu o registo é uma coisa semelhante àquelas pílulas alimentícias, onde o estômago, na sua orgânica necessidade de se sentir cheio e farto, não consegue valorizar os mistérios da concentração.
Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário.
Dito isto, embarco amanhã para a Europa.


Eu também, para Roma. Não sei se vou conseguir ir alimentando um diário nestes próximos doze dias, que são bichos de comem muito. Especialmente os de viagem, de bordo, onde sentimos necessidade de descrever tudo em todo o pormenor para não percebermos que andamos perdidos.

25 julho 2004

Viagens modernas III: as pessoas

Já falei de Guido, o académico dálmata, descendente de portugueses, que pediu ao presidente da Croácia para deitar ao Tejo as cinzas do seu velho barco português, quando aquele visitou a Expo'98. As pessoas são o conteúdo das viagens, que enchem o espaço que nos é aberto pelos lugares. Lugares com gente lá dentro: assim deviam ser todas as viagens modernas.

Da minha última viagem trago apenas mais duas experiências relevantes com os locais, porque era difícil falar com os croatas, que dominam poucas línguas, porque não saí à noite, o que é excelente para meter conversa, e porque as pessoas com quem falei não queriam responder às minhas perguntas.

E o que quer saber um português numa terra como aquela? Como se vive com a memória de uma guerra tão recente. Perante isto, até o passado comunista da ex-Jugoslávia perde o interesse (uma senhora muito animada e simpática, que falava um alemão macarrónico tinha uma bela biografia de Tito à cabeceira de um dos seus quartos para alugar, e uma prateleira cheia de volumes sobre o ditador, Estaline e o socialismo. Mas a comunicação era impossível).

Um homem, na galeria de arte de Dubrovnic, parecia o interlocutor ideal: afável, talvez culto, jovem e fluente em inglês. Peguntei-lhe de quem eram os quadros e as esculturas. Ele respondeu que eram de artistas croatas, bósnios e macedónios. Tinha ali a minha deixa. Confessei que tinha tido dificuldade em fazer esta pergunta ao longo de quase duas semanas e atirei: "Como é que vocês olham hoje uns para os outros, 10 anos depois da guerra? Como é que convivem com essa memória?". Ele ficou calado. E eu senti-me a devassá-lo. Depois, levantou os olhos e disse, que "agora as coisas estão melhores, mas há sempre quem queira continuar a causar problemas". Fez uma pausa. Tinha os olhos marejados, e não estou a exagerar. E disse: "Falar sobre isso é muito difícil. Procuramos esquecer-nos todos os dias para tentarmos levar uma vida normal". A seguir, pensei no que sentiria se alguém tivesse bombardeado sete meses seguidos a minha cidade natal, destruindo a maior parte dos monumentos e matando os meus amigos. Há feridas abertas que nunca saram.

Guardei outra história, mais pitoresca, mas reveladora. O Afonso ia a conduzir o carro ao lado da Blandina, eu e a Carla íamos atrás, entre Sarajevo e Mostar, na Bósnia. Um polícia mandou-nos parar. Falou um inglês arranhado e disse que íamos a 104 km/h numa zona onde só podíamos ir a 90. Era caso para multa. Pediu os documentos. Mal olhou. Disse que eram 30 unidades da moeda bósnia. Respondemos que não tínhamos, porque só estávamos um dia no país. Quisemos saber se aceitava euros ou kunas croatas. Quis euros: quinze euros. Demos-lhe duas notas de 10, ele pegou numa, deu-se por satisfeito, "assim está bem", e mandou-nos seguir.


Viagens modernas II - riscar coisas da lista

"Uma das coisas que mais me irrita no facto de ser turista é a minha própria cumplicidade no hábito de riscar coisas numa lista. Os Giottos - feito, Igreja dos Eremitas - feito, Piazza dei Signori - feito, e assim por diante. Quem quer saber? como um qualquer peregrino medieval, ali estava eu a acumular pontos junto de... junto de quem, exactamente? A quem iria apresentar a minha caderneta? Há algo de estranhamente religioso, no sentido mais conservador, no turismo moderno."
in Cartas de Veneza, Robert Dessaix
Gótica, pag. 191

Ir de férias é um momento único nestas vidas que levamos. A fuga é tanto mais saborosa quanto para mais longe formos, como catarse de todo um ano a aturar aquela gente no emprego. Ir aos lugares e vê-los é pouco (ver post abaixo). Não saio de uma cidade sem ver aquilo que é obrigatório, mas saio frustrado se me for embora sem perceber o que vi. Percorrer a lista não chega, olhar para pedras antigas é pouco, conhecer as histórias por detrás do que vemos é que é importante. E nem sempre consegui esse equilíbrio nestes 15 dias em Veneza, na Croácia e na Bósnia: Veneza merece uma visita de Inverno para nos embrenharmos nas histórias; Dubrovnic, no sul da Croácia, merece tempo (também em época baixa para fugir do terror do turismo de massas) porque é uma das cidades mais encantadoras que já vi; o mesmo serve para Mostar, na Bósnia, onde ver as diferenças entre os habitantes de uma e outra margem é essencial.

Riscar os lugares que já vimos na nossa lista de sítios obrigatórios, como numa romaria, é fundamental, mas pobre. O que faz os lugares são as pessoas, as falas, os hábitos, as comidas, os cheiros.

Por isso, a pior maneira de se viajar é em pacotes organizados, apesar de um amigo que tem uma agência passar a vida a tentar impingir-mos. Já fiz duas viagens dessas: uma à Turquia, porque era barato, e outra ao Egipto, porque era a melhor maneira de o fazer. Neste estilo de viagem empacotada é tudo automático e pouco mais fazemos do que riscar da lista os lugares que já vimos. Ao fim de uns dias estamos como aqueles turistas americanos que vieram fazer um tour pela Europa. Depois de uma semana e de quatro países, Bill perguntava a Tom: "Onde é que estamos hoje?" E o amigo respondia: "I do not know. But it's friday, it must be Belgium..."


Viagens modernas I: ver, ver, e nada acontece

Cheguei! A Joana está mais velha (parabéns mais uma vez!), acompanhando o envelhecimento da fotografia lá de casa, e eu sem poder assisitir ao vivo à transmutação etária anual da minha amiga, e sem ter comido a parte que me cabia no bolo que foi chocolate... Para o ano cá estaremos.

Primeira impressão à chegada: o país está igual, o aeroporto também, só nos jornais se nota que o Santana já é primeiro-ministro. Está muito calor em Lisboa, quase tanto como ontem à noite junto ao Grande Canal em Veneza, pelo que daqui se infere que é verdade a berlusconização da vida portuguesa: quando a temperatura política sobe demais, mau sinal para todos nós. É divertido mas não é bom.

Última impressão à saída: por que viajamos nós? Entro no avião, sento-me, fasten my seat belt, alimento-me de sandes que a TAP agora faz o favor de proporcionar aos que viajam em turística, e recordo as parte do livro Cartas de Veneza, do australiano Robert Dessaix (Ed. Gótica, 2002), em que os personagem se interrogavam sobre o que os levava a viajar. A propósito, é um belo livro para se ler numa viagem, sobretudo se tiver uma paragem em Veneza. É uma sensação de proximidade com o autor olhar para as mesmas coisas que os personagens.

Mas sobre as viagens, dizia o Professor Eschebaum, de Dessaix: "Na verdade, um em cada dois livros que lemos é sobre um qualquer tipo de viagem, não é? E estamos constantemente a falar de caminhos da vida... trilhos, estradas, progresso, etapas e por aí fora... tudo metáforas relacionadas com o viajar, se pensarmos bem nisso".

O narrador, que escrevia as cartas em Veneza, tocava num ponto ainda mais essencial, que mais tarde ou mais cedo todos sentimos, quando o cansaço nos abate: "A verdade é que não há muito que fazer em Veneza, excepto ver. não se vem aqui para fazer o que quer que seja, mas simplesmente para ver coisas. Assim são as viagens modernas. Cheias de movimento, mas nada acontece verdadeiramente. Começo a ansiar por outro tipo de viagem".

Se gastamos todo o dinheiro que poupamos em viagens, não será apenas para ver, mas também para aprender, para viver, para nos sentirmos mais vivos, para encontrarmos "sabedoria e êxtase", também escreveu Dessaix, citando Paul Bowles. E pela procura de um certo encantamento.

Pela minha parte, esta viagem aos Balcãs ajudou-me a encontrar mais uma justificação: viajar ajuda-nos sobretudo a encontrar  e a perceber o nosso lugar no mundo. Essa evidência tornou-se quase palpável enquanto passava por bairros residenciais na Bósnia ou na Croácia e via as marcas das balas nas casas onde estava roupa estendida na janela.

22 julho 2004

A Joana faz anos, mas não muitos. Já andei pela casa à procura do retrato que envelhece por ela. Fez um bolo de chocolate, que irá atormentar-me toda a manhã, com o seu ar caseiro, apetitoso e intocável em exposição na banca da cozinha.
Deixem-lhe mensagens simpáticas nos comentários.

21 julho 2004

Aviso de recepção

Obrigado pelo postal. Não é comum recebermos postais de férias com imagens de cidades em ruínas e reconstrução. Vai já mentalmente para a porta do frigorífico, suspenso por um íman. Bom regresso.

Um postal da Bósnia (versão acentuada e cedilhada)

Dubrovnic. Croácia.
Ontem passámos o dia na Bósnia-Herzegovina. Dez anos depois, e a guerra continua demasiado visível. Ao longo da estrada, de Split para Sarajevo, percorremos uma paisagem deslumbrante, de planaltos e planícies pontuados por casa metralhadas e montes de feno, depois com montanhas rochosas e mais tarde floresta densa, quase alpina. Cruzámo-nos com militares portugueses, perto da capital. Soube depois que um tropa nosso tinha morrido na semana anterior num acidente estúpido, perto de Tuzla. Há portugueses que vêm morrer a esta terra em nome de uma paz que talvez seja para sempre hesitante. 

À entrada de Sarajevo começamos a ver os buracos da balas nas casas, os prédios destruídos, as placas nas paredes com o nome dos mortos civis que tombaram naqueles lugares, e as pessoas na sua vida normal. O estranho nestas cidades são as marcas nas paredes e os habitantes, tal como nós em Lisboa, aparentemente no seu quotidiano banal. As marcas nas paredes são evidentes, as marcas no íntimo de cada bósnio não são visíveis. Também não perguntei, não procurei saber mais, estivemos pouco tempo na cidade. Num lugar onde a seguir a uma mesquita aparece uma igreja católica, onde logo depois de vermos e ouvirmos o canto do "muezzin" numa mesquita, damos com uma igreja ortodoxa e, num recanto, a um quarteirão de distância, se ergue uma sinagoga, num lugar assim, ou encontraríamos o paraíso da tolerância, ou as coisas haviam mesmo de dar para o torto.

Na velha biblioteca de Sarajevo uma inscrição dizia que esta tinha sido incendiada pelos "criminosos sérvios". Está a ser reconstruída com a ajuda internacional e exibia uma instalação de um artista plástico, que enchia os velhos nichos onde um dia tinham estado os antigos volumes com sacas de sarapilheira (como as que servem para as barricadas), livros, sacos-sarcófagos, pedras. Tocante.

Seguimos para Mostar, onde só chegámos à noite, para vermos a ponte secular que tinha sido destruída pelos próprios bósnios-croatas, em combates contra as milícias muçulmanas. Entrámos pelo lado muçulmano, onde os jardins públicos e a frontaria de casas estão cheios de lápides de vítimas dos bombardeamentos, enterradas a pressa. Passámos para o outro lado do rio, onde um em cada quatro predios está completamente esventrado. Na zona velha encontramos, porém, uma cidade em festa: Mostar 2004. A ponte que simboliza a ligação entre as culturas está pronta. Foi reconstruída com a ajuda da Unesco. Vai ser inaugurada amanhã, sexta-feira dia 23 de Julho, com a presenca de personalidades de todo o mundo. À noite, iluminada assim, com uma luz amarelada, vista dos restaurantes à beira rio, temos uma bela imagem: a de uma vida nova. Talvez o futuro venha a ser melhor.

Seguimos para Sul. Hoje chegámos a Dubrovic, um enclave croata que esteve cercado sete meses pelos sérvios e montenegrinos. A maior parte da cidade foi bombardeada. A maior parte ja foi reconstruída. É património mundial. Um lugar invejável. Que devia fazer-nos pensar. Esta guerra foi demasiado perto de nós. E nunca tivemos essa percepção de proximidade, quando olhavámos para aqui a partir de Portugal.

Um abraço. Nos próximos dois dias regressamos a Portugal via Veneza. Ainda temos muitos quilómetros à nossa frente.

19 julho 2004

Guido, o dálmata português

Split. Croácia. Guido apareceu-nos estávamos a descansar no pátio da casa-museu do famoso escultor croata, Ivan Mestrovitć, na zona alta e antiga de Zagreb. Estão a falar português, percebi, disse-nos antes de mais. E dirigiu-se-nos em espanhol. Alto, magro, de olhos azuis, e cabelos grisalhos, um misto de marinheiro, estudioso e viajante mediterrânico, garantiu que há quinhentos anos a sua família tinha vindo de Portugal, embora sem ter explicado porquê. Depois, este professor de história de arte que fora director daquele museu durante alguns anos, contou-nos esta curiosa história: Na sua terra Natal, Split (onde escrevo num pequeno ciber-café, apesar de a Carla questionar que necessidade tenho eu de vir escrever em férias), mantém-se a tradição de queimar os barcos que são abatidos: depois, parte das cinzas são atiradas ao mar, enquanto outra parte vai num porte, para o barco novo do mesmo proprietário. E a família de Guido tinha um barco. E não só a família tem antepassados portugueses, como parece que o próprio barco era de origem lusa, provavelmente de Lisboa. Quando resolveram comprar uma embarcação nova, queimaram a antiga, cumprindo a tradição na Dalmácia. E dividiram as cinzas. Uma parte foi para um pote, colocada como se num altar no barco novo; e a outra parte viajou, por vontade de Guido, até Lisboa, na bagagem do Presidente da Croácia, em 1998. O Presidente (decerto amigo de Guido, mas não entramos nesses pormenores), de oficial visita a Lisboa durante a Expo'98, transportou as cinzas com a missão de as devolver ao Rio Tejo. Tarefa que terá desempenhado com solenidade, quem sabe, porque Guido também não explicou muito mais, durante a nossa breve conversa. Guido, o académico dálmata, nunca foi a Portugal a procura das suas raízes, mas uma tia esteve em Lisboa e disse-lhe que era a cidade mais bela que já tinha visto.
 
Tiago, corrige-me por favor este texto, que o teclado croata obrigou-me a assassinar o português. 

 (Da cidade mais bela de todas as visitadas pela tia do Guido, já corrigi as faltas. Achava melhor ter deixado o texto como estava: mais exótico, com as dificuldades das férias em viagem por lugares afastados do quotidiano; mas cumpri o pedido. Boa viagem. Tiago Araújo)

Postal de um exilado na Croácia

Split. Croácia. Como um golpe de Estado é uma coisa que dá muito trabalho e comporta os seus riscos, resolvi não emigrar, mas exilar-me durante algum tempo. Quinze dias, de Veneza a Dubrovnic, ao longo de toda a Croácia, passando por Sarajevo e Mostar, na Bosnia-Herzebžgovina, tornou-se num suave e breve exílio para quem vê a pátria nesta estranha situação. A escolha do itinerário foi inocente, mas agora deixou de o ser, porque, ao tomar consciência do que sofreram recentemente estes povos mediterrânicos como nós, ganha-se alento para voltar a um país que está como está. Se eles recuperaram assim, pelo menos aparentemente, de uma guerra como foi a guerra na Jugoslávia espartilhada, também Portugal sobreviverá aos santanistas e às santanettes.
 
Split, na zona antiga, é um misto de cidade romana, com o palácio de Diocleciano a dominar tudo o resto, de cidade medieval, e de centro renascentista dominado por Veneza. Como devem calcular é um lugar belo, apesar do excesso de esplanadas (eles têm-nas a mais, enquanto nós as temos a menos), e do excesso de turistas, como eu, aliás.
 
Nunca tinha ido a Veneza. Trago de lá a maior vontade de regressar, de preferência no Inverno, com poucos turistas, para explorar a história e os significados de um lugar singular.
 
Zabreb é uma capital estranhamente calma, pelo que percebemos, com gente profundamente religiosa. Numa das portas da cidade antiga, um fresco da virgem com o menino, que sobreviveu a um incêndio no sec. XVIII, e adorada por quase toda a gente que passa: jovens, velhos, homens, mulheres, quase todos se benzem; uma boa parte faz uma pequena oração antes de prosseguir; e alguns ficam ali alguns minutos a rezar. Não deixa de ser impressionante num pais católico, até porque os católicos não são de mostrar assim tão em público a sua religião. Fez-me lembrar os muçulmanos nos países muçulmanos. Mas a religião define a Croácia, assim como a Sérvia ou a Bósnia, é preciso não esquecer estas estranhas fronteiras (estranhas quando observadas por um português). Disseram-nos várias vezes: "como é que foram perder com os gregos? Toda a Croácia estava a torcer por vocês". Claro, nós somos os irmãos católicos, e os gregos os inimigos ortodoxos. E claro que estas coisas são sempre muito mais complicadas do que parecem.
 
Está um sol fabuloso e hoje vamos voltar a gozar (eu, a Carla, o Afonso e a Blandina), um belo dia de praia sobre as rochas dálmatas suavemente banhadas pelas calmas e cálidas águas adriáticas.
 
Tiago, por favor, põe-me os acentos e as cedilhas nisto.

15 julho 2004

A imaginação segue dentro de momentos. Enquanto isso...

(a mão negra)

O extremo poder dos símbolos reside em que eles, além de concentrarem maior energia que o espectáculo difuso do acontecimento real, possuem a força expansiva suficiente para captar tão vasto espaço da realidade que a significação a extrair deles ganha a riqueza múltipla e multiplicadora da ambiguidade. Mover-se nos terrenos dos símbolos, com a devida atenção à subtileza e a certo rigor que pertence à imaginação de qualidade alta, é o que distingue o grande intérprete do pequeno movimentador de correntes de ar.
[...]


Herberto Helder, Photomaton & Vox

12 julho 2004

Comentário atrasado e bastante breve

O Presidente da República tomou uma decisão para o futuro, mas não para o presente. Quis reforçar a componente parlamentarista do sistema semipresidencial, mas o poder que reforçou foi o dos partidos, não o do parlamento. Privilegiou excessivamente o elemento representativo da democracia, em detrimento do participativo.

08 julho 2004

A Adília Lopes está (diz ela) com alguns problemas psíquicos e emocionais desde o último Natal. Escreve as cartas à mão. Deixou crescer o cabelo, que apanhou em rabo de cavalo apenas para um poema. Com a cabelo apanhado, talvez para ver melhor o papel de carta, escreveu um texto fantástico para o último número da revista Relâmpago, sobre como se faz um poema com um pouco disto tudo.

Citação para a depressão

Vira tudo nitidamente assim que passou o cume dos trinta, o mais alto e escarpado de toda a travessia. A surpresa e o doloroso desconcerto que então viveu foram os de alguém que desperta bruscamente de um plácido sonho. Pois, assim como um actor enganado pode actuar numa première convencido de que se trata apenas de um ensaio geral, também ele actuara na sua juventude convencido que mais tarde, só mais tarde, chegaria a hora do début. E ao descobrir que ela já passara, mergulhou imediatamente num desconcerto tão profundo e obscuro como o fundo de um poço.
Ricardo Cano Gaviria, O Passageiro Walter Benjamin

05 julho 2004

VI

Irmão do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
P'ra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impões
Leis que não são as minhas.
Teus pés batem a dança
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidias cintilas
Longas mãos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face de toira
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.

Sophia de Mello Breyner Andersen, «Homenagem a Ricardo Reis», Dual

02 julho 2004

Jorge Sampaio está a auscultar as mais altas individualidades do país. Não consigo deixar de imaginá-lo a mandá-las entrar para o seu gabinete, a pedir para se despirem da cintura para cima e a pegar no estetoscópio. «Inspire fundo,... outra vez. Pois, o seu pulmão esquerdo quer dissolução da Assembleia e o direito Santana Lopes.» Também estou a imaginar alguns a susterem a respiração, amuados, até lhes fazerem a vontade.

Morreu Marlon Brando. Como vi os filmes mais importantes em que entrou pela ordem inversa (Apocalipse Now, O Padrinho, Último Tango em Paris, Há Lodo no Cais, Um Eléctrico Chamado Desejo), foi para mim tornando-se cada vez mais novo: Stanley a gritar por Stella na base das escadas de uma casa do Bairro Francês de New Orleans. Saber que morreu hoje, num hospital da Califórnia, foi por isso uma surpresa, notícias de alguém de quem não me lembrava há muito tempo.

Um por todos, todos por nenhum

Um homem. Bastou a vontade de um homem para o país ficar num alvoroço e agora parece que ninguém serve. Isto assusta. Numa democracia não devia ser assim. A pluralidade devia ser sinónmo de existência de muitas escolhas possíveis. E de gente boa para escolher à direita e à esquerda.

Durão Barroso escolheu a Europa, e seria difícil a um português rejeitar essa oferta. Mas devia haver algum sucessor no Governo, membro do Governo e do partido, que as pessoas pudessem ver com naturalidade no cargo de primeiro-ministro, mesmo que não concordassem com ele. O mesmo se passa no PS. Se houver eleições, quem é que está a ver Ferro Rodrigues como primeiro-ministro, depois de ter provado que não tem esse estofo, pela maneira como reagiu ao processo da Casa Pia?

O rectângulo está em risco. Alguém nos acode? Retiro a proposta do golpe de Estado. Talvez não houvesse ninguém a quem valesse a pena entregar o poder. A dona Constança não quer entrar nesta festança?

Primeiro-ministro sob caução, não!

O FC Porto é Campeão Europeu, Portugal está na final do Euro 2004, Durão é presidente da Comissão Europeia. Fizémos o pleno. Mas no campeonato nacional ainda está tudo por decidir. Santana já lidera o PSD, mas as coisas em Belém não estão claras. Ninguém é capaz de afirmar hoje, com a mesma convicção de há uns dias, que Jorge Sampaio não vai convocar eleições antecipadas.

Há um cenário que tem sido lançado, mas é indesejável: o do Presidente aceitar Santana se ele levar nomes fortes para as pastas económicas. Se Santana Lopes for aceite por Sampaio levando como caução nomes tão fortes como António Borges (nas Finanças) ou António Mexia (na Economia), para garantir a credibilidade do Governo, esta seria uma má solução. Por quê? Ou bem que se confia em Santana, ou bem que não se confia. Nomeá-lo primeiro-ministro por causa dos seus ministros faria dele um débil chefe de Executivo, que teria de se demitir um dos seus ministros um dia se fosse embora.

Santana deve ser primeiro-minstro, se os portugueses votarem nas listas do PSD, em eleições antecipadas. Instabilidade por instabilidade, a instabilidade já foi lançada.