24 fevereiro 2004

Observações sobre a inversão de prioridades num jornal atrasado

Na primeira página do Público de Sexta-Feira, a notícia com maior destaque era: «Cirurgias da Lista de Espera Feitas no Horário Normal de Trabalho». Na última, que «Dois Observatórios de raios X fotografaram o massacre de uma estrela do tamanho do sol». Duas observações. Em primeiro lugar, a perda do sentido das proporções, que os leitores podiam facilmente ignorar invertendo o sentido da leitura. Em segundo, que os jornalistas da área da ciência têm o privilégio de poder escrever coisas como: «Tudo se passou num ápice. O enorme buraco negro despedaçou uma estrela parecida com o nosso sol, tragou um bom pedaço dela e pulverizou o resto pelas redondezas, como quem deixa toneladas de migalhas depois de se banquetear.»

21 Gramas, Alejandro González Iñárritu

A cor, nas tonalidades certas, no volume certo, pode salvar uma história. Em 21 Gramas, o grão ligeiro da imagem confere uma grande profundidade às cores e aos personagens. E as cores profundas de uma paisagem urbana intimamente americana libertam um filme onde se parecem conjugar demasiadas construções recicladas de outros filmes: a estrutura narrativa, muitos dos pormenores da história. Sean Penn, Benicio del Toro, Naomi Watts, mergulham profundamente na cor.

22 fevereiro 2004

Quando começa a chover podemos optar pela depressão ou pelo guarda-chuva. Se escolhermos a primeira, podemos ficar em casa a ler um livro. Então, não nos podemos admirar que os personagens se tornem mais sombrios ou que enxurradas submirjam os desertos. A leitura pode ser tão influenciada pelo ambiente como a escrita. Podemos ser leitores impressionistas, expressionistas, cubistas, dependendo da disposição e da meteorologia.

19 fevereiro 2004

Se ficarmos parados durante tempo suficiente, podemos observar que a natureza começa a regressar às nossas construções artificiais. A crescerem mentalmente rebentos por entre as fendas que separam as tábuas de madeira do soalho, a ouvirem-se vozes de animais nocturnos. E assim podemos disfarçar a indolência com a curiosidade científica de observação do mundo natural. Podemos olhar fixamente para o tampo de uma mesa vazia durante horas, a analisar o sofisticado mecanismo de um insecto.

Mais estranho ainda é sentir que nos embrenhamos cada vez mais nessa selva de imobilidade, quando, com movimentos rápidos, tentamos terminar trabalhos com prazo e sem interesse.

18 fevereiro 2004

No saguão há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta duplicação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz provém de umas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.

Jorge Luis Borges, «A Biblioteca de Babel», Ficções

17 fevereiro 2004

Eu sei que temos de ser tolerantes para com as opções dos outros. Mas é minha impressão ou o cabelo de Paulo Portas está a ficar cada vez mais estranho e ofensivo. Sou suficientemente liberal para não o aconselhar a ir ao barbeiro. Mas talvez fosse boa ideia recolher umas assinaturas para uma petição que lhe sugira a utilização da boina, que costuma usar em campanha eleitoral, durante o resto da legislatura.

A erva e as papoilas

Parece que a nova relva do Estádio do Dragão vem da Holanda. Não há ninguém como os holandeses para arranjar uma boa erva. Por que não plantam também uma papoilas nos limites das quatro linhas? Uma dose bem calculada de bucolismo poderá ajudar a acalmar os adeptos. E, para além disso, as SADs precisam de diversificar as suas fontes de rendimento e talvez seja preferível o negócio da droga a concertos do Rui Veloso. Claro que, por outro lado, isso poderá tornar as invasões de campo mais frequentes. Proponho que se crie imediatamente uma comissão científica para estudar o assunto, a tempo para o Euro.

12 fevereiro 2004

Big Fish

Armando, tenho pena de não poder partilhar o teu entusiasmo com o Big Fish do Tim Burton. A culpa talvez seja da tradicional gestão das expectativas. Ponho-me a olhar para as estrelas (dos críticos) e a ouvir os comentários dos amigos e depois entre o filme e a minha ideia sobre o filme abrem-se abismos. Três estrelas,... três estrelas e meia.

Sobre espelhos e outras irrealidades

POR TRÁS DO ESPELHO

Há sítios, como aquele pedaço de parede a que se encoste um espelho, que, embora existam, estão mesmo à beira da absoluta irrealidade, a qual de tal maneira neles mergulha às vezes as raízes que quase os diríamos definitivamente transportados para o lado de que só deus pode apreender a luz.


CRAWL

Às vezes, entranhando-me num espelho, consigo dar nele duas ou três braçadas sucessivas.

Luís Miguel Nava

10 fevereiro 2004

cumo disse...

No tempo próprio da poesia, síntese monádica transfiguradora estética do tempo histórico, criadora de um mundo específico elidido de sucessividade, cuja continuidade é tecida de diferenças singulares, ... Assim começa o artigo de Miguel Real (Jornal de Letras, 4-2-2004) sobre o último livro de Pedro Mexia, Eliot e Outras Observações. O resto do texto é mais comestível. Coloca o livro entre a «figuração realista de C. [esário] Verde» e o «perpétuo sentimento do nada de B. [ernardo] Soares». Tendo a concordar. Mais com a primeira afirmação do que com a segunda.

O revivalismo do sabão natural

A grande novidade deste ano nos produtos domésticos parece ser o sabão natural. O cheiro que deixam na roupa e na casa remete para um tempo idílico de mães e avós nas margens de rios e ribeiras. A mim também me traz boas recordações. De no Verão, em Trás-os-Montes, brincar na relva entre a roupa a corar enquanto as mulheres lavavam as camisas e as toalhas no Rio do Capelo. Mas não era eu que tinha de ajoelhar-me nas pedras e pôr as mãos na água gelada. As margens do rio estão agora vazias, as máquinas de lavar cheias. Felizmente.

Do lado de lá do espelho II

«E que tal se tem dado com os comprimidos?», perguntou o filosiatra do outro lado da mesa. «Bem, parece-me», respondeu o paciente. «Mesmo assim, houve um dia em que disse "até amanhã, se Deus quiser". Mas pensei logo a seguir que, se Deus não quisesse, não haveria amanhã, ou não haveria eu ou talvez pudesse nem haver a outra pessoa. Seria um disparate. Acho que é um efeito... De resto, nem tenho pensado muito em Deus. Têm-me feito bem. Acho...».
«Acho eu que vai ter de passar a tomar duas cápsulas logo pela manhã, e manter o comprimido antes do deitar. Vamos aumentando a dose. Não é normal que o seu organismo continue com essa tendência transcendental positiva, depois deste tempo todo a tratar-se», adiantou-se o filosiatra, dos mais respeitados do país.
«Não sei... o doutor é que sabe. Herdei esta tendência para acreditar dem Deus, sempre tentei evitá-lo, a minha mãe era muito religiosa, e o senhor está a ver... não é de um dia para o outro que uma pessoa bloqueia essa fé, é uma coisa genética...»
O filosiatra, ateólogo conceituado, respirou fundo. «Sim, mas vai ver que melhora. Vamos inibir os neurotranscendoreceptores quando encontrarmos a dose certa. Há quem reaja mais depressa que o senhor. As estatísticas do laboratório dizem que a partir desta dose, 70% dos pacientes ficam inibidos da tendência natural para acreditarem. Você vai curar-se».
O paciente despediu-se e saiu. Sentiu-se melhor e deu graças por não dar graças a Deus por estar a sentir-se melhor.

Do lado de lá do espelho I

«É um facto extraordinário! Acabou de ser alcançado um novo recorde mundial nos 100 metros em atletismo! O canadiano Trent Mason atingiu, há pouco mais de cinco minutos, no Campeonato Mundial de Pista Coberta, um dos objectivos perseguidos há séculos pela humanidade, ao conseguir percorrer os 100 metros em apenas zero segund...» A televisão eclipsou-se. Os seres humanos sofreram o impacto da reversão do tempo. O sol inflamou-se pela última vez. Inverteu-se. Tornou-se um buraco negro e toda a existência foi sugada para sempre pelo seu simétrico contrário.
Não sei se vão ser torres ou prédios rastejando até ao leito do rio, mas da minha janela posso assistir ao movimento de demolição de algumas das velhas fábricas de Alcântara. Talvez consiga prolongar, com esforços de distorção, aqueles momentos breves entre a demolição e a construção em que vou poder finalmente ver o rio. Agora, só o consigo ver, entre duas fábricas, quando a maré está bem cheia e não está um navio de cruzeiro acostado.

09 fevereiro 2004

A deriva dos continentes

Podemos partir do princípio de que o Oceano Atlântico é estático. Ou, para efeitos de análise, definir que ele se contrai e se expande, tornando variável a distância entre a Europa e a América (os Estados Unidos da América). Graficamente, podemos imaginá-las como dois pontos na superfície de uma esfera. Quando esta se expande, a distância aumenta e, quando se contrai, diminui. Um movimento a que, acrescentando a ciclicidade, os optimistas (idealistas) podem comparar ao bater de um coração e os pessimistas (realistas) a uma cabeça latejante.

É difícil definir com exactidão o papel que a política interna dos estados desempenha na definição das suas políticas externas. A maioria dos autores realistas tendem a subalternizá-lo, acreditando que a natureza anárquica das relações entre os estados e o cálculo dos equilíbrios de poder constrangem as decisões dos governantes. Que as acções dos Estados Unidos seriam muito semelhantes qualquer que tivesse sido o presidente nestes últimos anos: Clinton, Bush, Gore, etc. Apesar de não conseguir determinar uma percentagem, acredito que a política interna dos estados tem uma importância considerável para as relações internacionais, para a gestão dos sistemas de governação mundial. E é por isso que tenho a esperança de que nas próximas eleições presidenciais norte-americanas George W. Bush não seja reeleito, provocando uma contracção da esfera, de preferência até à dimensão de uma mesa da ONU.

Santa Catarina

No Domingo, já em Lisboa, jantar em casa do Hugo Franco e da Dina, com a Joana, o Armando, o Pedro, a Analú e o Rodrigo, a Carla e o Vítor. Nas entradas, as histórias do Inter-Rail do Armando nas ilhas gregas, a que decidimos, caso alguma fez passe a livro ou a filme, dar o título de Em Lesbos sem Dinheiro; as histórias do Hugo e da Dina no Inter-Rail pelo sul de França e em Amesterdão. Depois da lasanha e do pão de ló, as recordações da infância em Grândola do Vítor e da Ana Luísa («-Qualquer dia o Rodrigo tem a mesma idade que nós quando nos conhecemos (na primária).» Com nomes de personagens e de terras de fábula ou de livro do Jorge Amado, de amigos que já cresceram. As recordações do Armando, do Hugo e minhas da escola preparatória rodeada de mato e de floresta por todos os lados e que agora parece ter encolhido no meio dos prédios que se preparam para a engolir. Algueirão, Mem Martins, a envelhecerem, o Cinema Chaby demolido. O Guigo a brincar com os carrinhos a um canto da sala, com uma otite. Um chá para terminar com o pão de ló.

Maus Hábitos

No sábado à noite, por duas horas, atravessar o espelho, ou como é possível entrar num elevador para subir ao quarto andar de um prédio e sentir que entramos numa cave, num tempo e num espaço diferentes. Fui, pela primeira vez, ao Maus Hábitos, no Porto, em frente ao Coliseu, com a Joana, a Paula, a Olga e a Mariana. Numa das muitas salas, tocavam os Radiohead portugueses. Nas outras, andavam o que pareciam ser os convidados de um dono da casa invisível. Apesar de ter pago 3 euros, senti que estava a entrar numa festa, na casa de alguém, sem ter sido convidado. Pareceu-me que toda a gente sentia o mesmo que eu. Encontrámos o Carlos Seixas. Também era a primeira vez que lá ia.

Onde as ruas não têm nome...

Deste lado do espelho, o fim-de-semana foi passado em Espinho. Na cidade geométrica e aritmética, onde as ruas não têm nome nem passeios (por causa das obras). A salgar os brônquios no Golfinho, a cortar o cabelo na Barbearia Silva, a ler os jornais no Palácio e no Esquimó, a comer Bacalhau com Natas e Bolo de Anjo na Avenida 8. Nos dois extremos, duas viagens de comboio e a importância de escolher o livro certo para o fim-de-semana. O meu passou da vertical, na estante, para a horizontal, na mesa do Alfa. E a minha disposição mudou com a rotação dos planos. O que na sexta-feira me parecia ser a salvação para 6 horas de viagem, serviu apenas de companhia e de base para copos.

Diário de Maria

Será que a gripe das aves é o castigo divino para os bestialistas? Pelo sim, pelo não, recomendamos que façam como o Woody Allen no ABC do Amor e limitem a vossa dieta a ovinos. Para uma reflexão mais aprofundada e gráfica sobre o tema, remetemos para a fotonovela do Pelejão, O Pastor das Almas e o Molestador de Ovelhas, no Vodka7.

07 fevereiro 2004

O calhau da Noruega

Perante o olhar atento mas impassível dos noruegueses, Manuel João Vieira, ex-vocalista dos Enapá 2000, cantava uma das suas letras em norueguês com uma perfeição para nós irrepreensível. Foi na passada quarta-feira, no centro de arte moderna de Oslo, onde ele também tinha uma instalação em vídeo na exposição «30 artistas portugueses com menos de 40». Os louros cidadãos da Noruega esbugalhavam os olhos, e das duas uma: ou não percebiam a canção tão devotadamente cantada na língua escandinava ou não lhe acharam qualquer graça. Fiquei a pensar que não tinham sentido de humor: são muitas horas nocturnas à hora de ser dia e frio a mais na moleirinha. Uma pena. Riram-se mais das canções em português. Povo estranho. Nós rimos muito com aquela em norueguês.

João Manuel Vieira acompanhava a comitiva do Presidente da República que visitou a família real da Noruega. Portou-se bem. Foi estagiar para ver se é preciso candidatar-se contra o Pedro Santana Lopes. A instalação de vídeo não era mais do que colagens dos tempos de antena da sua campanha presidencial de 2001. Se virmos bem, o que ele nos disse lá no museu faz todo o sentido. Na nossa sociedade «há demasiado absurdo por defeito e pouco absurdo por excesso». O homem é um filósofo.

05 fevereiro 2004

Maps, Yeah Yeah Yeahs

Vi a Karen O a trincar um ananás e a tentar engolir o microfone no palco de Paredes de Coura (o melhor concerto, apesar do da P.J.). Agora, em casa, consigo analisar com mais pormenor a capacidade de controlo e de abandono de que é capaz em Maps , pressentindo a presença perturbada de Karen a caminhar pelo palco.

Culinário - 5 de Fevereiro

O Culinário da Assírio & Alvim sugere para hoje - entalado entre as costeletas de carneiro à portuguesa, de dia 4, e os fritos de arroz, de dia 6 - o Pudim do Patrono. Parece-me uma sobremesa demasiado requintada para o meu almoço de douradinhos do Capitão Iglo com arroz de pimentos. Mas fica aqui a receita, caso alguém o queira fazer e trazer-me uma fatia:

Bata 8 ovos com 300 gramas de acúçar e junte 300 gramas de amêndoa ralada fina. Adicione 300 gramas de doce de chila e envolva tudo muito bem. Unte uma forma com manteiga e leve ao forno a cozer em lume médio.

Quanto ao Poemário, não sei o que escolheram para hoje, este ano não mo ofereceram.

01 fevereiro 2004

Uma relação inversamente proporcional

Não sei se sou eu que ando distraído e sou o último a saber, mas vi numa reportagem hoje transmitida que o Artur Jorge já não tem bigode. Já muito se tem falado e escrito sobre a relação entre o progresso do país e o desaparecimento do bigode, mas mesmo os espíritos mais progressistas não podem deixar de sentir uma certa nostalgia perante determinados abalos no quotidiano. Como o bigode do Artur Jorge já tinha personalidade jurídica – número de contribuinte e de segurança social próprio -, gostava de saber se o que aconteceu foi uma rescisão amigável, se o contrato terminou e o bigode se transferiu para outro lábio superior ou se pendurou definitivamente as chuteiras. E logo quando o Artur Jorge mais precisava dele, para o ajudar a suportar as temperaturas negativas do Inverno da Rússia, onde se encontra actualmente a treinar. Nunca se podia ter a certeza onde acabava o bigode e começava a gola da samarra (ou onde terminava o chapéu típico de pele que os russos usam na cabeça). Ou talvez os dois acontecimentos estejam relacionados. É que um bigode daqueles ainda é capaz de trazer muitas más recordações para aqueles lados.

Com uma simples navalha de barba, Artur Jorge terá feito mais pelo progresso do país do que todas as medidas do Ministério da Ciência e do Ensino Superior dos últimos anos.