31 março 2004

Recados: (continuação do episódio anterior)

Sónia e Gonçalo, parabéns! S., quantos graus aumentou a inclinação da parábola (será este o termo, já não tenho geometria há alguns anos) da tua barriga desde o aniversário do G. (já agora, como é que estava o bolo de bolacha?). No primeiro filho, temos de manter um registo minucioso da evolução biológica. De guardar todas as ecografias para o álbum de fotos.

Celita e Nuno, parabéns! Se bem que isto já me soe a conspiração. Parece que os nossos amigos começaram todos a ter filhos só para nos fazerem inveja. Não perdem pela demora, os nossos vão ser mais bonitos que os vossos. É por isso que estamos a esperar mais um bocado, para que as técnicas de manipulação genética evoluam e as crianças saiam todas à mãe.

Isabel, não fiques triste e traz-me cajú. Sabes bem que é isso ou cocaína. Espero que as praias de Moçambique já tenham ligação à Internet e possas ler este recado: é só para avisar para te virares ao contrário, que já estás a ficar com um escaldão nas costas. Mas não te preocupes, o Ruca pode pôr-te um pouco de creme à noite.

Ana Mota, Isabel Ferreira, o que é feito de vocês? Perdi-vos, mesmo numa cidade tão pequena como Lisboa. Já andei às voltas, mas nada. Talvez estejam no cimo da cabeça, onde costumam estar os óculos de que andamos à procura.

Cristina Falcão, o teu último postal tem data de 20-12-2003. Só tens mais uma semana para não deixar expirar a tua licença de escritora oficial de postais. E a tua casa, já tem sardinheiras nos beirais?

Jorge, valter, obrigado.

(continua)
(Vítor, tens de ir alimentando o nosso blogue peixe-vermelho.)
Sinto-me de consciência pesada. Como a criança a quem deixaram ter um animal de estimação, com a condição de não se esquecer de o alimentar. Depois a criança vai jogar futebol, ler livros do Salgari, traduzir, andar de transportes públicos, e quando regressa encontra o seu blogue a boiar de barriga para cima dentro do aquário.

27 março 2004

Hoje levantei-me com um poema feito sem palavras.
Dentro dele havia luz macia
e um tom azul ao longe para onde caminhava.

26 março 2004

Mira técnica

Antes da chuva, a mira técnica. É igualmente inútil, mas com alguma cor e simetria. Agora que já acabei mais uma tradução, pode ser que me apeteça ter opinião sobre alguma coisa. O mundo anda interessante, mas passa ao largo de Alcântara. Mas tenho de escrever para a Joana não ficar nublada. E, a avaliar pela pulsação do blogue (no fundo, à esquerda), de escrever só para ela e para um ou outro tresmalhado que aqui venha parar sem querer. Não se vão já embora, tenho recados para muita gente:

Gisela, recebi as extraordinárias fotografias da neve no Vondelpark. Agora o teu jardim já deve estar a começar a ficar verde, como o resto da Holanda. E eu, de inveja - pelos canais, pelos crepes do upstairs, pela tarte de maçã no mercado.

Zé Pedro e Mafalda, um café logo à noite? Este fim-de-semana não vamos a Espinho.

Marta, espero que esteja tudo a correr bem: que já te possas levantar para que o Nuno possa descansar. Se precisares de uma lasanha, liga-nos. E quando a criança nascer, claro.

Analú e Pedro, por onde andam? Sempre vão comprar a casa?

Catarina, se já acabaste a cerveja da esplanada em Copacabana, liga-nos. Podemos beber outra este fim-de-semana em qualquer lado.

Inês, parece que não vai estar um Sábado bom para um piquenique. Ou então, além de uma toalha aos quadrados prepara também uns cobertores às riscas.

Paula, não te preocupes, vamos retocar o teu bronze do Brasil para uma esplanada qualquer este fim-de-semana.

Xana, boa sorte para a tua viagem até Castelo Branco e para o curso. Vê lá se aprendes como consertar-me o ombro.

Bertrand, Katell, ça va? Je ne sais pas écrire rien plus en français.

Mário, de que cor estão as estepes russas nesta altura do ano? Tens sabido alguma coisa dos nossos amigos Daniel, Eunice, Rui, etc.

Guitinha, Lisboa é uma aldeia e nunca te encontro na padaria, na leitaria, na rua. Um postal por ano não chega. Já estava na altura de trazer o Ricardo Pinheiro da Madeira, telefonar ao Zé Paulo, ao Rui, ao Quim, à Mónica, ao Místico, à Sandra, ao Sardinha e a todos os outros e fazer um jantar da AEISCSP.

Vítor, como se estão a portar os teus novos coleguinhas. Não deixes que te estraguem os lápis de cera e te roubem plasticina.

Joana, vou almoçar contigo e digo-te ao ouvido o que me apetecer dizer-te. Está aqui demasiada gente. Na Tentadora?

(continua) (cenas dos próximos capítulos: recados para o Armando, a Cláudia, o Pedro Saragoça, o Pedro Santos, o Jean e a Fati, o Tiago B. C., a Cristina Falcão, a Carla Castro, a Carla Antunes, a Sónia e o Gonçalo, etc.)

18 março 2004

Caros telespectadores, pedimos desculpa por esta interrupção. Este blogue segue dentro de momentos.

14 março 2004

A VIDA QUOTIDIANA
Espelho fechado/Manequim de pássaros/A vida breve/Te corta os sonhos//Cai a cidade/Das prateleiras do céu//Homem-gaveta/Guardou lembranças/Guardou laranjas e o semen/De outros meninos-gavetas//Três sereias ameaçam o mar//Cordélia na varanda/Engole nuvens/Cospe jasmins

Murilo Mendes, 1941

12 março 2004

O mal está no meio de nós

Não foi um «mal absoluto» que se abateu sobre Espanha (como classificou ontem Durão Barroso). Foi pior do que isso: um mal tradicional, maléfico, do tipo do que existe desde sempre mas raramente se manifesta, e ultrapassa os nossos piores pesadelos porque existe.
Quase duzentos mortos.
O medo, que vai fazer-nos agora? Que país vai atacar a Espanha? O Afeganistão não vale a pena. No Iraque rebentam as bombas todos os dias... Talvez os subúrbios de Paris onde foi proibido o véu islâmico? Ou os ghetos muçulmanos de Londres onde se vende o jornal que recebeu o fax da Al-Qaeda? É lá que eles estão agora, no meio de nós, os que accionam este eixo do mal.
Não quero pensar. O mundo tornou-se demasiado complexo e as coisas não fazem sentido. O nosso mundo não é com certeza o melhor dos mundos possíveis. Se alguma ciência vai estudar estes fenómenos, que seja a mesma que trata a loucura. Que pena a vida real não ser como as ficções: esta manhã ninguém desligou as bombas no último segundo... Talvez deixem de fazer filmes assim porque já ninguém acredita.

10 março 2004

Chove sobre a cidade a um ritmo constante, desagradável. Um pouco menos e teríamos apenas de respirar nevoeiro. Não se conseguiria ver de brônquio a brônquio, de prédio a prédio, mas poderíamos pelo menos sair de casa.
Ah, as coisas que se passaram por aqui, enquanto andei embrenhado a resolver os problemas que aparecem no tipo de vida somos obrigados a viver: vi sonhos irrigados por corações generosos, a nossa inexistência perante a existência, deuses de onanismo fecundo, histórias de Borges, e a descoberta de um grande texto de um grande amigo. Com a leitura de tantos livros, Armando, nem podias ser diferente.

09 março 2004

Lugones

Há muito que Fernando Pessoa nos ensinou que alguns escritores criam os seus próprios mestres. Ao lermos os contos de Leopoldo Lugones, não podemos deixar de imaginar se Jorge Luis Borges não terá, também ele, criado o seu. Uma criação que os milhares de discípulos borgianos, anónimos nas suas profissões quotidianas, terão encoberto com a inclusão de biografias em enciclopédias e de recensões em revistas de literatura. Nelas, fala-se de um argentino, nascido em Rio Seco em 1874, que terá ajudado a renovar a poesia hispano-americana. Existirão provavelmente também fotografias e relatos de familiares, mas afirmo que Lugones nunca terá existido para além de Borges. Digo isto convictamente, após ter lido «Os Cavalos de Abdera», um livro de oito contos publicado, em Portugal, pela Vega (1988), onde em todas as linhas se pode pressentir Borges. Num dos contos, o terceiro, inserido entre «A Chuva de Fogo» e «A Estátua de Sal», Borges terá dado uma pista para resolvermos o mistério, que só quem não reconhecer o seu génio poderá pensar tratar-se de um erro. O conto é intitulado «Um Arquitecto no Deserto» e é a história de um homem que constrói uma pequena cidade de areia, destruída a cada ano pelos ventos sazonais. A pista para conhecer a verdadeira identidade do autor do conto pode ser encontrada logo na primeira página.

05 março 2004

Armando, só posso responder com uma evidência: há críticas a filmes melhores do que os próprios filmes. E, depois de ler o teu texto, com cada vez mais pena de não ter sentido o mesmo que tu. Não gostei particularmente do filme, mas gostei muito dos vossos textos sobre ele (o teu e o do Vítor). Todos temos caos prestes a explodirem em supernovas. Mas reagimos a estímulos diferentes. Muitos dos sentimentos que o Big Fish vos derpertou, senti-os ao sair do Lost in Translation. Talvez por me ter identificado com Charlotte, um personagem que acabou a universidade há algum tempo e não sabe o que fazer da vida. Ou por qualquer outro motivo inexplicável, como acontece com muitos filmes.


Exercício de direito de posta

Comentário definitivo sobre o visceral filme de Burton ou Onde se explica Tim Tim por Tim Tim porque há realizadores de quem se pode dizer que são apenas Fish(es) e, outros, muito poucos, que são verdadeiramente Big.

Há quem coleccione moedas, outros reúnem livros, outros ainda acumulam obras de arte. Eu colecciono sonhos, vidas que não poderei viver e pedaços da irrealidade quotidiana. E devo dizer para que conste -verdade minha, por isso, desde logo, absoluta, inquestionável e indesmentível - que alguns dos melhores exemplares desta tão intima, preciosa e nada prosaica colecção, que vai para pouco mais de trinta anos iniciei, os desenterrei em salas escuras, depositadas sobre frágeis teias e tramas de um branco espectral, povoadas por seres luminosos e mágicos.

Ao contrário do que é crença comum, os sonhos, pelo menos este particular tipo de sonhos, não devem ser guardados em qualquer recôndito canto, mais ou menos sombrio, do cérebro humano. Eu arrumo-os numa caixa, que é exactamente o lugar onde devem ser guardados todos os sonhos. Não será necessário explicar que nem todas as caixas se adequam à função, tal se deve às particulares formas dos sonhos e às suas propriedades voláteis. Por isso no meu caso optei por os albergar na caixa torácica, mais precisamente no interior cavernoso do meu ventrículo esquerdo, válvula cardíaca responsável pela irrigação sanguínea de todo o organismo. Graças a isso, impulsionados pelo ritmo cadenciado de cada sístole e diástole, percorrem todo o meu ser, em harmonioso convívio com a amálgama de glóbulos brancos, vermelhos e plasma, pequenas partículas de celulose e nitrato de prata, materiais alquímicos usados na confecção dos sonhos.

E é com certeza por isso que amo o cinema, porque ele me corre nas veias.

Não será então de estranhar -silogismo simples, duplo axioma com um único corolário possível -, que se o cinema me está alojado no coração e que é do interior desse órgão que nasce o amor (lei universal afirmada por poetas e testemunhada por amantes), que devote profunda afeição aos demiurgos que criam universos, aos efabuladores míticos que ao sétimo dia não descansaram, antes se afadigaram a fazer nascer uma nova arte e a que, talvez por isso mesmo, chamaram sétima. E, nesse novo panteão, um Deus ex-machina, pairando sobre todos Los Angeles, num reino onírico e distante a que chamam Hollywood, ocupa o lugar central no firmamento. Burton, de seu nome.

Há quem tenha os filmes da sua vida, eu tenho os realizadores da minha (Burton, Eastwood, Scorcese, Curtiz, Capra, Coppola...) e sou-lhes violentamente fiel, intransigente na defesa contra os seus detractores, infinitamente orgulhoso na forma como desdenho os que não veneram a sua mestria.

E não percebo, verdade que não, como é possível ser-se insensível à pincelada do génio, ao toque do artista, ao desfilar de emoções que o seu talento faz assomar e que não deixam outra saída ao comum mortal, senão maravilhar-se perante o carrossel caleidoscópico de luz, cor e magia que dele brota, todo ele ilusão e mistério, milagre e profissão de fé.

Poderia invocar infinitas razões para amar esse luminoso objecto de desejo (não sei se acabo de contra-citar, ex-citar ou in-citar Buñuel, outro surrealista e sonhador como Burton) que é o Big Fish. Mas em vez de invocar prefiro lançar mão de outro verbo que me é muito mais caro: convocar. Porque, ao fim e ao cabo, tudo neste filme se resume a isso. Convocar os mais íntimos desejos, as mais pungentes inquietações, os medos mais atrozes: amar e ser amado, o apelo ancestral que me faz ansiar pela vinda de um filho, o valor inestimável que atribuo à amizade, o receio que me faz acordar de noite, sobressaltado, de perder o meu pai sem lhe dizer tudo o que ele significa para mim, de lhe dizer o tanto que gosto dele e de lhe agradecer tudo o que sou. Tudo isso estava lá. No Big Fish. Tudo eu vi e em tudo me revi. Lamento, se houve quem tivesse visto menos.

É um filme que fala da morte, celebrando a vida; que fala de mulheres e homens, celebrando o amor; que fala de pessoas, quantas vezes estranhas e bizarras, celebrando a amizade; que fala de filhos, celebrando os pais; que, no fim, e por fim, fala da realidade, celebrando a fantasia.

Vi, no Big Fish, bruxas que profetizam mortes. Cartografei cidades cujos habitantes permaneciam descalços, refugiados num limbo idílico e testemunhei o bom coração de gigantes. Também por lá andavam directores de circo que são lobisomens quando o sol se ausenta do céu e gémeas siamesas que cantam celestialmente. E vi milagres acontecerem, um homem que ao morrer se transformou em peixe e um filho que, na hora da morte do pai, se deu conta do muito que lhe devia, milagre maior entre todos os milagres.

Mas, acima de tudo, foi ao ver o Big Fish que tive a certeza de que até hoje nunca amei verdadeiramente, porque nunca, até então, tinha visto o amor acontecer perante os meus olhos. Mas agora que sei o que é o amor, que é quando espaço e tempo congelam, estarei preparado para o receber e para não o deixar fugir nunca. E recebê-lo-ei, de certeza num campo de narcisos, amarelos, como o sol, pois essa, sei-o agora, é a única maneira possível de colher o amor.

Foi Nietzsche, creio, que disse ser preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança. Para parir três estrelas, três estrelas e meia, Tiago, não imagino quanto de caos, matéria e antimatéria reunidas, será necessário. Muito menos para parir todo um universo... Big Fish ou Big Bang???

Armando Norte

04 março 2004

Leio num livro que o deus egípcio Amon deu vida ao mundo masturbando-se sobre a terra. De todas as cosmogonias, nenhuma me parece mais deprimente: uma figura meio humana com cornos de carneiro a masturbar-se no deserto. (Faz-me lembrar as capas dos discos de heavy-metal dos anos oitenta.) Tem uma vantagem, explica claramente a natureza dos oásis.

03 março 2004

As cuecas semitransparentes de Charlotte

Lost in Translation. Vi o filme ontem à noite, com um atraso de alguns meses em relação ao resto do mundo ocidental, e ainda não consegui tirar da cabeça o More Than This dos Roxy Music. E o filme não é mais do que isto: um grande hotel espelhado, como uma ilha de vidro, no meio de uma cidade estranha. Dentro e fora dele, os dois náufragos tropeçam numa ternura imensa, imersa em música de bar de hotel, trânsito caótico, salões de videojogos, karaoke caseiro, quartos silenciosos e piscinas. Quatro e tal.

02 março 2004

Contribuição para o niilismo

Uma equipa de astrofísicos descobriu que o universo pode durar mais 30 mil milhões de anos do que se pensava. O universo vai existir sem mim mais 30 mil milhões de anos do que eu pensava. A minha contribuição para o universo (em percentagem de anos) vê-se assim encurtada drasticamente. É só aplicar uma regra de três simples. Não exponho aqui o resultado para que quem visite a página não pense que estamos com um erro informático que nos enche a página de zeros após uma vírgula. Mas é só fazer as contas. O problema é que temos não uma, mas duas incógnitas. É que ainda não sabemos quantos anos irei viver. Sugiro que se utilize a esperança média de vida para a população masculina portuguesa para acabar com a incógnita, embora espere ultrapassá-la. Claro que, como podem imaginar, o meu niilismo tem uma relação inversamente proporcional com a percentagem de contribuição para o universo. Aproximo-me de Nietzsche à velocidade da luz.

Se não fosse materialista, poderia acreditar que todo o universo é uma construção mental minha. E que, por conseguinte, a sua duração é igual à da minha vida, a minha contribuição para ele absoluta. Mas, por mais que tente, não consigo acreditar que possuo dentro de mim tanta criatividade, tantos cometas. Por vezes, pressinto o vazio estelar, mas logo o estômago ocupa o seu lugar e «o universo/Reconstr[ói]-se-me sem ideal nem esperança» (A. C.).

01 março 2004

O carapau do Tim Burton

Vítor, é difícil não concordar com a tua argumentação. Mas o teu texto fala da ideia geral de imaginação e memória, de pais e de filhos, e não da concretização dessa ideia em filme. Entre os irmãos Lumière e Tim Burton vai um século de cinema. Dos milhares de filmes produzidos em todo o mundo nesse período de tempo, a maioria transporta-nos para universos estranhos de criatividade, mesmo que em ambiente realista. Mas uns são melhores do que outros. Não basta uma boa ideia para fazer um bom filme (ou um bom livro, um quadro belo). Mesmo assim, devo relembrar que gostei do filme. Mas não mais do que três estrelas e um pequeno cometa. A outra estrela e meia vais ter de justificar num novo texto (tu ou o Armando, ao abrigo do direito de resposta), onde fales da interpretação dos actores, do argumento, da realização. Quanto ao resto, concordo contigo, a nossa vida é feita de mais construções mentais, da manipulação criativa da memória, do que nos apercebemos. E, mais importante, da memória dos outros.

Fragmento de Alice

Num instante, Alice passou através do vidro, e saltou agilmente para a sala do Espelho. A primeira coisa que fez foi ver se havia lume na lareira, e ficou muito contente por descobrir que havia um fogo verdadeiro, ardendo em grandes labaredas como o que ela deixara para trás. ‘Então estarei aqui tão quentinha como na velha sala’, pensou Alice, ‘ou até mais quente, na realidade, porque aqui não haverá ninguém para me mandar afastar do fogo. Oh, que divertido vai ser quando me virem aqui através do espelho, sem poderem apanhar-me.’

Lewis Carroll, Alice do Outro Lado do Espelho, trad. Margarida Vale de Gato

Big Fish: a realidade é uma fábula

Regresso. Passei demasiado tempo fora, no mundo-longe-dos-blogues. Volto agora, depois de ter visto o último filme do Tim Burton, 'Big Fish'. E regresso, para dizer o seguinte ao meu amigo Tiago, que num post mais ou menos recente afirmava não ter gostado do filme: um tipo que tem um blogue chamado Através dos Espelhos e que não gostou do 'Big Fish', não devia ter dado esse nome ao dito cujo.
E porquê? Porque quem não gosta do 'Big Fish' não acredita que é possível atravessar os espelhos para lá daquilo a que chamamos: a realidade.

Vamos por partes: o facto do filme ser bom é uma parte; é mais profundo do que pode parecer; não é tudo tonteria. Não quero contar a história, mas acho que uma ideia subjacente a toda a narrativa deve tocar-nos a todos de um modo ou de outro. Os filhos, normalmente olham para a vida dos pais como icebergues, dos quais apenas conseguem ver 10 por cento. A psicologia terá certamente estudado isto. E é esta a base do argumento. Qual terá sido a verdadeira história da vida do meu pai, para além daquilo que ele me conta?

As histórias fabulosas do pai do filme, afinal foram exageradas. Será? Aqui deixamos a psicologia e entramos num campo que não sendo o da filosofia, pode considerar-se perto dele. A vida é real? O que é a realidade? O que são as aparências? Qual o lugar da fantasia na realidade?

Às vezes penso que toda a minha vida se passou no domínio da fantasia, desde tudo o que foi bom até tudo o que foi mau. É que, passado o momento em que as coisas acontecem, tornam-se memória, e a memória das coisas não é o mesmo do que as coisas em si. Ora a vida, a nossa vida, a realidade do que foi e é a nossa vida, são as histórias que contamos dela. O que é um curriculum vitae? É a nossa vida? Não. É o que nós achamos que devemos contar dela para nos darem um emprego, e não se trata de fantasia, mas da coisa mais seca que devemos apresentar a um potencial empregador.

Assim, quando passamos a contar as histórias da nossa vida, esta torna-se um exercício da memória, o que não a torna propriamente exacta, mas uma fábula mais ou menos real.

O meu pai, por exemplo, como muitos pais com filhos da nossa idade, foi à guerra. Esteve na Guiné. Anos a fio, contou-me a história de uma macaca que morreu de cirrose por gostar tanto das bebidas alcoólicas que os soldados lhe davam a beber. Contou outras que tais. Só depois de ele se ter juntado, pela primeira vez em 25 anos, com os amigos da tropa desse tempo, é que pude ouvir algumas das histórias que ele me contava, contadas por outras vozes.

Há também a história do cão fiel, que voltou ao monte, no Alentejo, depois de ter sido oferecido a um homem que vivia a dezenas de quilómetros e que regressou um dia, com as patas todas feridas, a arranhar à porta... ouvi-a uma segunda vez da boca do meu avô. Era uma fábula, mas era verdade.

A nossa vida, meu caro Tiago, tem mais de fantasia que de realidade porque o acaso, a contingência e o absurdo interferem mais no mundo do que à partida a nossa racionalidade faria supor. A vida, na realidade, é uma fantasia. Contada ninguém acredita. É esse o tributo do filme do Tim Burton. A vida não é uma coisa como uma notícia de jornal. É uma ficção como as que são contadas nos livros. E as únicas pessoas que sobrevivem depois da morte são apenas aquelas sobre as quais se contam histórias.

Quem tiver dúvidas, e houve quem as tivesse, há dois posts neste blogue que atestam isso mesmo. São histórias passadas do lado de cá do espelho, no mundo real, e nas quais as pessoas têm dificuldade em acreditar: é o post sobre o "Quarto do Filho" e a história do "Judeu Messiânico". Que seria de nós se por vezes não parecesse que tínhamos atravessado o espelho?